O Princípio da Legalidade na dogmática penal

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Resumo:


  • O princípio da legalidade é essencial para limitar o poder punitivo do Estado, exigindo que apenas a lei formal defina crimes e comine penas.

  • Seu desdobramento inclui a reserva legal, a anterioridade das leis penais, a taxatividade dos tipos penais e a vedação à analogia in malam partem.

  • A aplicação da analogia in malam partem é proibida no Direito Penal, pois o juiz não pode criar novos tipos penais ou agravar punições sem respaldo legal.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Introdução

O presente artigo é dedicado ao estudo da origem e do conceito do princípio da legalidade, consagrado enquanto instrumento capaz de limitar o poder punitivo do Estado. O princípio, resumido na máxima nullum crimen, nulla poena sine lege, é um marco de garantia de segurança jurídica e de respeito à liberdade individual, ao exigir que somente a lei formal possa definir crimes e cominar penas.

Também são abordados os seus principais desdobramentos: o princípio da reserva legal, da anterioridade das leis penais, a taxatividade dos tipos penais, as hipóteses de exclusão e admissibilidade dos costumes, com especial destaque para a vedação à analogia in malam partem.

Explora-se, portanto, a forma como o princípio da legalidade se estrutura no ordenamento jurídico brasileiro, com ênfase na exclusividade da lei formal para a criação de tipos penais. Conclui que o princípio da legalidade continua sendo um pilar essencial para garantir a imparcialidade e a previsibilidade no sistema penal, funcionando como uma defesa contra possíveis abusos de poder.

Nullum crimen, nulla poena sine lege: origem e conceito do princípio da legalidade no Direito Penal

Destinado a atribuir a exclusividade de lei formal para a elaboração dos tipos penais incriminadores, o princípio da legalidade origina-se da necessidade de limitar o arbítrio do poder estatal (Bittencourt, 2023).

Do ponto de vista cronológico, verifica-se que a primeira manifestação do princípio em análise, ainda que de forma incipiente, formalizou-se na Inglaterra, durante a Idade Média, mais precisamente, com a Magna Charta Libertatum1, documento de ideologia libertária assinado em 1215, pelo rei João Sem Terra (Capez, 2023).

Transcreve-se:

art. 39 Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra.2

Em que pese sua formação precursora remeter à Inglaterra medieval, prevalece na doutrina o entendimento de que o princípio da legalidade, propriamente dito, teve seu nascimento durante o período iluminista, com a publicação da obra “Dos Delitos e Das Penas”, por Cesare Beccaria, em 1764. Nas palavras de Brandão (2010, p. 88), somente com o advento da obra do Marquês de Beccaria que “foi aventada de forma sistemática a necessidade de limitar o jus puniendi3 do Estado [...]”.

Nessa perspectiva, Marchi Júnior (2012) sustenta que as ideias de Cesare Beccaria possibilitaram a instauração de uma nova fase do sistema penal, na medida em que propôs o respeito a princípios que, de modo simultâneo, zelam pela dignidade da pessoa humana e limitam o poder punitivo estatal. Observou-se, assim, uma contraposição à ordem absolutista então vigente, caracterizada pela ausência de controle à arbitrariedade do Estado (Marchi Junior, 2012).

Objetivamente, o autor parte da premissa de que o Direito Penal deve adotar um sistema que obedeça a três princípios, quais sejam: a separação de poderes; a utilidade do castigo e a legalidade, sendo este o princípio basilar que sustenta os demais (Brandão, 2010). Consoante a essa percepção, a primeira consequência proveniente da adoção dos princípios supramencionados é que “só as leis podem fixar as penas de cada delito e o direito de fazer leis penais não pode residir senão no legislador, que representa toda a sociedade, unida por um contrato social” (Beccaria, 1999, p. 30).

Ocorre que, a despeito da origem histórica do princípio da legalidade ter estabelecido suas raízes durante o período iluminista, sua sistematização jurídica se deu apenas no início do século XIX, com a formulação da Teoria da Coação Psicológica, por Anselm Von Feuerbach (Brandão, 2010).

Na visão de Anselm von Feuerbach, a ameaça penal deveria exercer uma função de coação psicológica impeditiva, isto é, a aplicação da pena seria justificada quando o indivíduo, apesar de conhecer a lei que define determinado fato como crime, bem como a sua respectiva sanção, não se abstém de praticá-lo (Hungria, 1976). Compreende-se, dessa forma, que a aplicação das penas deve partir de dois pressupostos: o primeiro relacionado à anterioridade da lei, o segundo à sua respectiva publicização.

