A vedação à analogia em face da exclusividade da lei formal para a criação de tipos penais
Discutir a vedação à analogia no âmbito do Direito Penal exige, de início, um estudo em relação à interpretação das leis penais. Neste ponto, há uma importante distinção a ser feita entre duas modalidades interpretativas: a interpretação extensiva e a interpretação analógica.
Adianta-se que o legislador, ao definir as condutas tipificadas em lei, não raras as ocasiões, abre margem para diferentes interpretações. A rigor, a aplicação das leis demanda um exercício interpretativo por parte dos operadores do direito, a fim de se identificar o real significado da norma, bem como delimitar o seu alcance (Cunha , 2020).
Conforme salienta Nucci (2023), “a interpretação é um processo de descoberta do conteúdo da lei e não de criação de normas”. Não há que se falar, portanto, em violação ao princípio da legalidade, mas sim na tentativa de definir o efetivo campo de atuação da norma almejado pelo legislador. Evidentemente, não há óbice à interpretação das leis penais no âmbito do Direito Penal, questiona-se, no entanto, os limites para as interpretações extensiva e analógica das leis penais.
Com base nas construções doutrinárias, a interpretação extensiva pode ser conceituada como um processo interpretativo, por meio do qual amplia-se “o significado de uma palavra para alcançar o real significado da norma” (Cunha, 2020, p. 72). Trata-se, em verdade, de uma lei redigida de forma demasiadamente estreita, o que, por conseguinte, exige que seu alcance seja ampliado para incluir situações que se mostrem condizentes com a intenção do legislador (Masson, 2024),
Para ilustrar, o artigo 181, I, do CP/40, isenta de pena o agente que pratica o crime de furto contra cônjuge, na constância da sociedade conjugal. Nota-se, porém, que o dispositivo não faz menção à aplicabilidade da escusa absolutória em relação ao agente que pratica crime de furto contra companheiro, o que reflete, em termos práticos, a necessidade de ampliar o alcance norma.
Neste ponto, Capez (2023) salienta o entendimento jurisprudencial de que, com a aplicação da interpretação extensiva, deve-se estender a escusa absolutória para as situações em que o furto é praticado contra o companheiro.
Ocorre que, não obstante a possibilidade de interpretação extensiva no Direito Penal, remanesce a dúvida no tocante a sua utilização em situações desfavoráveis ao agente. A utilização da interpretação extensiva pode ser benéfica ou prejudicial ao réu, de modo que “a tarefa do intérprete é conferir aplicação lógica ao sistema normativo, evitando-se contradições e injustiças” (Nucci, 2023, p. 197).
Coaduna com esse entendimento Masson (2024, p. 139), ao afirmar que “por se tratar de mera atividade interpretativa, buscando o efetivo alcance da lei, é possível a sua utilização até mesmo em relação àquelas de natureza incriminadora”.
Todavia, insta mencionar que a possibilidade de se interpretar extensivamente normas incriminadoras nunca foi algo pacífico e incontroverso entre doutrinadores e magistrados.
De um panorama geral das discussões jurisprudenciais, extrai-se o entendimento de que, ao encontro dos princípios da legalidade e do in dubio pro reo6, a aplicação da interpretação extensiva somente será legítima caso beneficie o agente, logo, encontra-se limitada a normas não incriminadoras (Cunha, 2020).
A seu turno, a interpretação analógica ou (infra legem) decorre de um “processo de conhecimento do conteúdo da norma através de um procedimento de comparação entre os seus termos, ampliando-se o seu alcance, dentro de critérios previstos pela própria lei penal” (Nucci, 2023, p. 201).
A interpretação baseia-se, desse modo, na necessidade de aplicação da lei às vastas possibilidades que podem decorrer dos casos concretos (Masson, 2024). Em termos práticos, o próprio dispositivo legal expõe o que determinada norma pretende regular, de forma genérica e aberta, mas permite, em seguida, que o alcance da norma se estenda para abranger situações semelhantes (Cunha, 2020).
Destaca-se, como exemplo, a qualificadora do homicídio, prevista no artigo 121, §2°, do CP/40, inciso I, cuja redação dispõe que o homicídio será qualificado quando praticado “mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe” (Brasil, 1940).
Interpretativamente, explica Cunha (2020, p.73-74): “percebe-se que o legislador fornece uma fórmula casuística ("mediante paga ou promessa') e, em seguida, apresenta uma fórmula genérica ("ou por outro motivo torpe"). É dizer, “mediante paga ou promessa” refere-se a uma das hipóteses tipificadas pela norma qualificadora, que, de igual forma, inclui situações semelhantes que se encaixem no seu alcance, enquanto “outro motivo torpe”.
