O Alienista e o Controle Social através do Direito
"O Alienista", uma das obras mais satíricas de Machado de Assis, oferece uma oportunidade rica para discutir o papel do direito como instrumento de controle social e a linha tênue entre justiça e abuso de poder. Publicada em 1882, a novela aborda a história do Dr. Simão Bacamarte, um médico que se dedica ao estudo da mente humana e, ao abrir a Casa Verde, um asilo para alienados, inicia uma verdadeira caça às bruxas, internando quem ele considera insano, em nome da ciência. A história levanta questões profundas sobre autoridade, poder, e a definição de normalidade, conceitos que podem ser analisados à luz do sistema jurídico moderno.
A obra explora o conceito de poder médico-científico e sua capacidade de redefinir a realidade social. Simão Bacamarte, com seu conhecimento e autoridade como médico, toma para si a responsabilidade de decidir quem é são ou insano, sem se submeter a qualquer tipo de controle ou regulação por parte de outras autoridades. Essa postura autocrática levanta uma questão importante sobre o poder discricionário e a falta de limites legais para figuras de autoridade, algo que se reflete no direito contemporâneo quando se discute o abuso de poder por autoridades públicas ou jurídicas.
No direito atual, especialmente no que se refere à justiça criminal e à psiquiatria forense, a obra pode ser vista como uma crítica ao uso arbitrário do poder para classificar indivíduos e determinar seu destino com base em critérios subjetivos ou imprecisos. Dr. Bacamarte não consulta outras vozes, nem permite que os internados tenham uma defesa ou possam argumentar sobre sua sanidade, algo que contrasta com o direito ao contraditório e à ampla defesa, pilares dos sistemas jurídicos modernos.
Essa crítica de Machado de Assis à autoridade médica pode ser estendida ao sistema judiciário, onde muitas vezes a aplicação das leis pode ser influenciada por subjetividades ou preconceitos. O poder discricionário dos juízes, promotores ou outras figuras de autoridade legal, embora necessário em certa medida, requer freios e contrapesos para evitar abusos, tal como ocorre em "O Alienista", onde o poder absoluto do Dr. Bacamarte o transforma em uma espécie de ditador da sanidade.
Além disso, "O Alienista" provoca uma reflexão sobre como a definição de normalidade pode ser usada como ferramenta de exclusão e controle social. Bacamarte, ao definir o que é sanidade, molda o comportamento esperado dos cidadãos e pune aqueles que se desviam desse padrão, uma prática que encontramos em diversas sociedades ao longo da história e que ainda persiste em alguns sistemas jurídicos. A obra faz uma crítica ao fato de que, muitas vezes, quem detém o poder também controla a narrativa sobre o que é considerado aceitável ou não, legal ou ilegal.
Essa noção de controle social está profundamente conectada com a função do direito de manter a ordem, mas também levanta questões sobre a legitimidade das leis e quem as cria. O Dr. Bacamarte, ao assumir para si a autoridade de definir a loucura, nos lembra como as leis, quando mal aplicadas ou criadas sem diálogo com a sociedade, podem ser usadas para oprimir e controlar. No mundo jurídico contemporâneo, isso reflete a necessidade de que as leis sejam inclusivas, democráticas e refletiam os valores de justiça social.
Outro aspecto interessante da obra é a crítica ao uso da ciência ou do conhecimento especializado como uma forma de opressão legal. O Dr. Bacamarte, com sua autoridade científica, não apenas interna cidadãos inocentes, mas também transforma sua prática médica em uma ferramenta de coerção, alheia a qualquer fiscalização. Em um contexto jurídico, isso remete à crítica do uso de jargões técnicos e de argumentos complexos para excluir os leigos dos processos judiciais, algo que enfraquece o acesso à justiça e cria barreiras para aqueles que não têm conhecimento especializado.
Além disso, a obra também questiona a objetividade das classificações legais e médicas. A ideia de que a insanidade pode ser definida de forma tão categórica e manipulada ao bel-prazer de uma autoridade reflete um problema no direito contemporâneo: como evitar que decisões arbitrárias sejam tomadas com base em interpretações unilaterais das normas? A jurisprudência moderna busca cada vez mais garantir que decisões sejam fundamentadas em critérios claros e objetivos, evitando que o poder discricionário leve a abusos, como ocorre com Bacamarte.
