Regionalismo Jurídico

04/11/2024 às 12:05
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O processo de desenvolvimento no mundo inteiro acrescentou muitas dimensões ao estudo jurídico. A normatização das relações entre os diferentes Estados gira em torno do avanço da integração que, por sua vez, reúne vários espaços de estrutura intercontinental. À vista disso, o próprio regionalismo é um desses aspectos, sendo um mecanismo que contribui para a construção da relação entre o local e o internacional. (CARNEIRO: 2008a, p. 43).

Ainda que se pondere que a organização das plataformas comunitárias de Estados com menor potência econômica seja uma força antagônica à dominação de países desenvolvidos, há a possibilidade de compreender esses arranjos como parte do fortalecimento da organização da comunidade mundial. E, nesse entendimento, o regionalismo surge como um projeto capaz de auxiliar os Estados a atender às demandas do mercado e do atual milênio, permeando a formação teórica do presente estudo (CARNEIRO: 2008a, p. 44; MEDEIROS: 2003, p. 151 e 152).

As transformações culturais, comerciais, produtivas e financeiras também impactam na formação da sociedade atual, cada vez mais complexa e vasta em conhecimento distribuído em diferentes setores sociais, em múltiplas direções. Nesse sentido, sem esquecer das particularidades do desenvolvimento de cada país e região, os arranjos domésticos estão envolvidos nas remodelações do mundo inteiro. Tais dimensões, objetos de análise científica, modelam a formação do mercado internacional a partir da integração dos mercados locais (MOREIRA: 2010, p. 215-217).

Nesse contexto, as decisões em diferentes setores da comunidade jurídica do mundo inteiro interferem no desenvolvimento dos Estados, o que conduzirá a forma de participação de cada um deles. As necessidades econômicas motivam o nascimento regional de integração, não sendo diferente para o contexto latino-americano (CARNEIRO: 2008, p. 77). Deste modo, surgem propostas integrativas como a Organização dos Estados Americanos, o MERCOSUL e a Comunidade Andina.

Cássio Silva Moreira (2010, p. 225-238) aponta que, diferente do século XIX, com comunidades regionais marcadas pelo isolamento internacional dos blocos, a atual forma de construção desses arranjos dar-se-ia sob um contexto de plataforma aberta ao mercado internacional, melhorando os termos contratuais entre os atores envolvidos. Como resultado, a aproximação jurídica – com a estruturação organizacional internacional, o estudo dos ordenamentos nacionais e a harmonização das normas nos temas pertinentes – serviria como garantia e desembaraço dos proveitos esperados pelas transações internacionais.

Andrew Hurrell (2007, p. 239-243), em sua obra sobre o poder da ordem global, valores e a constituição da sociedade internacional, apresenta algumas possíveis formas de enfrentamento das questões mundiais. O autor, então, apresenta o regionalismo como alternativa e utiliza o termo para indicar a complexidade que envolve as regiões em suas dimensões social, econômica, política e organizacional.

Para Hurrell (2007, p. 239-243), não existe uma região natural, mas sua construção social. Para ele, por ser socialmente formada, seria politicamente contestada. Ato contínuo, ele argumenta que é possível entender o regionalismo em cinco diferentes tipos de processo: (1) regionalização, (2) conscientização e identidade regional; (3) cooperação interestadual, (4) integração liderada pelo Estado; e (5) consolidação regional.

A regionalização está associada à integração social, econômica e cultural, não envolvida a política dos Estados. Quando o conceito é utilizado em termos de comércio internacional, são relevantes os aspectos peculiares de mercado dos Estados participantes e não só a aproximação física dos membros de uma plataforma regional (STRENGER: 2001, p. 462). Por outro lado, a conscientização e a identidade regional abraçam, no discurso, o sentido político dado ao tema, construindo-se a imagem que se deseja para a região. A cooperação interestadual, por sua vez, seguiria diferentes objetivos e é marcada pelos acordos intergovernamentais.

Em continuidade aos tópicos elaborados por Hurrell (2007, p. 239-243), tem-se a integração liderada pelo Estado, que seria, como subconjunto da cooperação interestadual, a definição natural de regionalismo e integração regional – tomada como marco deste estudo – e que é caracterizada pelos arranjos políticos com o intuito de obter benefícios mútuos (circulação de bens, serviços, capital e pessoas). Por fim, a consolidação regional estaria conectada à finalidade da integração e aos benefícios do estabelecimento da comunidade regional.

Hurrell (2007, p. 239-243) destaca, também, que a nova visão do regionalismo é marcada por uma série de lógicas concorrentes e que manifestam a complexidade desse mecanismo. As demandas percorrem diferentes setores das relações, com exigências econômicas, políticas, culturais e sociais. Além disso, a instabilidade e a dinamicidade são inerentes à aproximação regional e não há um único e definidor objetivo capaz de generalizar o desenvolvimento de cada desenho de integração.

Entretanto, é possível compatibilizar a complexidade do regionalismo apontada por Hurrell com a sistematização gradual elaborada por Béla Balassa (1961, p. 2), em sua obra sobre a teoria da integração econômica. Visualizando como uma estrutura econômica, como um modelo a seguir, Balassa classifica as etapas de integração em: área de livre comércio (free- trade area), união aduaneira (customs union), mercado comum (common market), união econômica (economic union) e, por fim, integração econômica completa (complete economic integration).

Como uma construção que objetiva o estabelecimento de uma integração completa, Balassa (1961, p. 2) sugere iniciar a esquematização com o surgimento de uma Área de Livre Comércio, em que as tarifas entre os participantes são abolidas. A União Aduaneira envolve a igualdade de tratamento tarifário entre os membros do bloco com seus parceiros externos ao bloco. O Mercado Comum é definido como uma etapa superior na qual as restrições de movimentação de fatores de produção são extintas.