Da análise simultânea dos institutos, é possível concluir que se admite a utilização de técnicas de interpretação no âmbito do Direito Penal. É de se notar, portanto, que esse processo não importa na criação de um tipo penal em face da ausência de lei, mas apenas na análise precisa do alcance da norma anteriormente editada pelo legislador (Nucci, 2023).
Em sentido contrário, a analogia não pode ser definida como regra de interpretação das leis penais, mas sim de integração, em face de manifesta lacuna no ordenamento jurídico brasileiro. Evidentemente, há um vácuo normativo em relação a determinada situação que carece de tutela jurídica, assim, o emprego da analogia consiste na aplicação de uma norma relativa a um caso semelhante a outra situação não regulada por lei (Cunha, 2020).
À vista disso, diverge da interpretação extensiva e da interpretação analógica. Em relação à primeira, a ampliação do alcance da norma está prevista no texto abrangente da lei. Enquanto, em relação à segunda, existe uma norma que regula o seu alcance, de forma genérica, permitindo que seja ampliado por meio da interpretação (Toledo, 1994).
De um modo geral, a analogia viabiliza a regulamentação legal de uma situação particular não prevista no conceito linguístico da norma, por meio de um processo comparativo baseado na semelhança (Brandão, 2010). Em outras palavras, refere-se a um processo de integração, que visa suprir a omissão do legislador quanto à determinada conduta por meio da criação da norma penal por semelhança entre os fatos.
Convém mencionar, ainda, que a analogia divide-se em duas espécies: analogia legis ou legal e analogia iuris ou jurídica. No primeiro caso, aplica-se a outra norma existente para integrar a lacuna existente no ordenamento jurídico, enquanto no segundo, utiliza-se de um princípio geral do direito para regular um caso análogo, também diante do silêncio da lei (Cunha, 2020).
Na visão de Nucci (2023, p. 199), “o emprego de analogia não se faz por acaso ou por puro arbítrio do intérprete; há significado e lógica na utilização da analogia para o preenchimento de lacunas no ordenamento jurídico”.
Nesse sentido, dispõe o próprio texto da LINDB, no seu art. 4º, cuja previsão legal recomenda que, no silêncio da lei, o juiz decida "de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (Brasil, 1942).
Ocorre que, ainda que seja comumente admitido o emprego da analogia em outros ramos do direito, no âmbito do Direito Penal, sua utilização não obedece às mesmas diretrizes (Brandão, 2010). Evidencia-se, nesse contexto, a colisão entre o emprego da analogia e o princípio da legalidade.
Por isso, verifica-se como oportuna a colocação de Brandão (2010, p. 157-158):
A proibição de analogia é uma decorrência do Princípio da Legalidade. Se uma conduta não se amoldar perfeitamente ao modelo abstrato da ação ou da omissão que a norma penal descreve, não é possível a aplicação da dita norma. Isso se dá porque em Direito Penal é defeso a aplicação das normas para incriminar condutas semelhantes àquelas típicas. Com efeito, o juiz não pode ocupar o papel do legislador para criar um novo tipo penal ou para agravar a punibilidade dos crimes já previstos no Ordenamento.
Estaria aí um aparente paradoxo, pois, ainda que seja inegável a existência de um vácuo normativo, não se pode admitir que o juiz exerça a função legislativa por meio do emprego da analogia. É dizer, não se admite o emprego da analogia para tutelar casos semelhantes, em virtude da exclusividade de lei formal, emanada do poder legislativo, para a criação das normas penais incriminadoras e agravadoras.
Categoricamente, é necessário ressaltar, porém, que a proibição à analogia, no direito penal, não é absoluta. Em verdade, faz-se necessário distinguir duas espécies de analogia: a analogia in malam partem e a analogia in bonam partem7.
Segundo Toledo (1994), a primeira refere-se a um processo integrativo que sustenta a aplicação da norma ou o agravamento da sanção a casos análogos, não previstos em lei, sendo, consequentemente, desfavorável ao agente. A segunda, por sua vez, refere-se à não aplicação da norma ou na diminuição da pena, constituindo, pois, um instrumento favorável ao agente.
Dessa forma, sustenta a doutrina a possibilidade do emprego da analogia desde que estejam presentes duas exigências: “(A) certeza de que sua aplicação será favorável ao réu ("in bonam partem') e (B) existência de uma efetiva lacuna legal a ser preenchido” (Cunha, 2020, p. 75).