Diante disso, percebe-se que a lei é o mecanismo assecuratório ao conhecimento da pena que será imputada a cada crime, ocupando significativa relevância na dogmática do Direito Penal (Brandão, 2010). Neste recorte teórico, “não haverá crime sem lei (nullum crimen sine lege), pena sem crime (nulla poena sine crime), e nem haverá crime sem a tutela legal de um interesse (nullum crimen sine poena legali)” (Brandão, 2010, p. 89 - apud Feuerbach, 1989. p. 63). As proposições formuladas por Feuerbach foram fundidas na máxima Nullum Crimen, Nulla Poena Sine Lege4 e consagram a unidade teórica que resultou no princípio da legalidade (Brandão, 2010).

Adicionalmente, convém mencionar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1979, incorporada na legislação brasileira por meio do Decreto nº 678/92, dispõe em seu artigo 8º sobre o princípio da legalidade, in verbis5: “a Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada” (Brasil, 1992).

Como consequência da sistematização do princípio da legalidade, o postulado nullum crimen, nulla pœna sine lege tem sido tradicionalmente aplicado no ordenamento jurídico brasileiro, tanto como princípio constitucional, quanto como norma de direito penal. (Hungria, 1976).

Referido postulado foi inicialmente recepcionado pela Constituição Política do Império do Brasil de 1824, cujo item XI do artigo 179 estabelecia que “ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na forma por ela prescrita” (Brasil, 1824) e, com singelas alterações de redação, o princípio da legalidade foi reproduzido pelas Constituições de 1891, 1934, 1937 e 1946 (Hungria, 1976).

Similarmente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, promulgada durante a ditadura militar, e posteriormente alterada pela Emenda Constitucional (EC) nº 1/1969, preconizava no artigo 150, §16, que “A instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior quanto ao crime e à pena, salvo quando agravar a situação do réu” (Brasil, 1967).

A atual CRFB/88 recepcionou a definição do princípio da legalidade no artigo 5º, XXXIX, alocado no Título dos direitos e garantias fundamentais, nos seguintes termos: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (Brasil, 1988). Salienta-se que, com a reforma de 1984, o idêntico teor do dispositivo já havia sido inserido no artigo 1º do Código Penal (CP/84), sendo posteriormente reproduzido no texto constitucional.

Percebe-se, assim, que o princípio da legalidade no Direito Penal converteu-se em um instrumento “limitador do poder punitivo estatal e na essência de todo sistema que ambicione a segurança jurídica” (Marchi Júnior, 2012, p. 24). Isso porque, segundo Cunha (2020), o poder de punir do Estado não pode sujeitar-se a uma intervenção penal autoritária, sendo crucial restringir o poder de polícia à lei.

Com efeito, o poder de punir e a sanção penal intervêm diretamente em direitos fundamentais, especialmente no direito à liberdade (Bittencourt, 2023). Nessa perspectiva, tem-se que, muito embora não se possa “negar ao Estado o poder de estabelecer certas limitações ou proibições, o que não estiver proibido está permitido (permittitur quod non prohibetur)” (Toledo, 1994, p. 22), razão pela qual a produção legislativa penal, ao sistematizar o princípio da legalidade e condicionar a aplicação da pena à existência prévia de lei, assegura à coletividade uma garantia capaz de limitar o abuso de poder estatal e proteger direitos fundamentais (Bittencourt, 2023).

Não foi outra a conclusão de Capez (2023), ao afirmar que o princípio da legalidade contém uma regra e uma exceção. Quanto à regra, esclarece que nenhum indivíduo pode sofrer punição pelo poder estatal, tampouco ter seu direito de liberdade violado. Já em relação à exceção, somente serão punidos aqueles que praticarem condutas que tenham sido previamente estabelecidas como crimes em virtude de lei (Capez, 2023).

Conceitualmente, Nucci (2023, p. 203) define o princípio da legalidade nos âmbitos político e jurídico:

No prisma político é garantia individual contra eventuais abusos do Estado. Na ótica jurídica, destacam-se os sentidos lato e estrito. Em sentido amplo, significa que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5.o, II, CF). Quanto ao sentido estrito (ou penal), quer dizer que não há crime sem lei que o defina, nem tampouco pena sem lei que a comine.

