FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS: UMA ANÁLISE DO RECONHECIMENTO JURÍDICO À LUZ DA CONCEPÇÃO EUDEMONISTA DE FAMÍLIA
Marcos Bonfim. Pós-graduado em Direito das Famílias e Sucessões pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.
Famílias simultâneas, na definição de CARLOS EDUARDO PIANOVSKI RUZYK1, consiste na “circunstância de alguém se colocar concomitantemente como componente de duas ou mais entidades familiares diversas entre si”.
A problemática posta nesse artigo é a de saber se o Direito Pátrio alberga esta hipótese, ou seja, se devem ser concedidos efeitos jurídicos familiaristas às famílias simultâneas.
A resposta é positiva, ao menos quando todos os envolvidos estiverem cientes da concomitância das relações afetivo-conjugais.
Explico.
A família, no ordenamento jurídico brasileiro, foi tratada, historicamente, sob um viés institucionalizante.
Nesse passo, refletia, fidedignamente, uma sociedade fortemente machista e religiosa, reproduzindo um discurso moral limitador das liberdades.
Isto é, protegia-se a família não na pessoa de seus membros, mas enquanto instituição, que servia de longa manus do Estado no controle social.
A entidade familiar era tida como um primeiro interdito moral, que deveria moldar os desejos individuais às concepções coletivas.
Para tanto, a família era submetida a uma intensa heteronomia normativa.
A Lei impunha o casamento como a sua exclusiva forma de constituição, disciplinando os deveres conjugais em seus pormenores, além de consagrar uma rígida hierarquia interna.
Como destaca CARLOS EDUARDO PIANOVSKI RUZYK2, na previsão da indissolubilidade do casamento estava a prova cabal de que era a Instituição o que o direito protegia e não os sujeitos, pois estes não raro agonizavam na imposição da vivência dos “despojos insepultos de uma família que não mais existia”.
Isto é, impunha-se a manutenção do vínculo matrimonial, “em prol de um suposto bem maior para a sociedade”, ao custo da felicidade dos cônjuges.
Essa concepção de família, no entanto, vai se dissipando, gradativamente, ao longo do século XX.
Como enfatiza ANA CARLA HARMATIUK MATOS3, O ingresso da mulher no cenário econômico e na vida pública, fazendo com que ela ganhe poder e independência, alavanca essa transformação, impulsionando uma redivisão dos papéis no âmbito familiar, e, segundo RODRIGO DA CUNHA PEREIRA4, trazendo “para a organização jurídica da família novos questionamentos que provocam uma mudança no cotidiano e na prática das relações jurídicas e judiciais”.
Nessa senda, em lugar da dominação e dos interesses institucionais, do patriarcalismo e da rigidez hierárquica, o afeto, que deve ser colhido e renovado, vai passando, gradualmente, a ser o único sustentáculo da relação conjugal.
Ou, como discorrem FLÁVIO TARTUCE e GISELDA HIRONAKA5, “ao se falar em afeto, já não se o entende como antes, quer dizer, ao tempo da família patriarcal e hierarquizada, quando então significava apenas um sentimento fragilizado e até mesmo tido como secundário, nas relações de família”. Ao se falar em afeto, tem-se, hoje, o elemento nuclear da concepção de família.
Em resumo, a família, em dado momento, passou a ser compreendida pelos seus integrantes como algo que existe para o seu próprio desenvolvimento pessoal.
E o Direito, cujas velas foram sopradas pelos ventos das ruas, foi chamado, progressivamente, a apreender essa modificação dos anseios e valores sociais.
Foi com o advento da Constituição Federal de 88, alçando a dignidade humana a valor-fundante do ordenamento jurídico brasileiro, que os operadores do direito foram, efetivamente, convocados a assumir uma concepção eudemonista, ou seja, de uma família como lócus privilegiado da busca pela realização existencial, que deve ser protegida na pessoa de cada um de seus membros (art. 226, §8º, da Constituição Federal).
Desde então, como enfatiza o MINISTRO EDSON FACHIN, com arrimo nas lições da sociológica francesa ANDRÉE MICHEL6, “não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento que existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade”.
Na mesma linha ensina PAULO LOBO7, ao arrematar que “a perspectiva institucionalizada de família cede espaço e vez para a realização pessoal de seus membros, fenômeno esse que se convencionou chamar de repersonalização das relações de família”, enfatizando o autor o rol não taxativo de modelos familiares enunciados na Constituição Federal.
