RESUMO
A trajetória do trabalho humano tem sido marcada por mudanças influenciadas tanto pelo avanço dos meios de produção quanto pelas demandas sociais. No Brasil, o crescimento do desemprego empurrou muitos para a informalidade, especialmente em setores como transporte de passageiros e entrega de comida e objetos por aplicativos. Este artigo busca examinar o impacto da uberização na relação trabalho, focando nos elementos que caracterizam vínculo empregatício, considerando a doutrina e a jurisprudência e possíveis novos rumos. A metodologia utilizada é uma combinação da abordagem indutiva, com auxílio de pesquisas bibliográficas, dados estatísticos e jurisprudência. O estudo analisa decisões dos tribunais superiores e o que define vínculo empregatício. A uberização com sua flexibilização e desregulamentação traz desafios regulatórios e econômicos. Os casos judiciais evidenciam divergências sobre o reconhecimento do vínculo entre motoristas e plataformas digitais, como decisões contraditórias. A decisão do Tema 1291 que está por vir poderá redefinir a legislação trabalhista em relação às novas modalidades de trabalho. Embora a uberização ofereça uma alternativa de emprego, também apresenta riscos de precarização. Portanto, é fundamental uma abordagem equilibrada que assegure os direitos dos trabalhadores ao mesmo tempo em que aproveita os benefícios da inovação tecnológica e do livre mercado.
Palavras-chave: Uberização; Plataformas digitais; Vínculo empregatício; Competência.
ABSTRACT
The trajectory of human labor has been shaped by changes influenced by advancements in production methods and social demands. In Brazil, rising unemployment has pushed many into informal work, particularly in sectors such as passenger transportation and food and goods delivery through apps. This article aims to examine the impact of uberization on the work relationship, focusing on the elements that characterize an employment relationship, considering doctrine, jurisprudence, and potential new directions. The methodology used is a combination of an inductive approach supported by bibliographic research, statistical data, and case law. The study analyzes decisions from higher courts and examines what defines an employment relationship. Uberization, with its flexibility and deregulation, presents regulatory and economic challenges. Judicial cases reveal divergences regarding the recognition of employment relationships between drivers and digital platforms, including contradictory decisions. The upcoming decision on Topic 1291 may redefine labor legislation concerning new forms of work. Although uberization offers an employment alternative, it also poses risks of precariousness. Therefore, a balanced approach is essential to protect workers' rights while harnessing the benefits of technological innovation and the free market.
Key words : Uberization; Digital platforms; Employment relationship; Jurisdiction.
SUMÁRIO: I NTRODUÇÃO ; 1 TRABALHADORES EM PLATAFORMA DE APLICATIVO - UBERIZAÇÃO; 1.1 DEFINIÇÃO DE UBERIZAÇÃO ; 1.2 O PERFIL DOS TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DIGITAIS DE APLICATIVOS NO BRASIL ; 2 O VÍNCULO EMPREGATÍCIO, OS REQUISITOS PARA A SUA CONFIGURAÇÃO E A RELAÇÃO ENTRE SEUS ELEMENTOS E OS TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DIGITAIS ; 2.1 INTRODUÇÃO E OS CRITÉRIOS DA RELAÇÃO DE EMPREGO ; 2.2 A RELAÇÃO DE EMPREGO E OS TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DIGITAIS ; 3 POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES A RESPEITO DA MATÉRIA ; 3.1 A COMPETÊNCIA DE DECISÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO E SUA ATUAÇÃO EM CASOS QUE ENVOLVAM TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DE APLICATIVO; 3.2 ANÁLISE A RESPEITO DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ENVOLVENDO TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DIGITAIS E DO RE 1446.336 - TEMA 1291; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
A evolução do mercado de trabalho no final do século XX e ao longo do século XXI foi fortemente impulsionada pelos avanços tecnológicos e pelas novas formas de comunicação, promovendo transformações que desafiam o modelo tradicional de emprego. O ideal do “trabalhar para si mesmo” e a expansão das plataformas digitais e aplicativos de trabalho, em fenômeno conhecido como “uberização”, emergiram como alternativas para um número crescente de trabalhadores, oferecendo uma aparente autonomia e uma oportunidade de renda adicional. Contudo, essa aparente liberdade esconde desafios trabalhistas complexos: muitos trabalhadores são classificados como autônomos, desprovidos dos direitos garantidos pela legislação trabalhista formal, o que os coloca em condições precárias, sem garantias como seguro-desemprego ou férias.
