4. OS LIMITES E RELAÇÔES ENTRE O DIREITO E A MORAL NA RECONSTRUÇÃO DA DOGMÁTICA PENAL ALEMÃ NO PÓS-GUERRA
Nesta seção, a investigação adentrará no contexto histórico alemão, cujas tradições já ocupavam um lugar central no pensamento filosófico e jurídico no Ocidente desde o Século XVII quando a Alemanha ainda não era unificada, mas uma confederação de Estados, sob o domínio do Estado prussiano. O fenômeno histórico das duas grandes guerras mundiais nos quais os alemães foram protagonistas abalou o mundo jurídico, sendo o poder de punir do Estado utilizado contra os próprios fins os quais era pretendido por autores como Kant. Deverá ficar mais claro a partir desta seção sobre o que passou a dogmática penal naquele período e como ela se reconstruiu após a guerra.
4.1. CONTEXTO HISTÓRICO DA ALEMANHA NO PÓS-GUERRA
A Segunda Guerra Mundial foi o ápice de uma trajetória histórica em que diferentes traços culturais da civilização ocidental (Europa e Estados Unidos) culminaram numa catástrofe humanitária sem precedentes para as suas respectivas sociedades. Pode se dizer que o ponto de partida dessa trajetória se deu por um novo capítulo do colonialismo e imperialismo europeu, no qual as suas grandes potências brigavam pela posse de novos territórios ao redor do globo, principalmente em território africano. Após o evento que ficou conhecido como o Atentado de Sarajevo deflagra-se a Primeira Grande Guerra em que estavam envolvidas a Grã-Bretanha (Império Britânico), a França (Império Francês), a Alemanha e a Itália. Após muitas perdas humanas, ficou vencida a Alemanha, que tendo que se sujeitar as graves condições impostas pelo Tratado de Versalhes, viveu em regime inflacionário que pôs de joelhos a conhecida República de Weimar e abriu caminho para o partido nacional socialista conquistar o poder pela via democrática e instituir um regime de partido único, eliminando opositores e concentrando poder naquele país.
Este foi o início do regime totalitário que se caracterizou não só pela perseguição e eliminação dos seus opositores e a concentração de poder nas mãos do Führer, como também pelo cerceamento das liberdades fundamentais e pelo atentado aos direitos humanos. O projeto de Adolf Hitler não era só recuperar a Alemanha do desastre representado pelas consequências da Primeira Guerra, mas elevá-la a um novo patamar, a de IIIº Reich (Império) com o objetivo estratégico de dominar toda a Europa, mas também o mundo. Esse seria um traço comum de mais um regime imperialista fundado numa autocracia, se não fosse mais marcante a perseguição e o extermínio de milhões de judeus que viviam na Europa, fruto de um antissemitismo unido à ideia de certo darwinismo social, tendo fim nos campos de concentração. Impressiona aqui o papel não só do Direito, mas do Direito Penal que dentro da lógica nazista fora utilizado para legitimar o que ficou conhecido após o fim da Segunda Guerra como Crime de Genocídio.
O regime de exceção alimentado durante aqueles anos na Alemanha nazista viria a ser um paradigma tão poderoso a ser evitado que gerou uma completa transformação no mundo do Direito, em seus diversos ramos como o Direito Constitucional, o Direito Internacional, o Positivismo como paradigma de uma Teoria do Direito e como escola filosófica que se distribuiu em diversas correntes, a Hermenêutica, o Direito Administrativo, o Direito Privado, sendo sempre citado nos livros doutrinários. O que se exigia do Direito, e por isso ele teve um papel tão importante é o de não permitir que eventos como aquele acontecessem novamente e por isso diversos mecanismos foram criados ou reelaborados para garantir essa finalidade. Era inaceitável para uma sociedade que se considera “a mais avançada do mundo” admitir uma catástrofe de tamanha dimensão no centro cultural do Ocidente, e a culpa não recaia somente nos alemães, mas de todas as potências europeias e em certa medida também os Estados Unidos.
Se para tantos ramos do Direito a experiência totalitária virou um marco paradigmático, para o Direito Penal sobreleva o papel de entender como suas fundações e estrutura puderam ser utilizadas para fins de exceção e de como julgar os crimes que foram cometidos dentro daquele período histórico. Isso exigiu transformações em sua dogmática tradicional, cujos parâmetros foram construídos de forma central pela doutrina alemã. A dogmática que surgiu do pós-guerra é um marco para alemães e europeus, mas espalhou-se pelo mundo pela força simbólica, enraizando-se em diversos países de direito codificado, incluindo o Brasil.