O passo seguinte é a estruturação da União Econômica, na qual os países objetivam a harmonização tendente a unificar alguns assuntos das políticas econômicas nacionais. Por fim, a integração completa dar-se-ia com a unificação das políticas monetárias, fiscais, sociais e anticíclicas, com a organização de uma autoridade supranacional. Contudo, é possível perceber que a integração, por vezes, não é linear, avançando em temáticas de etapas posteriores quando ainda é resistente na implementação de fases anteriores da sistemática regional.

A perspectiva econômica organiza a integração em etapas definidas, mas não é a única forma de se analisar os arranjos regionais. Também é possível entender esse processo pela dimensão político-institucional e social. Deste modo, é possível observar os múltiplos fenômenos de concertação entre Estados de acordo com as particularidades internas e externas (SZUCKO, 2017, p. 29).

É o caso do Cone Sul, que embora não tenha concluído os propósitos econômicos estabelecidos no artigo 1 do Tratado de Assunção para a Constituição de um Mercado Comum, já estabeleceu, por intermédio da Decisão do Conselho do Mercado Comum nº 64 de 16 de dezembro de 2010, um Plano de Ação para um Estatuto da Cidadania do MERCOSUL. E, em 09 de dezembro de 2020, foi apresentado um projeto de recomendação do Estatuto, compilando as principais normas de interesse do cidadão mercosulino, na Ata nº 15, de 09 de dezembro, da Comissão de Representantes Permanentes (MERCADO COMUM DO SUL, 1991, 2010, 2020) (Quadro 5).

As particularidades do regionalismo jurídico mercosulino exemplificam que as dimensões econômicas e sociais da rota da integração se adaptam às demandas históricas de cada caso. Não só no MERCOSUL, mas a agenda política dos Estados da América do Sul prioriza, além da inserção econômica internacional, o desenvolvimento econômico e social e a governabilidade democrática (RHI-SAUSI e ODDONE: 2012, p. 175 e 176).

Um reflexo desse contexto é o envolvimento brasileiro na mediação do conflito fronteiriço entre Peru e Equador, atuando como garante do Protocolo de Paz, de Amizade e de Limites, assinado no Rio de Janeiro, em 29 de janeiro de 1942 (Quadro 6). De igual maneira foi a participação do Brasil no restabelecimento do regime democrático peruano em meados do século XX, com a assinatura do Acordo Parcial Econômico entre Peru e Brasil nº 25, de 31 de dezembro 1993, como marco da ordem de direito no Peru (Quadro 12) (ASSOCIAÇÃO LATINO-AMERICANA DE INTEGRAÇÃO, 1994; MONTERO: 2006, p. 26; PERU, 1942).

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Nesse sentido, pela similaridade da atuação de cada Estado sul-americano na economia internacional, requer-se uma condução específica das estratégias de desenvolvimento regional. As proposições das áreas cruciais giram em torno da infraestrutura da América do Sul, conectando os interessados por intermédio de suas fronteiras e facilitando o acesso a recursos e vantagens locais, bem como o contato com novas tecnologias – sobretudo no campo industrial – e o aperfeiçoamento regional no campo monetário-cambial (CARNEIRO: 2008, p. 77 e 78; MEDEIROS: 2003, p. 153).

Unindo-se aos avanços da comunidade jurídica do mundo inteiro, a integração regional fortalece os países participantes, dando condições para atingir um grau de desenvolvimento dos seus objetivos econômicos e políticos, em diferentes sistemas de atuação internacional. Os Estados gerenciam suas participações em âmbito comunitário, multilateral e bilateral –

conciliando as demandas específicas de cada setor social –, sem olvidar a defesa de sua independência e autodeterminação entre os povos. Estes são anseios democráticos, que identificam e conciliam as reivindicações atuais (MEDEIROS: 2003, p. 151 e 160).

Partindo da caracterização realizada por Jürgen Habermas (2012, p. 336) em seu artigo sobre a crise da União Europeia à luz da constitucionalização da Lei internacional, todo sistema político-democrático compreenderia: (1) associação horizontal de pessoas jurídicas livres e iguais; (2) organização burocrática para a ação coletiva; e (3) solidariedade cívica como meio de integração política.

A associação horizontal é verificada com a coparticipação de Estados, cuja independência seja reconhecida por seus pares. A organização burocrática não está caracterizada por um único perfil, sendo desenhada de acordo com as particularidades históricas de seu caso, criando-se entes internacionais com variados graus de autonomia. Já a solidariedade cívica seria percebida pela identidade da população, com a construção do sentimento de pertencimento regional (HABERMAS, 2012, p. 339-348).

Respeitadas as especificidades de cada caso de regionalismo, é possível identificar tais pontos na estruturação das plataformas sul-americanas de desenvolvimento e dos tratados bilaterais. Tanto nas relações binacionais quanto na dimensão comunitária das organizações regionais, a integração envolve as bases democráticas de associação horizontal, organização e solidariedade cívica ressaltadas por Habermas.

Ademais, a presença de discussões bilaterais diversifica os tipos de relações internacionais estabelecidas, contribuindo para a integração regional jurídica. Assim, como fator característico da América do Sul – respeitando-se o histórico político pela independência dos países sulistas e as dificuldades de inserção na comunidade jurídica do mundo inteiro –, os acordos bilaterais são utilizados para estimular os avanços em âmbito local.


Fonte:

Tópico da dissertação "Brasil e Peru: cooperação jurídica como ferramenta de integração regional".

Sobre a autora
Lorena Ferreira de Araújo

Advogada | Doutoranda e Mestra em Direito Privado | Pós-Graduanda Lato Sensu em Direito Público

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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