No Brasil, onde o mercado informal alcança 39,1%1 e milhões enfrentam o desemprego, o estudo do trabalho em plataformas é ainda mais relevante. No primeiro trimestre de 2023, o país registrava uma taxa de informalidade de 39,1%, com mais de 8% de pessoas desempregadas e um rendimento médio de R$ 2.880. Este cenário evidencia a necessidade urgente de discutir o enquadramento legal desses trabalhadores, que atuam em uma “zona cinzenta” onde surgem dúvidas: São realmente autônomos? Existe subordinação ou vínculo empregatício? Como deve a legislação trabalhista se adaptar a essas novas formas de ocupação?
Neste contexto, o trabalho irá explorar o conceito de uberização, suas origens e relevância, além de discutir as características das plataformas digitais e seus impactos no direito trabalhista. Com uma abordagem indutiva, o suporte de dados estatísticos, as análises bibliográficas e decisões da Justiça do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal, buscaremos entender as relações de emprego e os desafios legais impostos pelo trabalho em plataformas, com destaque para as interpretações dos tribunais superiores e a necessidade de uma adaptação jurídica que reflita essa realidade em transformação.
1 TRABALHADORES EM PLATAFORMA DE APLICATIVO - UBERIZAÇÃO
1.1 DEFINIÇÃO DE UBERIZAÇÃO
A uberização é um termo que nasceu dos serviços de transporte de passageiros oferecidos por empresas como a Uber, Lyft, Ifood, 99pop e similares. Porém, com a grande popularidade desse tipo de serviço, o termo ganhou repercussão e agora é usado para definir uma espécie de modelo de negócios em que grandes corporações intermediam serviços entre prestadores de serviços e os consumidores finais, através de plataformas de aplicativo, geralmente via telefone celular, indo além de transporte de passageiros, incluindo entrega de alimentos e objetos, aluguel de imóveis, serviços de beleza e etc.
Segundo a Associação Brasileira de Letras (2020), com relação ao termo uberização, convém destacar que o mesmo é:
Termo usado para indicar a transição para o modelo de negócio sob demanda caracterizado pela relação informal de trabalho, que funciona por meio de um aplicativo (plataforma de economia colaborativa), criado e gerenciado por uma empresa de tecnologia que conecta os fornecedores de serviços diretamente aos clientes, a custos baixos e alta eficiência; por extensão, designa a adoção deste tipo de relação (na esfera econômica, política, etc.), com as implicações suscitadas por este novo formato. (Também usado com sentido metafórico.) [O termo é derivado do nome da empresa Uber Technologies Inc., uma multinacional americana que introduziu este novo tipo de negócio em vários setores e serviços.
No contexto do cada vez mais crescente número de smartphones de amplo acesso à população, a empresa Uber surge nos Estados Unidos da América, no ano de 2008. A ideia da empresa parece ser bem simples, em resumo: Nas grandes cidades há pessoas que têm tempo disponível para trabalhar como motorista freelancer e há um potencial número de passageiros.
As pessoas diariamente se deslocam e analisam as opções disponíveis, no caso da Uber, com poucos toques no celular o motorista chega até o solicitante e o deixa no local ordenado. O pagamento pode ser abatido no cartão do cliente e o motorista recebe o valor já com o desconto percentual da Uber. Com esse modelo de negócio a Uber já alcançou, em 2017, um valor de mercado de 70 bilhões de dólares (SLEE, 2017)2 e contam com 5 milhões de brasileiros que geraram renda em algum momento com a plataforma (UBER, 2024)3.