Alguns filmes ilustram bem como o Direito Penal se tornou âmbito de conflitos entre o Direito e a Moral, entre eles podem ser citados:
a) “O Leitor” (“The Reader”, 2008, dirigido por Stephen Daldry) o filme conta a história de um romance entre um jovem estudante e uma mulher mais velha que trabalhava como cobradora de passagens de trem numa Alemanha pós-guerra. A trama se desenvolve quando este jovem, já cursando faculdade de Direito ingressa no julgamento em que uma das rés era justamente a mulher com que ele teve um romance no passado, Hannah Schmitz. Durante o período nazista Hannah trabalhou como guarda na SS em campos de concentração, sendo responsável por escolher as vítimas que iriam morrer nas câmaras de gás, bem como teve responsabilidade na morte de prisioneiras judias durante uma transferência, em que junto com outras guardas, manteve reclusas dentro de uma capela que durante um bombardeio acabou sendo incendiada. Entre as sessões do julgamento, ocorriam seminários em que o professor de Heidelberg, refletia sobre o julgamento, com seu pequeno grupo de alunos mais aplicados. Em um destes seminários fala sobre as discrepâncias entre o acontecimento e o funcionamento das leis: o funcionamento da sociedade é visto por ela mesma como sendo ditado por regras morais, mas o são por leis; para condenar alguém você deve provar o dolo, é isso que diz a lei, mas o que dizer das pessoas que trabalharam em Auschwitz sem ter consciente e querido o resultado das câmaras de gás; como julgar dentro da lei, se a lei da época permitia a morte dessas pessoas indesejáveis?
b) “Hannah Arendt” (“Hannah Arendt”, 2013, dirigido por Margarethe Von Trotta) o filme aborda uma parte da trajetória da intelectual e cientista política alemã Hannah Arendt em que conhecida internacionalmente pelo seu livro “As Origens do Totalitarismo” é convidada para cobrir pelo jornal The New Yorker o julgamento de Adolf Eichmann, funcionário do regime nazista. Ele que ficou conhecido por organizar o transporte de vítimas para os campos de concentração, fora sequestrado pela polícia secreta israelense, o Mossad, na Argentina, e levado para ser julgado em Israel. Arendt estava sendo duramente criticada pela comunidade judaica por ter se dedicado a entender a mente do réu nazista e por indicar que durante os anos do regime nos quais muitas famílias judias eram mandados para os campos de concentração, os líderes judeus colaboraram na localização daquelas pessoas, o que fora considerado como uma culpabilização do seu próprio povo pelo extermínio. Novamente havia uma disparidade entre o Direito e a Moral, pois enquanto naquele tribunal julgava tão somente um homem por um acontecimento em cadeia que era muito maior do que o homem, este dependia de outras pessoas, seja através dos mandantes, seja através dos operadores do regime e ao mesmo tempo em que este homem renunciava a sua consciência e capacidade de pensar, o que dificultava a punição nos moldes preconcebidos pela Lei. Esse conjunto de coisas que formavam o “mal perpetrado por ninguém” era que o Hannah Arendt chamava de “Banalidade do Mal”. O trabalho desenvolvido culminou no livro “Eichmann em Jerusalém”.
c) “Julgamento de Nuremberg” (“Nuremberg”, 2000, dirigido por Yves Simoneau) O filme se passa também no pós-guerra quando se formou o Tribunal Internacional de Nuremberg, composto por juízes que representavam as potências aliadas julgando líderes alemães prisioneiros de guerra pelos crimes cometidos durante o período nazista. Naquele contexto, a Moral se colocou num plano superior ao Direito ao definir o que deveria acontecer com aqueles prisioneiros. Os problemas: não haviam leis preexistentes para existentes para dar conta dos fatos e do julgamento daqueles que foram considerados responsáveis; estabelecia-se um tribunal de exceção, cujo parâmetro maior seria a concepção de justiça daqueles que julgavam, sendo estes os vencedores, o que por si só subverte a equidistância entre as partes e um juízo imparcial; e o costume de que indivíduos que são feitos prisioneiros de guerra devem ser fuzilados, e no entanto, como punição que ainda sim consistia em tirar a vida de outrem, a maioria foi condenada à forca, que subverteria a lógica militar, imputando uma desonra para aqueles que foram condenados. Fora isso, abre toda uma linha de reflexão sobre como era o aspecto psicológico daqueles que foram outrora líderes nazistas, e se tornaram prisioneiros de guerra, vistos sob a ótica deles mesmos.