Neste enfoque, Cunha (2020) aponta três fundamentos que sustentam o princípio da legalidade penal: (i) Político, evidenciado na necessidade de as leis formuladas pelo Poder Legislativo vincularem os Poderes Executivo e Judiciário, com o objetivo de evitar a arbitrariedade do poder punitivo estatal; (ii) Democrático, entendido como o respeito ao princípio da separação de poderes, capaz de assegurar ao poder legislativo a tarefa de elaborar as leis; e (iii) Jurídico, tendo em vista o efeito intimidativo produzido pelas leis.

No que tange à natureza jurídica das normas penais incriminadoras, entende Capez (2023, p. 147) que estas não detêm natureza proibitiva, mas descritiva, sob o seguinte argumento:

Quem pratica um crime não age contra a lei, mas de acordo com esta, pois os delitos encontram-se pormenorizadamente descritos em modelos legais, chamados de tipos. Cabe, portanto, à lei a tarefa de definir e não proibir o crime (‘não há crime sem lei anterior que o defina’), propiciando ao agente prévio e integral conhecimento das consequências penais da prática delituosa e evitando, assim, qualquer invasão arbitrária em seu direito de liberdade.

Nesse sentido, cumpre ressaltar que somente haverá crime nas hipóteses taxativamente previstas em lei, em outras palavras, exige-se, para a existência do crime, uma “perfeita correspondência entre a conduta praticada e a previsão legal” (Capez, 2023, p.147).

Ou seja, diante da concepção do princípio da legalidade como garantia em face do abuso de poder estatal, não é suficiente que a infração penal tenha sido tipificada em lei formal, sendo exigido, também, que a lei seja “prévia ao fato criminoso, escrita, estrita e certa, além de necessária” (Cunha, 2020, p. 104).

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Em síntese, a incorporação do princípio da legalidade no direito positivo, como instrumento que limita o poder punitivo estatal, foi determinante para o processo de codificação do Direito Penal, que se alicerça na atribuição exclusiva do legislador para definir condutas como crimes e cominar suas respectivas sanções.

Em segundo lugar, a materialização do princípio da legalidade, como critério fundamental de legitimação do poder punitivo estatal, determinou o processo de codificação do Direito Penal e a exclusiva atribuição do legislador para definir crimes e cominar penas.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o princípio da legalidade penal se assenta na exigência de que a criação de tipos penais incriminadores somente pode ocorrer mediante lei em sentido estrito, sendo ressalvada a competência do Poder Legislativo para a elaboração de normas penais, mediante a estrita observância do procedimento legislativo disciplinado constitucionalmente.

Pelo exposto, a existência do crime sujeita-se à exclusividade de lei formal para a elaboração de normas incriminadoras e agravadoras. Essencialmente, por força do princípio da legalidade, torna-se indispensável que as leis sejam anteriores ao fato praticado e estabeleçam uma consonância perfeita entre a conduta praticada e a previsão legal. É dizer, nenhuma pena pode ser aplicada sem que antes do fato exista uma lei definindo-o como crime e estabelecendo sua respectiva sanção.


Os principais desdobramentos do princípio da legalidade

Ultrapassadas as características centrais do princípio da legalidade, inicia-se, especificamente, o estudo quanto aos seus principais desdobramentos. Fundamentalmente, o postulado nullum crimen, nulla poena sine lege institui a reserva absoluta de lei para a criação de normas penais incriminadoras e agravadoras, isto é, a estrita observância ao princípio da reserva legal (Marchi Junior, 2012).

A ressalva, no entanto, é que, para além do seu significado essencial, a concretização do princípio da legalidade no sistema penal está condicionada à exigências materiais que manifestam-se em quatro proibições:

[...] Lex praevia significa proibição de edição de leis retroativas que fundamentem ou agravem a punibilidade. Lex scripta, a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário. Lex stricta, a proibição· da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia (analogia in malam partem). Lex certa, a proibição de leis penais indeterminadas (Toledo, 1994, p. 22, apud Eser, 1976, p.32).

Nesse contexto, é possível sustentar que a análise dos principais desdobramentos dos princípio geral da legalidade compreende cinco sub princípios implícitos: o princípio da reserva legal; o princípio da anterioridade das leis penais; a taxatividade dos tipos penais; as hipóteses de exclusão e admissibilidade dos costumes e a vedação à analogia in malam partem.