A “uberização do mercado de trabalho” se refere à aplicação de modelos de negócios aparentes ao da Uber, na qual os trabalhadores são contratados como trabalhadores/prestadores de serviço de forma independentes, sem os mesmos direitos e proteções garantidos aos trabalhadores formais. Assim, precarizando os trabalhadores, por terem baixa remuneração, ausência de benefícios legais e segurança no ambiente de trabalho.
Em 2023, no Brasil, existiam 1.660.023 de pessoas trabalhando como motoristas ou entregadores via aplicativo (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia 2023)4. Esse modelo de negócio ganhou e continua ganhando bastante força, por proporcionar uma aparente flexibilidade e renda extra para os motoristas e empregadores. Entretanto, uma outra vertente desse modelo vem gerando discussões sociais e jurídicas que estão relacionadas. As vantagens estratégicas das empresas baseadas no modelo de uberização, ao transferirem a maior parte dos custos operacionais para os trabalhadores, que não apenas fornecem suas força de trabalho, mas também os recursos necessários para a execução dos serviços, exemplificam uma realidade de precariedade laboral. Esse tipo de ocupação, por um lado, amplia a entrada no mercado de trabalho, mas por outro, cria um precedente de relações laborais desprovidas de proteção, onde o risco do negócio é repassado ao trabalhador, gerando um cenário de incertezas e fragilidades jurídicas (Ferraz & Franco 2019).5
1.2 O PERFIL DOS TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DIGITAIS DE APLICATIVOS NO BRASIL
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, divulgou estatísticas de pesquisa realizada no âmago do módulo Teletrabalho e Trabalho por Meio de Plataformas Digitais da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD contínua 2023)6, promovendo um profundo entendimento do perfil e da realidade desses trabalhadores.
Em suma, podemos verificar que a região norte possui a maior porcentagem de trabalhadores em plataformas de aplicativo de transporte particular de passageiros, sendo uma região notadamente conhecida no âmbito nacional por sua precariedade e dificuldade de emprego, o que pode ser um fato que contribui para esse resultado.
A maior parte dos trabalhadores são homens, representando mais de ¾ da força de trabalho. Uma explicação para esse parâmetro é que a maior parte dos trabalhos em plataformas de aplicativo se dá pela condução de automóveis e motocicletas, ocupações de interesse majoritariamente masculino. Já no aspecto etário, aliado ao sexo, se retira que a grande parte dos trabalhadores em plataformas de aplicativo são homens entre 25 e 59 anos de idade. Com 61,3% dos trabalhadores já com ensino médio completo ou com ensino superior incompleto, junto com 14,2% possuindo diplomas universitários, o setor mostra uma diversidade educacional e reflete como esses serviços por aplicativo atraem pessoas de variados níveis de formação, mostrando que a busca de flexibilidade e mudança em suas carreiras talvez sejam um indicativo de oportunidade profissional. Assim como, 8,1% dos trabalhadores sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto sustentam a acessibilidade do setor.
Essa característica das plataformas de aplicativos as transforma em uma escolha atrativa para um amplo espectro de perfis, desde alunos que procuram uma fonte de aumentar sua renda até pessoas que veem nesses serviços uma opção de trabalho mais acessível. Como mencionado, entre as pessoas com o nível superior completo, o rendimento desses trabalhadores era 19,2% inferior ao daqueles que não trabalhavam por meio de aplicativos de serviços. Uma explicação para a diferença é que os trabalhadores plataformizados tem uma jornada 6,5 horas mais longa que os demais, assim diminuindo o ganho por hora.
O regime de trabalho é preponderantemente autônomo, 77,1% do total. Esse percentual elevado reflete a perspectiva e a argumentação das empresas do setor, que destacam a flexibilidade e a autonomia dessa forma de trabalho, onde os colaboradores podem determinar seus próprios horários e não possuem vínculo com um empregador específico, podendo trabalhar para diversas plataformas diferentes. Por outro lado, 6,6% dos profissionais são classificados como empregadores, o que indica que possuem seus próprios negócios ou administram suas próprias equipes nas plataformas, sugerindo um sedimento de empreendedorismo desse setor.