4.2. ASPECTOS DOGMÁTICOS: O DIREITO E A MORAL
A abordagem final a qual se pretende fazer esse artigo vai no sentido de acompanhar as modificações da dogmática penal alemã desde o período nazista até durante o pós-guerra que foi um período de intensa autofagia para os alemães, principalmente aqueles que trabalhavam com o Direito. Estudiosos como o argentino Eugênio Raúl Zaffaroni e o alemão Winfried Hassemer observaram respectivamente esses dois períodos e a conclusão a que chegaram estabelece que a dogmática penal deve ser vigilante para não permitir que eventos como o ocorrido na Alemanha aconteçam novamente com outras roupagens, mais do que isso, os eventos alemães espelham o ápice da criatividade humana na criação de novos institutos e teorias penais, não obstante outras técnicas dogmáticas que ao longo dos séculos parecem se repetir, talvez aproveitando-se do esquecimento que traumas como esse geram.
É importante observar que conforme a investigação empreendida neste artigo pode ser visto que a influência seja da doutrina do conhecimento kantiana, do seu sistema moral e de sua doutrina do direito naquilo que se consolidou chamar o pensamento jurídico alemão é muito vasta e transcende os limites deste artigo. Compete, no entanto observar como a temática do Direito e da Moral devem ser analisadas no contexto histórico e dogmático. Abre-se o caminho para uma investigação mais profunda do pensamento jurídico-penal alemão cotejada com a história desse direito penal ou das ideias penais dos quais serão apresentados algumas amostras.
É possível a partir do recorte histórico em que se analisa o período nazista visualizar como os processos de legislação, de judicialização e de construção doutrinária foram reelaborados com grande intensidade a partir do momento em que se convencionou chamar de Direito penal de guerra:
A mais completa investigação alemã a respeito distingue três momentos legislativos: uma primeira fase de atividade legislativa se encerrou em 1935 com a “lei de proteção do sangue e da saúde matrimonial”. Na fase intermediária, entre 1936 e o início da guerra, destacam-se poucas leis e regulamentos, ao contrário da fase da guerra, em que se emitiram numerosos preceitos. O direito penal de guerra não ocupa o maior espaço só por estas razões externas, mas é de particular interesse porque contém chamativas inovações, sendo duvidoso se haviam sido condicionadas pela guerra ou se envolviam passos para um direito penal futuro. (ZAFFARONI; 2019; p. 92)
Fundamentos caros a legalismo e ao estado de direito tomaram uma perspectiva totalmente diferente do que se concebe como garantias do indivíduo contra a persecução penal do Estado. Esse movimento não foi gestado apenas após o surgimento do Direito penal de guerra mais vieram de um longo trajeto histórico que inclusive perpassou a República de Weimar, cuja Constituição é referência mundial em termos de direitos fundamentais:
Desde as primeiras leis penais, observa-se a derrogação da legalidade – formalmente consagrada em 1935 - e, principalmente, a do princípio de não retroatividade da lei penal, em caso do incêndio do Reichstag como exceção, mas, em seguida, como regra, por isso, cada lei dispunha se sua aplicação era retroativa ou não, e, no primeiro caso, se era sem término ou se a retroatividade se limitava a certo período de tempo decorrido. (ZAFFARONI; 2019; p. 94)
Não obstante se chame esse direito penal de um direito penal de guerra poderá ser chamado também de um direito penal da vontade, como um direito penal do autor. Este último retoma algumas tendências que vigoraram nas teorias racistas europeias que eram chamadas de darwinismo social, podendo ser citados exemplos mais próximos como o trabalho do italiano Cesare Lombroso e do brasileiro Tobias Barreto, embora a Alemanha tenha tido uma história muito própria em termos de concepções racistas que poderiam atingir tanto judeus, como homossexuais, negros e mesmo os próprios alemães que não correspondessem ao tipo ideal alemão.
(...) a caracterização do direito penal nacional-socialista como direito penal da vontade foi devido a erros (talvez seja uma objeção a Freisler). Considera que o Willensstrafrecht é correto no sentido de que o direito penal não deve assentar-se só e de modo decisivo no resultado, no externo, pois o delito significa algo diferente da simples lesão de interesses e bens, mas afirma que não diz o suficiente, porque a classe do autor não se estabelece apenas pela vontade. Não significa o mesmo que a imagem psicológica do indivíduo com todas as suas particularidades e finezas, mas ao autor pertence aquilo que essencialmente ele é para a comunidade. (ZAFFARONI; 2019; p. 192)
Alguns institutos da teoria do delito foram revistos para atender as necessidades do partido Nazi e do Führer que em última instância era o juiz natural, o que ele mesmo delimitava para casos específicos, deixando os juízes alemães definirem de acordo com o programa partidário qual era a vontade do povo alemão.