Por fim, o desfecho da obra, no qual o Dr. Bacamarte decide se internar por acreditar que ele próprio é o único verdadeiro louco, levanta uma última reflexão sobre a autocrítica e o papel do direito em corrigir seus próprios excessos. No direito contemporâneo, existem mecanismos como as correições, instâncias recursais, e até mesmo tribunais internacionais, que funcionam como formas de controle e supervisão sobre o sistema jurídico, garantindo que abusos de poder sejam corrigidos.
Em "O Alienista", Machado de Assis alerta sobre o perigo de confiar poder demais a uma única autoridade sem supervisão, uma lição que permanece relevante quando discutimos temas como autonomia judicial, psiquiatria forense, e controle social através das leis. A novela nos faz refletir sobre a importância de limitar o poder de figuras de autoridade e de garantir que o direito seja usado como uma ferramenta de justiça, e não de repressão.
Quincas Borba e a Filosofia do Humanitismo no Direito
Em "Quincas Borba", Machado de Assis nos apresenta a filosofia do Humanitismo, uma paródia do positivismo e das teorias sociais da época, que defende a ideia de que "ao vencedor, as batatas" – uma metáfora para a luta pela sobrevivência e o triunfo do mais forte. A filosofia do Humanitismo, defendida pelo personagem Quincas Borba, oferece uma perspectiva única para discutir a relação entre poder, justiça e sobrevivência no campo jurídico.
O Humanitismo, ao sustentar que a vida é uma constante batalha em que os mais fortes prevalecem, pode ser visto como uma crítica à aplicação do direito de forma que privilegie os poderosos em detrimento dos vulneráveis. O princípio de "ao vencedor, as batatas" sugere que o direito não deveria ser uma ferramenta de opressão para manter o poder dos mais fortes, mas sim um mecanismo de equidade, que garanta a proteção dos mais fracos. Em um mundo jurídico ideal, o direito serviria para equilibrar as desigualdades naturais e sociais, mas, como Machado sugere, muitas vezes as leis apenas reforçam as divisões de poder existentes.
Além disso, a obra questiona o determinismo social e o papel das leis na legitimação desse processo. A filosofia do Humanitismo justifica a opressão como uma consequência inevitável da luta pela sobrevivência, e, de certa forma, o direito, quando mal aplicado, pode reforçar essa narrativa. Leis que favorecem determinados grupos ou classes sociais acabam naturalizando a desigualdade, criando um ciclo de exclusão que perpetua a injustiça.
No entanto, o Humanitismo também nos leva a refletir sobre a competição no mercado jurídico, em que advogados, promotores e juízes frequentemente disputam pela vitória de seus argumentos ou clientes. A ideia de que "vencer" é o objetivo final, muitas vezes pode obscurecer o verdadeiro propósito do direito, que é promover a justiça. Machado de Assis nos convida, através de Quincas Borba, a questionar o que significa realmente "vencer" no contexto do direito e se o triunfo de uma das partes sempre implica que a justiça foi feita.
Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Egoísmo Jurídico
"Memórias Póstumas de Brás Cubas" é uma obra singular, não só pela sua narrativa inovadora, mas também pela abordagem crítica que Machado de Assis faz do egoísmo humano e suas consequências. A obra é narrada por um protagonista morto, Brás Cubas, que, com um olhar cínico e desencantado, relata sua vida, destacando suas falhas e a superficialidade de sua existência. Ao longo da narrativa, percebemos um homem profundamente centrado em si, cujas ações são motivadas pelo interesse próprio, sem consideração pelos outros. Esse individualismo radical serve como base para uma crítica ao egoísmo jurídico, que ainda permeia muitos sistemas legais.
No direito contemporâneo, o conceito de egoísmo jurídico pode ser entendido como a aplicação das leis de maneira que favoreça os interesses pessoais em detrimento da justiça social e coletiva. No mundo de Brás Cubas, as relações humanas são movidas por interesses, manipulações e estratégias, algo que se reflete nos sistemas jurídicos onde o capitalismo jurídico transforma o direito em um campo de batalha pelo interesse privado, em vez de ser uma busca por equidade. A obra de Machado de Assis nos alerta para o perigo de uma sociedade onde o direito é usado como instrumento de poder individual e de manutenção de privilégios.
Brás Cubas, em sua narrativa, revela que suas ações, sejam no âmbito pessoal ou social, são sempre direcionadas pela busca de benefício próprio. Ele está interessado em manter seu status e poder, mesmo que para isso precise prejudicar os outros. Essa postura se reflete no direito atual, especialmente em questões que envolvem a exploração econômica, como no caso das disputas patrimoniais, ações de usucapião, ou até mesmo nas regras de herança, onde muitas vezes o objetivo principal é preservar os interesses de um pequeno grupo, em detrimento de uma distribuição justa de recursos.