A justificativa para a vedação à analogia analogia in malam partem encontra seu fundamento na necessidade de proteger os indivíduos da aplicação de uma pena não prevista em lei, situação que “prejudica o sujeito, cerceando, fora dos limites da lei, sua liberdade” (Brandão, 2010 p. 159).
Paralelamente, o emprego da analogia in bonam partem não implica na aplicação de pena não prevista em lei, mas na sua inutilização, encontrando justificativa para tanto no princípio da equidade (Toledo, 1994). Diante disso, não resta dúvida em relação a plena compatibilidade entre a analogia in bonam partem e o princípio da legalidade.
Para aclarar este ponto de vista, menciona-se o emprego da analogia in bonam partem para admitir a aplicação da isenção de punibilidade prevista no artigo 128, II, do CP/40, cuja previsão legal não pune o aborto praticado por médico nas situações em que a gravidez resulta de estupro, aos casos de aborto praticado em gravidez que decorre de violação sexual mediante fraude (Capez, 2023).
Todavia, é evidente que, à luz do princípio da legalidade, esse método de integração deve ser resguardado para situações excepcionais. Nesse sentido, “não pode o magistrado disseminar o uso da analogia para absolver o réu, pois isso colocaria em risco a segurança idealizada pelo direito penal” (Nucci, 2023, p. 200).
Parece inquestionável, assim, que, no silêncio da lei, é vedada a utilização do processo integrativo da analogia para ampliar o sentido e a abrangência da norma, ou da sua respectiva pena, em circunstâncias desfavoráveis ao agente.
Em verdade, de nada adiantaria a positivação constitucional do princípio da legalidade no ordenamento jurídico brasileiro se fosse possível valer-se de práticas analógicas para a criação de normas penais incriminadoras ou agravadoras. Analisa-se, contudo, a possibilidade de aplicação da analogia, em benefício do réu, consubstanciada na não aplicação da norma ou da pena nas hipóteses de vácuo legislativo.
Se, por um lado, é possível constatar a vedação à analogia in malam partem em face da exclusividade da lei formal para a criação dos tipos penais, por outro, tem-se a perfeita coexistência entre a analogia in bonam partem e o princípio da legalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo, como visto, pretendeu analisar o princípio da legalidade em matéria penal. Para tanto, foram apresentados a origem e o desenvolvimento do princípio da legalidade, sistematizado na máxima nullum crimen, nulla pœna sine lege, e destacada a sua relevância para a dogmática penal. Primeiro, por revelar-se enquanto um instrumento capaz de limitar o poder punitivo estatal ao estabelecer a exclusividade da lei formal para definir condutas como crimes e cominar suas respectivas penas, submetendo o julgador à lei. Em segundo lugar, por encontrar-se positivado no ordenamento jurídico, tanto como princípio constitucional, quanto como norma de direito penal.
Com efeito, observou-se que legalidade exige não apenas a previsão típica da conduta definida como crime, mas que a norma penal seja escrita, anterior ao fato criminoso e estabeleça uma consonância perfeita entre o ato praticado e o texto da lei. Nesta perspectiva, foi possível constatar que o significado técnico do princípio da legalidade desdobra-se em quatro fundamentos, quais sejam: o princípio da reserva legal; o princípio da anterioridade das leis penais; a taxatividade dos tipos penais; as hipóteses de exclusão e admissibilidade dos costumes e a vedação à analogia in malam partem.
Situadas essas questões, o presente trabalho se propôs a analisar mais detidamente a vedação à analogia in malam partem, consubstanciada na impossibilidade de se utilizar a técnica integrativa analógica, com o intuito de suprir a omissão do legislador quanto à determinada conduta, por meio da aplicação das leis penais para incriminar situações semelhantes àquelas típicas. Afinal, como visto, ao órgão judicante não se reserva o poder de criar um novo tipo penal ou agravar a punibilidade dos crimes já previstos, atribuição que é exclusiva do Poder Legislativo.
Assim, observou-se que, por força do princípio da legalidade, ainda que existente manifesta lacuna normativa, é defeso ao julgador, no âmbito do Direito Penal, valer-se da analogia para ampliar o sentido e a abrangência da norma, ou da sua respectiva pena, em circunstâncias desfavoráveis ao agente.
REFERÊNCIAS
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Direito de punir.︎
Não há crime, nem pena, sem prévia lei︎
Nestes termos.︎
Na dúvida, a favor do réu.︎
Em benefício do réu.︎