Quanto à exigibilidade em si, partia das duas diferentes formas de quantificá-la que haviam sido propostas, ou seja, estabelecer a magnitude da contradição da subjetividade do autor com a essência da norma mediante a valoração ética da motivação conforme a potencialidade psicofísica do autor individual; ou de fazê-lo conforme a média das possibilidades psicofísicas dos cidadãos do Estado em geral. (ZAFFARONI; 2019; p. 207-208)
A crítica a estrutura a teoria do delito possibilitava aos teóricos nazistas assumirem novas posições em relação ao que se considerava a doutrina penal da época. Isso podia variar desde a fundamentação até a simples e mais prosaica troca de nomes:
É claro que nenhuma destas variáveis é a culpabilidade, e o que Schaffstein admite – em qualquer delas – é a possibilidade de salvar unicamente a palavra, o nome – que reconhece a antiga linhagem -, mas não o conteúdo conceitual: trata-se de rebatizar como culpabilidade a que não é tal. Isto revela que este autor, ao rechaçar a distinção entre injusto e culpabilidade, na verdade propunha algo que vai além deste rechaço: tudo indica que se propôs suprimir o verdadeiro sentido da voz culpabilidade, porque lhe bastava a ideia de tipo de autor que uniria de forma abrangente o feito e o autor.
Essa técnica de mudar os nomes às vezes pode ser ingênua, mas no direito penal costuma ser perversa e a conhecemos da inquisição: a declaração espontânea da bruxa torturada, por exemplo. No caso dos nazistas, o rebatizo ou a eufemização era particularmente grave: solução final (Endlösung) era o extermínio; tratamento especial (Sonder-behandlung), a execução; e instalações especiais (Spezialeinrichtungen), as câmaras de gás. O caso de chamar a culpabilidade ao que não é culpabilidade não reveste igual gravidade, mas é uma eufemização que também tende a desconcertar. (ZAFFARONI; 2019; p 219)
O processo de autofagia que começou na Alemanha do pós-guerra teve que lidar com o choque e o trauma dos eventos ocorridos do passado que tinha se encerrado abruptamente e para reestabelecer a credibilidade e a respeitabilidade do Direito alemão no mundo, houve a necessidade de um processo interno de intensos julgamentos, mudanças teóricas e busca por novos fundamentos:
Mas não somente o Direito penal da República Federal da Alemanha – na prática em maior extensão que na teoria – ocupou-se da criminalidade violenta nacional-socialista por décadas. Também o Direito constitucional viu-se obrigado a acercar-se do problema. Não obstante, as reflexões resultantes deste acercamento influenciaram o Direito Penal proporcionalmente menos que a preocupação acerca de um Direito supra positivo, cuja base e medida pudesse servir para uma crítica à legislação e a práxis jurídica nacional-socialistas, ou seja, a indagação exemplificada com a punibilidade dos juízes penais e dos delatores. (HASSEMER; 1994; p. 1 e 2)
Aqui a Moral que antes, nos dizeres de Kelsen, não era possível estar de acordo com o Direito virou um imperativo grave, no sentido de retomar inclusive a ideia de uma Moral absoluta que viesse do Direito natural, um direito natural que não retomasse apenas a racionalidade mais a dignidade da pessoa e certos direitos fundamentais. Não é coincidência que as constituições passaram a serem rígidas; os Direitos fundamentais seja os de liberdade, sociais, difusos em diante viram parte de uma dogmática e os princípios exercem certo controle sobre a aplicação das regras do Direito. A ideia também kantiana de uma ordem internacional a ser respeitada, talvez não ainda na forma de um Estado mundial único, mas que estabeleça limites ao que acontece dentro dos territórios nacionais.
Após a guerra e os nazistas, outras exigências mais imediatas foram dirigidas à Filosofia do Direito e ao Direito penal. Abstraindo-se, por um momento, a tarefa de se encontrar bases de ação e de avaliação que pudessem ser adotadas após o nazismo e não renegassem as experiências vividas em doze anos – e nesta tarefa empenharam-se todos – defrontaram-se os juristas, sobretudo os penalistas, com um problema urgente e incontornável de Direito natural: Os delatores não haviam mentido, os juízes haviam aplicado as leis penais formalmente vigentes lege artis, mas o resultado obtido exibia um verdadeiro escárnio, diante da mais pretensiosa acepção de proporcionalidade, lealdade ou dignidade humana.