Do ponto de vista legislativo, o princípio da reserva legal, também denominado como “princípio da estrita legalidade”, encontra-se positivado no ordenamento jurídico brasileiro pelo artigo 5º, inciso XXXIX, da CRFB/88, enquanto garantia prevista constitucionalmente, bem como no artigo 1º, do CP/40, como norma de direito penal.

Nota-se que o regramento constitucional foi instituído pelo legislador na qualidade de cláusula pétrea. Dessa forma, entende-se que, malgrado seja eventualmente excluído do sistema penal, permanecerá em vigor como instrumento que protege aspectos fundamentais da CRFB/88 (Masson, 2024).

No plano da atuação concreta do princípio da reserva legal, parte-se da premissa de que a única fonte do Direito Penal é a lei em sentido estrito (Marchi Júnior, 2012). Não se trata, portanto, de uma reserva relativa de lei, mas sim de sua reserva absoluta. Na realidade, em virtude da positivação da estrita legalidade, não se admite que a criação dos tipos penais se dê por outras fontes do Direito, senão a lei (Capez, 2023).

De fato, exige-se que a definição das condutas tipificadas como crimes e a imposição das suas respectivas sanções decorra de “lei complementar ou lei ordinária, que tenham sido aprovadas e sancionadas com observância ao processo legislativo previsto na CF/88 e nos regimes internos da Câmara dos Deputados e Senado Federal” (Cunha, 2020).

Porém, não se pode olvidar que o princípio da reserva legal aplica-se tanto aos crimes, quanto às contravenções penais. Apesar da inexistência de expressa previsão legal, denota-se que o vocábulo “crime” foi empregado de forma genérica nos artigos 5°, XXXIX, da CRFB/88 e 1º do CP/40 (Masson, 2024).

Demais disso, o artigo 1° do Decreto-lei 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais) estabelece que as regras gerais do CP/40, desde que não haja disposição legal em sentido contrário, aplicam-se às contravenções penais (Brasil, 1941).

Nesse prisma, é razoável entender que não pode recair sobre o Poder Executivo, cuja função é administrar o Estado, a atribuição para a criação das leis, caso contrário, dar-se-ia vazão à edição de normas que favorecessem a Administração, em detrimento aos interesses da coletividade (Marchi Júnior, 2012).

Além disso, também não se pode permitir que a competência legislativa recaia sobre o Poder Judiciário, tendo em vista que a ele compete a estrita aplicação da lei aos casos concretos (Marchi Júnior, 2012).

Como consequência, Marchi Júnior (2012, p. 33) observa que, em matéria de Direito Penal, restam vedados “os atos legislativos emanados dos demais poderes, como, por exemplo, as medidas provisórias, bem como o emprego dos costumes, da analogia e dos princípios gerais do direito para definir crimes ou cominar penas”.

Em tom crítico, Masson (2024) argumenta que, em que pese parte da doutrina definir o princípio da legalidade e o princípio da reserva legal como equivalentes, a diferenciação entre eles é necessária. Na visão do autor, o princípio da legalidade está positivado no artigo 5º, inciso II, in verbis: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Brasil, 1988), enquanto o princípio da reserva legal encontra previsão legal no artigo 5º, inciso XXXIX, que atribui “à lei em sentido estrito o monopólio na criação de crimes e na cominação das penas” (Masson, 2024, p. 57)

Sob este viés, não haveria sentido em tratar ambos os princípios como sinônimos, pois o texto constitucional não se prestaria a referir-se ao mesmo princípio em dois incisos distintos de um único artigo (Masson, 2024).

Por outro lado, entende Capez (2023, p.143) que o “princípio da legalidade é gênero que compreende duas espécies: reserva legal e anterioridade da lei penal”. Denota-se, assim, que a previsão legal dos artigos 5º, XXXIX, da CRFB/88 e 1º do CP/40 inclui em seu enunciado tanto o princípio da reserva legal, como o princípio da anterioridade.

Juridicamente, é possível definir o princípio da anterioridade como a exigência de que o crime e a sua respectiva pena estejam previstos em lei anterior à conduta que se pretende punir (Masson, 2024). No caso, um dos principais efeitos da anterioridade da lei penal é a sua irretroatividade, a qual determina que “a lei penal é editada para o futuro e não para o passado" (Capez, 2023, p.156).

