3 POSICIONAMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES A RESPEITO DA MATÉRIA
3.1 A COMPETÊNCIA DE DECISÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO E SUA ATUAÇÃO EM CASOS QUE ENVOLVAM TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DE APLICATIVO
O alcance e complexidade da competência da Justiça do Trabalho foram historicamente sendo moldados na Constituição de 1988, pois a Carta Magna estabeleceu uma ampla gama de atuação dessa esfera jurídica em seu art. 114.
Dessa forma, a lei maior brasileira reflete um entendimento abrangente do papel da seara judiciária trabalhista, incluindo até a resolução de conflitos que ultrapassam as relações trabalhistas mais tradicionais. Dito isso, a gema da competência da justiça do trabalho, conforme destaca Martins22 está relacionada com a existência de um contrato de trabalho formal. Então, sem o contrato, a figura do empregador e do empregado não se configura, não estabelecendo a competência da justiça trabalhista.
Todavia, Sérgio Pinto Martins também aponta que a justiça do trabalho deve tratar de todas as matérias relacionadas ao trabalho, não se limitando apenas aquelas que envolvem formalidade. Ou seja, a figura do contrato como instrumento formal é a essência, mas isso não significa que seja um limitador de atuação.
Vale trazer à tona uma crítica de Martins a redação dos incisos I e IX do art. 114. da CF/88, considerando-os contraditórios, eis que a redação parece confusa, pois indica que a necessidade de legislação adicional para definir a competência do inciso IX, parece redundante se a competência geral já foi estabelecida no inciso I23. Apesar disso, Martins demonstra a importância da legislação complementar que requer uma lei ordinária para elucidar quais as controvérsias específicas devem ser tratadas pela justiça do trabalho24. Essa questão se torna fundamental para a realidade dos trabalhadores em plataformas de aplicativo, pois ainda carece de regulamentação específica, embora atualmente se encontra em pauta no congresso nacional um projeto de lei que regulamenta o trabalho em plataformas de aplicativo, contudo, os classifica como trabalhadores autônomos25. Complementando, Batista evidencia que a mudança mais expressiva na competência da Justiça do Trabalho surgiu com a Emenda Constitucional 45/04. Afirma que:
"Então, mudança realmente expressiva somente surgiu com a EC 45, de 08.12.2004, que simplesmente optou por eliminar os sujeitos da relação para fins de fixação de competência. Desde seu advento, não há mais a presença nem do empregado nem do empregador no art. 114. da CF/1988. A competência foi objetificada, vale dizer, assumiu a dimensão objetiva da relação de trabalho e prescindiu da delimitação pelo prisma dos sujeitos que podem estar envolvidos, reduzindo a importância de saber quem é o empregado e quem é o empregador”.26
Assim, a competência da justiça do trabalho passa por uma ampliação e inclui uma diversidade de sujeitos e naturezas jurídicas, como autônomos, profissionais liberais, voluntários, entre outros.
As análises de Martins e Batista proporcionam uma compreensão completa sobre a forma como as atribuições deste setor do judiciário são definidas, exercidas e interpretadas.
Daí observa-se uma competência expandida e reforçada no contexto específico dos trabalhadores de plataformas de aplicativos, que possibilita uma avaliação livre da relação laboral em sua configuração prática. Independentemente da decisão final, a competência é preservada, ainda que se conclua que o vínculo seja, na realidade, um regime de trabalho autônomo. A atuação da Justiça do Trabalho em situações que envolvem trabalhadores de plataformas de aplicativo apresenta conflitos quanto ao reconhecimento do vínculo empregatício, embora seja em grande medida reafirmada a sua competência.
Nesse diapasão, um caso emblemático julgado pela 8ª turma do TST no Recurso de Revista com Agravo nº TST-RRAg-100853-94.2019.5.01.006727 reconheceu a competência e o vínculo empregatício entre um motorista e a Uber. No julgamento, foi salientado que o controle exercido pela plataforma sobre os aspectos essenciais na execução do serviço, como determinação de jornada e o volume de corridas, apontam para uma relação de dependência. Ainda mais, ficou evidenciada a imposição de condições de trabalho pela empresa, sem espaço para negociação pelo motorista, caracterizando a subordinação. Também foi vista a existência de meios de controle sobre a jornada de trabalho, pois a Uber demonstrou capacidade de monitorar e administrar os horários dos motoristas, mesmo com a atividade sendo externa.