(...)
Por conseguinte, a inclinação do Direito penal para certezas jusnaturalistas, tanto na doutrina quanto na práxis, foi não apenas compreensível no período após 1945 como também quase que inevitável. Sem uma base normativa para além das leis positivas não era então possível nem uma nova orientação geral jurídico-penal nem o surgimento de uma judicatura com um mínimo de dignidade. (HASSEMER; 1994; p.2)
O Direito Penal alemão pós-guerra buscou se adequar as complexidades que vida lhe impusera. O pensamento kantiano embora tenha uma influência vasta nas correntes do pensamento jurídico alemão, produzindo até uma tendência neokantista que perdurou durante o período Nazi, precisou ser revisto e reformulado para se adaptar as exigências atuais. Isso faz com que o pensamento jurídico-penal alemão seja uma das escolas mais complexas e sofisticadas que a humanidade já vira até o momento sendo um padrão de referência global, principalmente para os países de direito codificado como é o brasileiro.
Esquematicamente, pode-se bem traçar a diferença entre o Direito penal do século XIX e o do final do século XX na abordagem dos problemas da causalidade e da imputabilidade. Num exame superficial (já? apenas?) evidencia-se que, enquanto o Direito penal outrora se ocupava de problemas de tipo Caio envia Tício a floresta na iminência de uma tempestade, na esperança de que este último seja fulminado por um raio, atualmente tem que se defrontar com problemas do calibre de uma causação de danos decorrente de uma decisão por escassa maioria do conselho fiscal de uma S/A, ou de uma organização desastrada de uma equipe cirúrgica: a complexidade de nosso mundo desenvolve-se principalmente em complexas cadeias de responsabilidades.
Daí, certamente não é por mera coincidência que as mais atuais investigações, com altas pretensões científicas, confessada mente (sic.) elegem como seu objeto a teoria da responsabilidade objetiva, e geralmente não se acanham em apresentar-se como contribuições para o progresso de um Direito penal funcional. Este seria portanto o tipo de uma resposta adequada das ciências penais às palpáveis modificações da realidade penalmente relevante: diversificação dos instrumentos dogmáticos e aumento da capacidade sistêmica de lidar com complexidades. (HASSEMER; 1994; p. 15)
No entanto, convém lembrar e fazer o correto trabalho de memória que em muitos países da periferia global faltou enquanto a dogmática penal precisa ser uma dogmática contextualizada historicamente, pois sempre atende as necessidades de uma época. Parece que o mal e o bem brigam ciclicamente entre si, e conforme a visão de Kelsen, podem ser vistos de diferentes formas, mas com o domínio e aperfeiçoamento a técnica temos o que Tércio Sampaio Ferraz Júnior colocara como a necessidade de revisão dos fundamentos do Direito para que o sentido de justiça entre as pessoas não se perca e a ordem jurídica desabe.
Não obstante, a ciência jurídico-penal entra em cena quando muitas das resistências desumanas se traduzem em leis ou normas, doutrinas e sentenças, que se encobrem e se legitimam com racionalizações (falsas razões). Despir e deslegitimar essas falsas razões é a tarefa própria do direito penal humano, quer dizer, do trabalho científico de construção de uma doutrina jurídico-penal enquadrada nos Direitos Humanos estabelecidos na Constituição e no direito internacional.
Daqui se desprende a importância que adquire seu estudo na atualidade, quer dizer, para exigir que pelo menos as racionalizações anti-humanas atuais seja novidades, o que, certamente, não é muito frequente, mas sim, pelo contrário, dado que a imaginação perversa de todos os tempos deixou pouco espaço para a criatividade maligna, as racionalizações anti-humanas atuais são invariavelmente reiterações de velhas especulações, mais ou menos embelezadas com novas palavras, mas algumas vezes diretamente copiadas ao pé-da-letra, por isso, no campo científico do direito, nenhuma racionalização anti-humana está totalmente morta, embora, às vezes, permaneça latente.
Esta é uma das razões pelas quais, na atualidade, fomenta-se um direito penal não histórico – como assinalamos no começo – dado que a perda de memória permite mostrar como novidades os adereços de décadas, séculos e milênios anteriores (ZAFFARONI; 2019; p.221)