Segundo o estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2023)7, apenas 23% dos entregadores e motoristas de aplicativos ligados a plataformas digitais contribuem para a Previdência, significando um quantitativo ínfimo dentre os trabalhadores. Ou seja, 77% que não contribuem com a Previdência Social, além de não terem seu tempo de trabalho contabilizado para a aposentadoria, não estão protegidos em casos de acidentes e/ou doenças, não recebem salário-maternidade e não deixam pensão por morte para os descendentes. Além, claro, de valores potenciais que não entram para os cofres públicos e voltam em benefícios para a população.
Para terminar, os trabalhadores com vínculo formal, que representam 5,9% do total, são aqueles que possivelmente em função de acordos específicos com empresas que procuram incorporar esse modelo flexível na sua estrutura convencional, mantêm algum nível de formalização trabalhista.
Ao enfrentar esses desafios, é essencial adotar uma abordagem holística, que esclareça a particularidade dessas relações laborais e promova normas e regulamentações que garantam uma remuneração adequada, segurança e direitos básicos para os trabalhadores na era digital. A salvaguarda dos direitos fundamentais deve ser uma prioridade para assegurar que a inovação econômica não ocorra às custas do bem-estar dos trabalhadores.
2 O VÍNCULO EMPREGATÍCIO, OS REQUISITOS PARA A SUA CONFIGURAÇÃO E A RELAÇÃO ENTRE SEUS ELEMENTOS E OS TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DIGITAIS
2.1 INTRODUÇÃO E OS CRITÉRIOS DA RELAÇÃO DE EMPREGO
Antes de adentrar os os critérios da relação de emprego, é importante que façamos um breve contexto socioeconômico, tendo em vista que a relação de emprego é algo central na vida das pessoas, especialmente nos últimos séculos. Assim corrobora Delgado:
"Passados duzentos anos do início de sua dominância no contexto socioeconômico do mundo ocidental, pode-se afirmar que a relação empregatícia tornou-se a mais importante relação de trabalho existente no período, quer sob a perspectiva econômico-social, quer sob a perspectiva jurídica. No primeiro plano, por se generalizar ao conjunto do mercado de trabalho, demarcando uma tendência expansionista voltada a submeter às suas regras a vasta maioria de fórmulas de utilização da força de trabalho na economia contemporânea. No segundo plano, por ter dado origem a um universo orgânico e sistematizado de regras, princípios e institutos jurídicos próprios e específicos, também com larga tendência de expansionismo — o Direito do Trabalho”.8
Esse tipo de vínculo não apenas se difundiu e se tornou comum, mas também deu origem a um sistema legal especializado e dinâmico, o Direito Trabalhista. O vínculo empregatício, ao se estabelecer, começou a influenciar diretamente o panorama das relações de trabalho, afetando de maneira significativa tanto a organização econômica quanto as normas jurídicas de diversos países e claro, no Brasil não foi diferente. A forma como foi se adaptando a legislação nacional com as novas formas de trabalho e a proteção dos direitos dos trabalhadores são exemplos de como essa relação influencia as políticas públicas, econômicas e previdenciárias. Assim, a caracterização da relação trabalhista, como Delgado observa, é ímpar para o Direito do trabalho:
"A caracterização da relação empregatícia é, portanto, procedimento essencial ao Direito do Trabalho, à medida que propiciará o encontro da relação jurídica básica que deu origem e assegura desenvolvimento aos princípios, regras e institutos justrabalhistas e que é regulada por esse ramo jurídico especial. É procedimento com reflexos no próprio Direito Processual do Trabalho, uma vez que este abrange, essencialmente, as lides principais e conexas em torno da relação de emprego (a ampliação da competência da Justiça do Trabalho pela EC n. 45/2004 — art. 114, I a IX, CF/88 — não retirou a hegemonia das lides empregatícias no âmbito da Justiça Especializada)”.9
Então, assim como colocado acima, a caracterização da relação de emprego afeta também o Direito Processual Trabalhista, que por óbvio vai regular e lidar com os litígios relacionados a essa relação. A clareza na definição do vínculo empregatício possibilita que os tribunais especializados reconheçam os pontos principais nos litígios trabalhistas, facilitando uma solução mais rápida e equânime das controvérsias. Além disso, essa distinção garante que os direitos dos empregados sejam devidamente resguardados e que os empregadores possam cumprir suas responsabilidades legais sem incertezas sobre a existência ou não de uma relação de trabalho formal.