Além disso, a obra sugere que o sistema jurídico, quando movido por interesses egoístas, pode se tornar uma ferramenta de opressão disfarçada de legalidade. Em "Memórias Póstumas", Brás Cubas não se envergonha de suas atitudes, e o sistema social que o cerca também não o condena. Isso levanta a questão sobre a capacidade do direito de punir comportamentos antiéticos que, embora não sejam necessariamente ilegais, ferem os princípios de justiça e equidade. A crítica de Machado de Assis se estende ao uso do direito como um escudo para atitudes egoístas, um problema que, em muitos casos, ainda persiste.
Outro aspecto que a obra traz à tona é a burocracia jurídica e como ela pode ser manipulada por aqueles que têm poder e recursos. Brás Cubas, sendo de uma família rica e influente, navega facilmente por entre as complexidades sociais sem grandes obstáculos, sugerindo que o acesso ao poder legal é muitas vezes restrito aos que podem pagar por ele. No direito atual, isso se reflete no conceito de justiça elitizada, onde aqueles com mais recursos conseguem melhores advogados, acesso a especialistas e, muitas vezes, decisões mais favoráveis.
A narrativa de Brás Cubas também nos faz refletir sobre o papel do arrependimento no sistema jurídico. Embora ele tenha uma visão cínica e não expresse remorso genuíno, o fato de que ele, enquanto narrador morto, revele suas falhas e egocentrismo pode ser visto como uma forma de expiação. No direito penal, o arrependimento tem um lugar importante, como em situações de delação premiada ou redução de penas em função do reconhecimento dos próprios erros. Contudo, Machado nos provoca a questionar se esse tipo de arrependimento é realmente eficaz ou apenas mais uma estratégia para evitar punições mais severas, algo que também pode ser criticado no contexto jurídico contemporâneo.
Além disso, o tema da imortalidade na obra, em que Brás Cubas busca criar um "emplastro" para alcançar a imortalidade, pode ser interpretado simbolicamente no direito como a busca pela perpetuação dos privilégios. Muitas vezes, leis e decisões são elaboradas de forma a garantir que certos grupos continuem a usufruir de benefícios indefinidamente, passando esses privilégios de geração em geração. No direito moderno, isso pode ser observado nas disputas sobre heranças, propriedades e regalias fiscais, que frequentemente são desenhadas para preservar o status quo de classes dominantes.
Por fim, o cinismo de Brás Cubas, ao refletir sobre sua vida e sobre o mundo ao seu redor, nos desafia a olhar criticamente para o sistema jurídico e seus próprios paradoxos. A obra sugere que, muitas vezes, o direito, assim como a vida de Brás Cubas, é uma construção que serve mais aos interesses dos poderosos do que aos valores de justiça. Esse cinismo, porém, não deve ser visto apenas como uma crítica destrutiva, mas como um convite à reflexão: como podemos melhorar o sistema jurídico para que ele, de fato, sirva a todos de maneira equitativa e justa?
Conclusão
Ao analisar as obras de Machado de Assis sob a ótica do direito, podemos perceber como o autor foi capaz de capturar, com uma sutileza profunda, as contradições, limitações e potencialidades do sistema jurídico e suas implicações no comportamento humano. As relações de poder, o controle social, a exclusão dos marginalizados e o uso egoísta das leis são temas recorrentes nas obras "Helena", "Iaiá Garcia", "Quincas Borba", "Dom Casmurro", "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "O Alienista". Essas narrativas nos forçam a questionar o papel do direito como ferramenta de justiça social e sua capacidade de mediar conflitos humanos de forma equilibrada e inclusiva.
Cada obra revela um aspecto da experiência jurídica que permanece relevante nos dias de hoje, seja no que diz respeito ao preconceito racial e de gênero, ao controle da loucura, à manutenção do poder por meio das leis, ou à perpetuação de privilégios. Machado de Assis, com seu olhar crítico e irônico, nos desafia a repensar o sistema jurídico não apenas como uma estrutura formal, mas como uma expressão das relações de poder e das dinâmicas sociais que moldam nossas vidas.
No contexto atual, essas reflexões continuam a ecoar, especialmente em debates sobre justiça social, igualdade de direitos, e o papel do Estado em garantir que o direito seja uma ferramenta para todos, e não apenas para uma minoria privilegiada. O olhar de Machado sobre o direito nos faz lembrar que as leis, em última instância, devem refletir os valores de uma sociedade justa, equilibrada e humana.