Na mesma toada, o Proc. nº TST-AIRR-10479-76.2022.5.15.01528, destaca muito bem que a justiça do trabalho é o foro competente para resolver disputas sobre a existência de vínculo empregatício entre motoristas de aplicativos e as empresas que operam nas plataformas. A decisão também enfatiza que:
"não é possível atrair ao debate sobre a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar a presente ação os precedentes que tratam de definição de competência criados para tratar de relações de trabalho distintas, como a do Transportador Autônomo de Cargas, regido pela Lei n. 11.442/2007, a exemplo de quaisquer outras".
Assim, reforçando a necessidade de considerar cada caso individualmente, reconhecendo as peculiaridades das relações de trabalho estabelecidas por meio das plataformas digitais. Por fim, a decisão reconheceu os elementos fático-jurídicos da relação de emprego no caso concreto.
"Dessa forma, constata-se que o caso concreto é dotado de todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego: pessoalidade, habitualidade (não eventualidade), onerosidade e subordinação jurídica"
No mesmo entendimento temos outra decisão do TST, no RR 0000443-06.2021.5.21.000129 a qual segue o entendimento da competência da justiça do trabalho em relação aos trabalhadores por aplicativo. A decisão ainda destaca a continuidade da relação laboral, mesmo que mediante o uso de meios informatizados e que mesmo nas relações sofisticadas de parceira laboral, que vem servindo de argumento em muitos casos na justiça do trabalho em plataformas de aplicativo, é essencial reconhecer a competência da Justiça do Trabalho:
“(...) o engajamento em plataformas de ativação por demanda de usuários está longe de reproduzir todas as dimensões inovadoras do chamado 'trabalho 5.0'. No entanto, a função de motorista, embora inserida em uma estrutura moderna, ainda deve ser analisada sob a competência da Justiça do Trabalho (...) Ora, se até mesmo em relações mais sofisticadas de parceria laboral é essencial reconhecer a competência desta Justiça especializada para o processamento de ações entre parceiros e agentes de mercado, com maior razão enxerga-se nessa nova forma de aproximação entre o trabalhador e as oportunidades de trabalho uma semente inexorável da relação de trabalho lato sensu, cuja competência para o exame decorre do critério fixado pelo inciso IX do art. 114. da Constituição Federal, o qual dispõe ser competência desta Justiça especializada
Por fim, a decisão reconheceu que a relação entre a empresa de aplicativo e seus clientes, consumidores finais, é consumerista. Enquanto a relação com seus prestadores de serviço é uma relação de trabalho lato sensu:
"Em termos simples, conclui-se que a relação contratual entre essa empresa e seus clientes é consumerista, ao passo que a sua relação com seus prestadores de serviço é uma relação de trabalho lato sensu, o que atrai a competência da Justiça do Trabalho para quaisquer controvérsias que se travem em torno da relação de parceria do trabalho firmada entre os trabalhadores credenciados e a plataforma de serviços"
Examinados esses casos em que a Justiça do Trabalho assumiu a competência quanto à relação de emprego da situação, passamos agora a outros dois exemplos semelhantes, nos quais ela preservou sua competência, mas afastou o vínculo empregatício dos trabalhadores de plataformas de aplicativo.
Uma decisão da 4ª Turma do TST no processo TST-AIRR-10575-88.2019.5.03.0003. 202230, argumentou que a definição de vínculo empregatício exige a presença dos elementos: pessoalidade, onerosidade, habitualidade e subordinação jurídica. De acordo com esse julgamento, a relação com motoristas de aplicativos não evidencia, especialmente, a subordinação jurídica, pois os motoristas têm autonomia para escolher seus horários, selecionar corridas e não estão sujeitos a uma supervisão direta da plataforma que justificaria o estabelecimento de um vínculo de emprego. Foi observado ainda que a relação entre os motoristas e a plataforma se assemelha mais a uma parceria comercial, onde o motorista retém a maior parte do valor das corridas (entre 75% e 80%), enquanto a empresa recebe uma porcentagem por disponibilizar o meio, a tecnologia.
Por fim, uma segunda decisão vai na mesma ideia, a AIRR 10575882019503000331, levanta alguns questionamentos diferentes:
“O enquadramento da relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a respectiva plataforma deve se dar com aquela prevista no ordenamento jurídico com maior afinidade, como é o caso da definida pela Lei nº 11.442/2007, do transportador autônomo, assim configurado aquele que é proprietário do veículo e tem relação de natureza comercial. O STF já declarou constitucional tal enquadramento jurídico de trabalho autônomo (ADC 48, Rel. Min. Roberto Barroso, DJE nº 123, de 18/05/2020), a evidenciar a possibilidade de que nem todo o trabalho pessoal e oneroso deve ser regido pela CLT”.