Não é outro o entendimento de FLÁVIO TARTUCE e GISELDA HIRONAKA8, ao destacarem que não há um modelo pré-concebido de família, justamente porque “a família se idealiza e se constrói por meio de uma entidade que se alicerça na afetividade e que tem como causa final a busca do projeto pessoal de felicidade de cada um de seus membros”.
Na feliz metáfora de MICHELLE PERROT9, a família, historicamente, era um ninho repleto de nós.
Os nós podem ser compreendidos, aqui, como integrantes de uma concepção de família “em que a liberdade dos seus componentes não é preocupação efetiva”.
Diante das aludidas mudanças, “se vão os nós, permanecendo o ninho como espaço de afeto e entreajuda”, e se verifica um incremento da liberdade, e um clamor por mais liberdade na seara das relações familiares.
Disso resulta um anseio social por viver o afeto sem a interferência excessiva do Estado.
Se a família não é mais protegida enquanto instituição, mas como instrumento de realização existencial de seus membros, então não é o Estado quem deve ditar o que é família e por que regras se deve vivê-la.
Como ensina MARIA BERENICE DIAS10, cabe ao Estado, em outras palavras, apenas apreender a realidade eleita e vivida pelas partes, sob o signo do afeto, e a ela conferir os efeitos jurídicos próprios, “num desatrelar da família à instituição”, “dando primado à afetividade como elemento identificador das relações interpessoais”.
É nesse contexto que o reconhecimento das famílias simultâneas pede passagem.
Entendo que quando houver o conhecimento de todos os envolvidos, pessoas capazes, acerca da simultaneidade das relações afetivo-conjugais, o Direito deve chancelá-las como família, afinal, essas pessoas escolheram os rumos de suas próprias vidas, no exercício edificante da liberdade existencial.
Nessa singra, descabe ao Estado-Juiz dizer que essa realidade simplesmente afronta o princípio da monogamia, apagando, com uma canetada moralizadora, toda uma trajetória vivida.
Bem enfatiza RODRIGO DA CUNHA PEREIRA11 que “a tendência das organizações jurídicas ocidentais é relativizarem o princípio da monogamia, para não condenar milhares de famílias, que de fato existem, à invisibilidade jurídica, considerando-as como inexistentes, eliminando essa reprovabilidade para não repetir as mesmas injustiças históricas, como os filhos e famílias havidos fora do casamento, que por muito tempo foram condenados à ilegitimidade”.
Arremata o autor que “se o fato de ferir este princípio [o da monogamia] significa fazer injustiça”, devemos arrostá-lo, “para que possamos [nos] aproximar do ideal de justiça”.
No mesmo sentido, a doutrina de CARLOS EDUARDO PIANOVSKI RUZYK12, para quem “tomar um princípio jurídico da monogamia como um ‘dever ser’ imposto pelo Estado a todas as relações familiares é algo que entra em conflito com a liberdade que deve prevalecer naquela que é uma das searas da vida na qual os sujeitos travam algumas das mais relevantes relações no tocante à formação de sua subjetividade e desenvolvimento de sua personalidade”.
É assim que negar efeitos jurídicos às famílias dúplices, quando todos os seus participantes estavam de acordo, é privilegiar a concepção moral coletiva em detrimento de legítimas escolhas individuais.
É, em outras palavras, consagrar um anacronismo, voltando à concepção de família institucionalizante de outrora, que não encontra guarida na Carta Magna, e, em verdade, viola frontalmente o seu princípio-maior, a dignidade humana.
Cabe destaque ao entendimento do MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO, em seu voto no julgamento do Recurso Extraordinário n° 590.779-1/ES: “Companheiro, como situação jurídico-ativa de quem mantinha com o segurado falecido uma relação doméstica de franca estabilidade (‘união estável’). Sem essa palavra azeda, feia, discriminadora, preconceituosa, do concubinato. Estou a dizer: não há concubinos para a Lei Mais Alta do nosso país, porém casais em situação de companheirismo [...] para a Constituição, não existe o concubinato, existe o companheirismo. Por isso, entendo que, se há um núcleo doméstico estabilizado no tempo, é dever do Estado ampará-lo como se entidade familiar fosse, como real entidade familiar, até porque os filhos, que merecem absoluta proteção do Estado, não tem nada a ver com a natureza da relação entre os pais. Interesse é que o núcleo familiar em si mesmo merece toda a proteção”.