A relação empregatícia está caracterizada por alguns critérios específicos e os artigos 2º e 3º da CLT. De início, nota-se que os artigos definem os principais agentes da relação de emprego: O empregador e o empregado. Destrinchando o artigo, uma das primeiras características para a definição da relação de emprego é a pessoalidade. A pessoalidade significa que o trabalho deve ser prestado por uma pessoa física (pessoa natural). Logicamente, a pessoa jurídica não pode ser considerada empregado. Delgado acrescenta de maneira clara o porquê do trabalhador ter de ser, sempre, pessoa natural:
"Os bens jurídicos (e mesmo éticos) tutelados pelo Direito do Trabalho (vida, saúde, integridade física e psíquica, segurança, igualdade em sentido substancial, bem estar, lazer, etc.) importam à pessoa física, não podendo, em grande parte, ser usufruídos por pessoas jurídicas. Assim, a figura do trabalhador há de ser, sempre, uma pessoa natural”.10
Portanto, a pessoalidade é fundamental para garantir que os direitos trabalhistas sejam aplicáveis e eficazes. Essa característica também garante que o trabalho seja executado por um indivíduo específico, no caso, sua substituição não é permitida, salvo em excepcionalidade e temporariedade, assim, protegendo o trabalhador. Além da pessoalidade, a permanência ou continuidade no serviço é outro fator relevante. A CLT aborda esse aspecto de maneira negativa, referindo-se a não eventualidade. Calvo aduz:
"A continuidade revela-se pela permanência em certo decurso de tempo do labor prestado pelo empregado ao seu empregador. Continuidade é trabalho dia após dia, a CLT não adotou esta teoria para conceituar empregado, portanto, adota a teoria da permanência, ou seja, basta que o empregado trabalhe no local sem eventualidade. Pelo princípio da continuidade da relação de emprego, o empregado vincula-se ao empregador por prazo indeterminado. A CLT tratou o evento de forma negativa, a não eventualidade, enquanto a lei do empregado doméstico fala em forma contínua. É necessário que o trabalho tenha caráter de permanência, ou seja, não pode ser esporádico ou eventual”.11
Assim, a não eventualidade assegura que a relação de emprego seja duradoura, sendo diferente de outras formas de prestação de serviços que são esporádicas ou ocasionais. De certa maneira, garantindo uma estabilidade do vínculo empregatício, oportunizando segurança tanto para o empregado quanto para o empregador. Continuando, a subordinação é mais um elemento importantíssimo na definição da relação de emprego. Calvo define a subordinação como:
"A palavra subordinação é de etimologia latina e significa sub = baixo e ordinare = ordenar. Portanto, o seu significado é de submetimento, sujeição, dependência, vocábulo este último preferido pela CLT. A doutrina reconhece quatro teorias sobre a subordinação trabalhista: a) jurídica (decorre do contrato de trabalho); b) econômica (decorre do pagamento do salário); c) técnica (decorre do uso dos meios de produção); e d) social (decorre da posição social do empregado dentro da empresa como instituição). A doutrina trabalhista majoritária defende que a teoria predominante é a da subordinação jurídica”.12
Portanto, na subordinação o empregado está sujeito às ordens, controle e punição do empregador, culturalmente caracterizado pela hierarquia. Das quatro categorias acerca da subordinação, a jurídica é a mais aceita amplamente pelo doutrina predominante, pois surge diretamente do contrato de emprego, atribuindo ao empregador o poder de direção e supervisão sobre o trabalho realizado. Essa perspectiva doutrinária é especialmente significativa para o contexto do trabalho em plataformas de aplicativos.