É certo que, como consequência direta do princípio da anterioridade, a edição do comando normativo deve dispor, expressamente, sobre o início de sua vigência, sendo que seus efeitos, em regra, somente atingirão as condutas praticadas após sua entrada em vigor (Marchi Junior, 2012).

Neste ponto, relembra-se a teoria da coação psicológica, desenvolvida por Feuerbach, segundo a qual a pena deveria exercer uma função psicológica impeditiva. Como justificativa para tal fato, Marchi Junior (2012, p. 31) diz que:

Nesta perspectiva preventivo-geral da pena, que se efetiva através da intimidação, a irretroatividade da lei penal gravosa tem singular importância, pois é através da prévia previsão legal que os indivíduos podem conhecer o alcance da conduta proibida e sua respectiva pena.

Sob outro viés, o autor afirma existir uma clara ligação entre o princípio da anterioridade e o fundamento precípuo do qual se origina o princípio da legalidade: a necessidade de limitar o arbítrio do poder estatal. A razão para isso é que, sem as garantias decorrentes do princípio da anterioridade, não seria possível submeter o juiz às fronteiras impostas pela lei (Marchi Júnior, 2012).

Para além dos princípios da reserva legal e da anterioridade das leis penais, deriva do princípio da legalidade uma importante regra que orienta a elaboração dos tipos penais: a sua necessária taxatividade.

Verifica-se que a redação das leis penais exige uma singular precisão, entendida como o perfeito enquadramento entre a conduta definida como crime e a sua correspondente previsão legal, pois não se pode permitir que a punição aplicada a determinada conduta seja estendida a outras que se mostrem semelhantes (Capez, 2023).

Nas palavras de Bitencourt (2023, p. 43):

Para que o princípio de legalidade seja, na prática, efetivo, cumprindo com a finalidade de estabelecer quais são as condutas puníveis e as sanções a elas cominadas, é necessário que o legislador penal evite ao máximo o uso de expressões vagas, equívocas ou ambíguas.

Do ponto de vista jurídico, ao determinar que a elaboração legislativa seja clara e precisa, o princípio da taxatividade funciona como uma regra de orientação ao legislador. Há, nesta circunstância, um instrumento que assegura o entendimento da norma à coletividade, além de evitar que o enunciado do dispositivo gere dúvidas ou interpretações diversas (Cunha, 2020).

Todavia, conforme pondera Masson (2024), a taxatividade das leis penais também funciona como regra direcionada ao juiz, que deve ater-se estritamente à redação legal no momento da aplicação da pena, a fim de evitar a utilização de critérios de discricionariedade.

Marchi Júnior (2012, p. 56) complementa o raciocínio, elencando as três funções basilares do princípio da taxatividade:

De um modo geral, portanto, são comumente atribuídas ao princípio da taxatividade três funções principais: (1) impor a autolimitação do poder punitivo estatal; (2) satisfazer a exigência contida no princípio da separação de poderes de modo a impedir que o juiz, interpretando livremente a norma, invada a competência do legislador e (3) permitir que todos os cidadãos alcancem a exata compreensão da norma para que possam, desse modo, inibir eventual impulso criminoso através da prevenção geral negativa, tal como concebido por Feuerbach em sua já citada teoria da coação psicológica.

Apesar das colocações, Machi Júnior (2012, p. 57) adverte não ser possível a plena realização do referido princípio, sendo que a “exata compreensão da norma por todos os indivíduos exigiria um casuísmo exacerbado das figuras delitivas e a utilização exclusiva de elementos descritivos nas respectivas redações típicas”.

Essa posição se coaduna ao entendimento de Capez (2023), visto que, para este autor, existem tipos penais que excetuam-se à exigência da taxatividade, pois admitem cláusulas gerais. Estes são denominados tipos penais abertos e sua existência decorre de situações concretas que não viabilizam ao legislador a descrição exaustiva dos elementos integrantes das condutas previstas legalmente.

A título de exemplo, podem ser citados os dispositivos que versam sobre crimes culposos. Para Capez (2023), não seria possível ao legislador, ainda que intentasse alcançar a perfeita precisão, prever todas as condutas humanas abarcadas pela modalidade típica da culpa. Por esta razão, as previsões legais dos crimes culposos são genéricas e limitam-se apenas a definir o quantum da pena aplicada aos crimes praticados nessa modalidade.