Aqui, é posto em debate a Lei nº 11.422/2007, que trata do transportador autônomo, afirmando que ela é muito mais próxima e adequada à descrição e realidade do trabalho realizado pelos motoristas em plataformas de aplicativo. Para reforçar tal afirmação, traz a jurisprudência do STF que abraça a possibilidade de regimes que não aquele próprio da CLT.
As decisões do TST demonstram a complexidade e a diversidade nas interpretações sobre a natureza do vínculo de trabalho entre motoristas de aplicativos e empresas de tecnologia. Enquanto algumas decisões apontam para a existência de um vínculo empregatício fundamentado em controle e dependência, outras enfatizam a autonomia e liberdade dos motoristas, sugerindo um modelo de parceria comercial. Essa dualidade sinaliza a necessidade de uma análise conclusiva por parte do STF ou de alguma regulamentação específica pelo legislador, visando trazer clareza e segurança jurídica às partes envolvidas, embora, seja reconhecido que o TST poderia ter tido a perspicácia de ter se antecipado e já ter trabalhado para o desenvolvimento de uma Súmula ou Orientação Jurisprudencial, embora mesmo que assim tivesse feito, o STF poderia derrubá-la.
3.2 ANÁLISE A RESPEITO DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ENVOLVENDO TRABALHADORES EM PLATAFORMAS DIGITAIS E DO RE 1446.336 - TEMA 1291
Sabe-se que a Reclamação Constitucional - RC, tem sido uma ferramenta de ação judicial utilizada com rotina em casos que envolvem trabalhadores em plataformas de aplicativo e tem especial importância para a competência da Justiça do Trabalho nessa seara específica. Vale trazer em discussão do cabimento da reclamação constitucional, que sobre isso, afirma Silvestre:
“[...] o processo que está sendo objeto de discussão deve estar intimamente conectado, correlacionado, trazer os mesmos fatos, para que possa, então, ter avaliado o seu mérito. Em outras palavras, para que se permita a pejotização, por exemplo, de médicos ou qualquer outro profissional liberal, é imprescindível que nas instâncias ordinárias não tenha sido provado que houve fraude, ou que não estivessem presentes os quatro principais requisitos da relação empregatícia, a saber: onerosidade, pessoalidade, habitualidade e subordinação”.32
Nessa linha, Silvestre explica a “estrita aderência”, no caso específico, o caso da “pejotização”, que é de extrema relevância na questão dos trabalhadores em plataformas de aplicativos. Também se mostra perspicaz a opinião de Akerman, sobre o cabimento da Reclamação Constitucional:
“[...] a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal só tem reconhecido a admissibilidade da reclamação por ofensa a decisão proferida em sede de controle abstrato de constitucionalidade nos casos em que haja “estrita aderência” (ou “identidade estrita”, ou ainda “pertinência estrita”, como por vezes se referem algumas decisões), entre o ato ou decisão reclamados e o paradigma invocado, a indicar a impossibilidade de invocação analógica de precedente do Supremo Tribunal Federal".33
Akerman fala que muitas vezes o que ocorre é que nos casos que veremos a seguir, o STF se abstém de aplicar o veto à espécie de aderência analógica entre a decisão reclamada e o/os paradigma(as) invocado(os):
"Mais recentemente, entretanto, o Supremo tem mitigado este entendimento em casos específicos e, portanto, admitido o conhecimento de reclamação fundada na ofensa à ratio decidendi de decisão proferida em sede de controle abstrato de constitucionalidade"
Feita essa introdução, de no mínimo conturbada questão, analisaremos uma decisão do Supremo Tribunal Federal e verificaremos o entendimento nesse caso concreto envolvendo trabalhadores em plataformas de aplicativo. A primeira Reclamação Constitucional a ser analisada será a RCL 60.347/MG, de relatoria do Min. Alexandre de Moraes, nela teria sido supostamente desrespeitado o que foi decidido na ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252 (Tema 725-RG), na ADI 5835 MC/DF e no RE 688.223 (Tema 590-Rg).