O trabalho realizado pelo empregado deve haver uma contraprestação por parte do empregador, caracterizando uma troca econômica e assim, surgindo o elemento da onerosidade. Geralmente, o salário é a contraprestação essencial da relação de emprego, pois é fundamental para a subsistência do trabalhador e sua inserção na vida econômica. É o que dispõe Delgado:
“A onerosidade, como elemento fato-jurídico componente da relação de emprego, não deve, contudo, ser enfocada sob a ótica do trabalho realizado ou mesmo sob a ótica do tomador de serviços. É que, considerado sob qualquer dessas duas perspectivas, o elemento fático-jurídico da onerosidade estaria sempre presente, desde que houvesse prestação de trabalho por alguém a outrem: afinal, todo trabalho - mesmo simples - é passível de mensuração econômica no contemporâneo sistema de mercado (...) Deve a onerosidade, portanto, ser enfocada sob a ótica do prestador de serviços: apenas nessa perspectiva é que ela constitui elemento fático-jurídico da relação de emprego”.13
Enfim, a caracterização da relação de emprego envolve uma relação simbiótica de pessoalidade, não eventualidade (ou continuidade), subordinação e onerosidade. Esses elementos formam a base para a proteção dos direitos trabalhistas. Cada um desses fatores exerce uma função essencial na determinação e preservação de uma relação de trabalho justa e equilibrada. Entender esses elementos é crucial para aplicar corretamente a legislação trabalhista e para garantir condições de trabalho dignas e justas.
2.2 A RELAÇÃO DE EMPREGO E OS TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DIGITAIS
A definição da natureza da relação laboral entre os trabalhadores e as plataformas de aplicativo é uma questão intrincada que envolve, principalmente, análises jurídicas da legislação. A falta de regulamentação específica na legislação brasileira é o principal ponto fraco que permite a continuidade desse modelo, acabando por ignorar os direitos fundamentais assegurados pela CLT e leis extravagantes. O desenvolvimento da relação de emprego ao longo dos séculos demonstra a importância de proteger os direitos dos trabalhadores e garantir as condições justas de trabalho, que foram conquistados depois de muita reivindicação. Portanto, a contínua adaptação do Direito do Trabalho é essencial para enfrentar novos desafios e manter a intervenção estatal de forma jurídica equânime no mercado de trabalho.
A atualização da subordinação, como a subordinação algorítmica, reflete as transformações nas formas de trabalho, especialmente com o crescimento do trabalho à distância e outras modalidades flexíveis. A interpretação da legislação vem sendo ajustada para abranger novas maneiras de supervisão e monitoramento, preservando o conceito central da subordinação jurídica, mas reconhecendo as especificidades das relações laborais modernas.
A Uber defende que seus motoristas são contratados como trabalhadores autônomos, o que os isenta dos benefícios e direitos trabalhistas normalmente atribuídos a funcionários. Contudo, críticos apontam que a relação entre Uber e seus motoristas cumpre os requisitos que definem um vínculo empregatício, como o controle sobre a jornada, a dependência financeira e a subordinação. Aduz Antunes:
“1) As supostas novas formas de organização do trabalho associadas ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) e às empresas que se apresentam como plataformas ou aplicativos são, na verdade, estratégias de contratação e gestão do trabalho que mascaram o assalariamento presente nas relações que estabelecem. A negação do assalariamento é elemento central da estratégia empresarial, pois, sob a aparência de maior autonomia (eufemismo para burlar o assalariamento e efetivar a transferência dos riscos), o capital busca, de fato, ampliar o controle sobre o trabalho para recrudescer a exploração e a sujeição. 2) A recusa da condição de empregador como estratégia de gestão e controle do trabalho é um fenômeno praticado há décadas; porém, a utilização das TIC por plataformas e aplicativos vem potencializando e aprofundando exponencialmente esse processo. Isso ocorre tanto quando o discurso empresarial propaga a narrativa de que os trabalhadores/as seriam seus clientes (desprovidos, portanto, de relações de trabalho efetivas) quando utiliza essas novas ferramentas de processamento e transmissão de dados para subordinar e sujeitar os trabalhadores, ampliando os níveis de exploração da força de trabalho. 3) Vivemos um momento de contradição quase irônica do capitalismo con-temporâneo. Do ponto de vista técnico, a utilização das TIC na gestão do trabalho torna a identificação e a efetivação de direitos aos/às trabalhadores/as mais fácil do que em qualquer outro período da história. Contudo, o discurso de que estamos diante de novas formas de trabalho, não sujeitas à regulação protetiva (ou o de que não seria possível existir tal regulação), tem desempenhado papel fundamental para legitimar, incentivar, cristalizar e acentuar a falta de limites à exploração do trabalho e à precarização de suas condições. A mesma regulação tecnicamente mais fácil é apresentada pelas”.14
Torres, Magalhães, Gomes e Souza mostram que o trabalho na plataforma de aplicativo Rappi "[...] deve ser desenvolvido por pessoa física e que a obrigação contratual é de natureza personalíssima, satisfazendo os requisitos do trabalho prestado por pessoa física e da pessoalidade"15. Eles também observam que existem "uma série de comandos sobre o trabalho dos entregadores, como atividades diretivas, regulamentadoras, fiscalizatórias, investigativas e disciplinares do serviço"16, assim, demonstrando um forte indício de uma possível subordinação.