Assentadas tais premissas, prossegue-se para a análise das hipóteses de admissibilidade e exclusão dos costumes no âmbito do Direito Penal. Em termos conceituais, os costumes podem ser definidos como “a reiteração de uma conduta, de modo constante e uniforme, por força da convicção de sua obrigatoriedade” (Masson, 2024, p. 52).

Trata-se, na concepção de Marchi Junior (2012, p. 89), “de uma norma não escrita, que traduz um comportamento espontâneo, de caráter moral ou apenas social”. De acordo com Masson (2024, p. 52), a existência dos costumes depende de dois elementos que devem coexistir simultaneamente: “um objetivo, relativo ao fato (reiteração da conduta) e outro subjetivo, inerente ao agente (convicção da obrigatoriedade).

Importante destacar que o uso dos costumes foi positivado no artigo 4º da Lei de introdução às normas do direito brasileiro (LINDB), cujo dispositivo assim preconiza: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (Brasil, 1942).

Apesar disso, no âmbito do Direito Penal, em virtude do princípio da reserva legal, não se admite a utilização dos costumes para a criação de delitos ou para agravar as penas previstas em lei (Marchi Júnior, 2012).

Ademais, também não se admite que uma lei seja revogada em razão dos costumes. Nesse sentido, observa-se a determinação prevista no artigo 2º da LINDB: “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue” (Brasil, 1942). Portanto, somente a lei em sentido estrito pode revogar outra lei, considerando que, enquanto não sobrevier lei nova, que retire a eficácia da lei anterior, esta continuará em vigor (Cunha, 2020).

Se, por um lado, não se admite o uso dos costumes para a criação de delitos ou para agravar as penas previstas em lei, por outro, não é possível afirmar que sua utilização está absolutamente excluída do Direito Penal (Toledo, 1994).

Constata-se, assim, a possibilidade do uso dos costumes em três hipóteses: na ausência de lei, ou integrativo, (praeter legem); segundo a lei (secundum legem) e contra a lei, ou negativo (contra legem).

No que se refere ao costume na ausência de lei, explica Cunha (2020, p. 65) que: “não pode dar vida a novas figuras incriminadoras, embora tenha eficácia em outros setores do direito penal, vg., atuando como causa supralegal de exclusão da ilicitude ou mesmo da culpabilidade”.

Nesse sentido, Toledo (1994) entende que, para além de atuar enquanto causa de exclusão da ilicitude, o costume praeter legem pode funcionar como causa de atenuação da pena ou da culpa, constituindo-se como fonte do Direito Penal. Acrescenta, ainda, que a utilização do costume praeter legem não fere o princípio da legalidade, na medida em que não agrava a situação do agente, sendo, na verdade, favorável a ele.

Em contrapartida, a utilização dos costumes secundum legem ocorre dentro dos limites estabelecidos pelo legislador ao tipo penal e possibilita a adequação dos elementos contidos na previsão legal aos padrões estabelecidos e aceitos por um determinado grupo. Exemplificadamente, Cunha (2020) menciona sua utilização para a definição da majorante do repouso noturno prevista no § 1º do artigo 155, do CP/40.

O problema, todavia, reside na possibilidade de utilização dos costumes contra legem. Valendo-se da visão de Capez (2023, p.130), entende-se o uso dos costumes contra a lei como a “inaplicabilidade da norma jurídica em face do desuso, da inobservância constante e uniforme da lei".

Contudo, sustenta o autor que, em face da exclusividade de lei formal para revogar lei anterior, a corrente jurisprudencial que admite a utilização dos costumes contra a lei não prevalece, pois sua existência afrontaria, indiscutivelmente, o princípio da legalidade, sendo juridicamente insustentável (Capez, 2023).

Deste modo, verifica-se que o tratamento jurídico conferido ao princípio da legalidade, enquanto diretriz normativa do sistema penal, impõe, para além de seu significado essencial, a observância aos seus principais desdobramentos: o princípio da reserva legal; o princípio da anterioridade, o princípio da taxatividade e proibição dos costumes em situações que prejudiquem o agente.

Contudo, deve-se mencionar, por fim, como escopo do presente trabalho, a vedação à utilização de analogia in malam partem no Direito Penal e a impossibilidade de se aplicar, na ausência de lei, tipos penais análogos para tutelar casos semelhantes.

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