A decisão sustenta que o acórdão do TRT da 3ª Região teria ido de encontro ao entendimento adotado pelo STF no julgamento das decisões suscitadas pelo Reclamante supracitadas. O Min. Relator traz:
Da análise dos paradigmas apontados, é possível afirmar que essa CORTE já se pronunciou em diversos momentos no sentido de que “ a Constituição não impõe uma única forma de estruturar a produção. Ao contrário, o princípio constitucional da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégias empresariais dentro do marco vigente (CF/1988, art. 170). A proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer prestação remunerada de serviços configure relação de emprego” (ADC 48, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/4/2020).34
Além disso, na extensão do seu voto, o referido Min. complementa:
(...) as reclamações já estão quase alcançando os habeas corpus. Dessas reclamações, nós temos quase 40% de reclamações contra decisões da Justiça do Trabalho. Então, infelizmente, apesar de nossas decisões reiteradas, isso vem sendo desrespeitado, o que volta ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. A questão de teoricamente, ideologicamente, academicamente não concordar não justifica a insegurança jurídica que vêm gerando diversas decisões.35
O Acórdão, como já pode-se presumir, julgou procedente o pedido do reclamante de forma que seja cassado o Acórdão impugnado e, desde logo, julgou improcedente a Ação Trabalhista em trâmite no TST, nos termos do voto do Relator.
Para além do caso em tela, temos outras diversas decisões que seguem a mesma linha da citada, como nos casos da RCL 69.693/MG, de relatoria da Min. Cármen Lúcia, da RCL 59.404/MG, de relatoria do Min. Luiz Fux. Entretanto, não cabe trazer aqui como foi o Acórdão e os votos dos Ministros justamente por irem no mesmo entendimento daquela que foi trazida com mais profundidade.
O motivo de escolher a RCL 60.347/MG é porque o STF tomou a questão como tamanho problema que determinou a oficialização do Conselho Nacional de Justiça “com levantamento das reiteradas decisões de descumprimento do que tem decidido esta corte na ADC 48, na ADPF 324, no RE 958.252 (Tema 725-RG), na ADI 5.835 MC e no RE 688.223 (Tema 590-RG)”36. Essa determinação demonstrou uma grande insatisfação do STF em relação ao comportamento da Justiça do Trabalho, apontando mais uma vez as tensões que cercam os dois na questão do trabalho em plataformas de aplicativos.
As Reclamações Constitucionais têm um impacto significativo na competência da Justiça do Trabalho, tanto pelo volume de casos, quanto pela consistência das decisões. Além disso, a recente determinação de notificação ao CNJ sobre decisões da Justiça do Trabalho que desconsideram precedentes, já mencionada acima, reforça essa relevância.
As duas correntes tragas sobre as decisões principais na Justiça do Trabalho sobre o tema - a primeira sendo aquela que entende a competência da Justiça do Trabalho para julgar a relação de trabalho de maneira ampla e reconhecer o vínculo empregatício e a segunda corrente que não afasta a competência da Justiça do Trabalho, mas entende tratar de um tipo diferente de labor daquela da relação de emprego - são afetadas pelas diversas RCL.
De fato, podemos afirmar que isso se dá pelo não cumprimento da Justiça do Trabalho dos precedentes já colocados pelo STF. Contudo, a própria questão da Reclamação Constitucional que origina tudo é controversa, como mostrado, a doutrina afirma que o STF vem alargando a possibilidade de cabimento, em específico na questão da estrita aderência, dessa maneira inadequada, acabando com a competência da Justiça do Trabalho.
Porém, a decisão prestes a ser tomada pelo STF sobre a relação de emprego entre motoristas de aplicativos e as plataformas digitais para as quais prestam serviço promete ser um marco no cenário jurídico e social do Brasil. Ao ser reconhecida a repercussão geral do Tema 129137, em deliberação unânime do plenário virtual, no dia 01/03/2024, ressalta a relevância do debate que vai além das partes diretamente envolvidas, acarretando amplas consequências sociais, econômicas e jurídicas.
Sem dúvida alguma que essa afirmação foi muito acertada, já que de fato a questão em discussão é de suma importância do ponto de vista social, econômico e jurídico. Assim, o Min. vai além, especifica a questão dos debates e divergências jurisprudenciais que foram referidas acima neste trabalho:
“Não se pode olvidar que há decisões divergentes proferidas pelo judiciário brasileiro em relação à presente controvérsia, o que tem suscitado uma inegável insegurança jurídica. As disparidades de posicionamentos, ao invés de proporcionar segurança e orientação, agravam as incertezas e dificultam a construção de um arcabouço jurídico estável e capaz de oferecer diretrizes unívocas para as cidadãs e cidadãos brasileiros”.38
Portanto, o Min. Relator Edson Fachin acertadamente traz a realidade da incerteza jurídica que cerca essa zona cinzenta que circunda o tema. Resta observarmos novamente a aplicação da repercussão geral cumprir exatamente o propósito para o qual foi criada: Estabelecer uma solução mais adequada para a questão do trabalho em plataformas de aplicativos.