Eles também mencionam que a onerosidade é outro aspecto que se mostra presente no caso, como destacam: "É evidente, também, a presença da onerosidade, que se perfaz como requisito da relação empregatícia na medida em que o preço das entregas é ajustado de forma unilateral pela empresa”17. Mencionam também que a habitualidade é notável a partir da extrapolação da duração normal da jornada de trabalho constitucional, substanciada pela ausência de repouso remunerado e baixa remuneração, assim, criando uma necessidade de jornadas excessivas. Essa observação foi comprovada e se correlaciona com a pesquisa do IBGE mencionada no capítulo passado.
Já Delgado aborda a prática de “pejotização”, pois “a utilização do contrato de sociedade como instrumento simulatório, voltado a transparecer, formalmente, uma situação fático-jurídica de natureza civil/comercial, embora ocultando uma efetiva relação empregatícia”18. Também destaca que na realidade, existe limitação à autonomia de vontade do prestador de serviços na relação empregatícia, pois “os princípios da imperatividade das normas laborativas e da indisponibilidade de direitos trabalhistas tornam inválida semelhante supressão”19. Existe uma discussão envolvendo isso, pois houve caso em que a plataforma incentivou em seu site aos seus “parceiros” torna-se pessoas jurídicas, na qual ensina a como tornar-se Microempreendedor Individual20.
Miranda, Oliveira e Figueiredo identificam com clareza a relação de emprego em plataformas como a Ifood, pois “o serviço é realizado por pessoa física, existindo subordinação entre a Ifood e o entregador (...) apesar de assumir parte dos custos, a mera transferência de gastos com instrumentos de trabalho não pode levar ao afastamento da relação de emprego, ponto já admitido pela própria Lei 13.467/2017 para o teletrabalho”21. Além disso, ressalta-se que foi identificado que a habitualidade e impessoalidade, já que o cadastro é intransferível e a onerosidade é evidente pelo pagamento direto pela Ifood. Com isso, fica difícil sustentar o argumento de que por o trabalhador em plataforma de aplicativo arcar com parte dos custos de operação, em especial pelo meio utilizado, não se caracterizaria a relação de emprego.
O fato de que essas inovações nas formas de organização do trabalho, especificamente quando associadas ao uso das Tecnologias de Informação e Comunicação - TIC, são, na verdade, estratégias que sombreiam a condição de relação empregatícia. A resistência das empresas em admitir a condição de empregador é uma tática voltada a ampliar o controle sobre o trabalho, alegando a proporção de autonomia dos trabalhadores. O uso intensivo das TIC´s por plataformas e aplicativos reforça essa tendência, tanto ao promover a ideia de que os trabalhadores são meros clientes sem vínculos laborais formais, quanto ao utilizar essas ferramentas para subordiná-los e controlá-los.
A existência de subordinação algorítmica, se refere justamente a influência dos algoritmos dessas grandes corporações na organização e controle do trabalho dos motoristas/entregadores e etc. Mesmo que haja autonomia e não exclusividade (que em nada interfere na característica da relação de emprego), não é suficiente para afastar a configuração de emprego.