E nem se diga que as famílias simultâneas não têm supedâneo no Código Civil, sendo, por isso, inexistentes.
O texto da lei, deve-se relembrar, é apenas uma das matérias de que o Direito Civil é feito.
O Direito Civil, como nos lembra o MINISTRO EDSON FACHIN13, não se erige, entretanto, em obra acabada pelas mãos do legislador, mas cujos sentidos de seus conceitos e fins de seus institutos são construídos com as mãos, também, de doutrina e jurisprudência, em um trabalho de constante “reconstrução dos significados que compõem os significantes” do compêndio civilista.
Esse desígnio hermenêutico volta-se para um fim, que é o de construir o sentido que seja mais funcional a dar uma resposta aos problemas da sociedade contemporânea e que esteja permeado com os valores expressos na Constituição.
Nesse desiderato, na hipótese vertente, o Estado-juiz, diante do sonambulismo do legislador em reconhecer as famílias simultâneas, é chamado a se tornar artífice da constituição substancial do Direito Civil, imprimindo-lhe uma transformação de conteúdo.
É dizer, o julgador, diante da realidade posta e inexorável de que algumas pessoas vivem longos períodos de mútuo respeito, compreensão e afeto com mais de um companheiro(a) ao mesmo tempo, com todos sabendo da existência uns dos outros, é convocado a adaptar o Direito Civil a seu tempo.
Para isso, como leciona o MINISTRO EDSON FACHIN14, “deve abandonar o conforto da armadura jurídica, atravessar o jardim dos conceitos e alcançar a praça da vida material, que publiciza dramas e interrogações, abalroando a cronologia ideológica do sistema”, dando uma solução que, conquanto ainda não escrita, é a mais adequada à axiologia constitucional: reconhecer as duas ou mais famílias como tais, ainda que constituídas simultaneamente.
Para tanto, cabe lembrar, com o jurista francês JEAN CRUET15, “que a Lei não refaz a sociedade, mas que a sociedade refaz a Lei”.
Afinal, como concluem FLÁVIO TARTUCE e GISELDA HIRONAKA16, é preciso “que o direito não permaneça alheio à realidade humana, à realidade das situações existentes, às mudanças sociais importantes, que, sem dúvidas, têm se multiplicado na história das famílias, exatamente como ela é. Cerrar os olhos para essa situação significa cultuar a hipocrisia e ser conivente com a omissão que o Legislativo e o Judiciário têm, repetidamente, deixando acontecer, em uma era que já não mais se coaduna com as histórias guardadas a sete chaves”.
Cumpre, nesse passo, destacar o bem-lançado voto da DESEMBARGADORA MARIA ELZA, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a que subscrevo firmemente: “Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro”. (TJMG. Apelação Cível nº. 1.0017.05.016882-6/003 – Rela.: Desa. Maria Elza. Data do Julgamento: 20/11/08. Data da publicação: 10/12/08).
Adiro, assim, ao entendimento dos que defendem ser necessário e adequado conferir efeitos jurídicos familiaristas a esse arranjo diferenciado.
Do contrário, além de se negar aos companheiros concomitantes a condição de sujeitos capazes de trilhar os rumos da própria existência, se chancelaria não apenas o enriquecimento ilícito de uns – normalmente, do homem ou mulher sob o casamento, em detrimento do homem ou mulher sob a união estável –, mas também o seu comportamento contraditório.
Afinal, como asseveram FLÁVIO TARTUCE e GISELDA HIRONAKA17, “uma vez que a esposa [ou o marido] aceitou socialmente o relacionamento paralelo de seu marido [ou esposa]”, “como consequência, deve concordar com a divisão de seus direitos em relação à outra mulher [ou homem]”.
Para elucidar que não se trata de mera construção doutrinária, destaco decisões do TJSC, TJMG, TJMA e TJBA, no sentido preconizado neste artigo:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. RECURSO DA REQUERIDA. ALEGADA IMPOSSIBILIDADE DA OCORRÊNCIA DE UNIÃO ESTÁVEL SIMULTANEAMENTE AO CASAMENTO. INEXISTÊNCIA DE SEPARAÇÃO DE FATO ENTRE O DE CUJUS E A ESPOSA/RECORRENTE. RELACIONAMENTO MANTIDO COM A AUTORA QUE CONFIGURAVA CONCUBINATO. VEDAÇÃO À CONFIGURAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL ENTRE INDIVÍDUOS IMPEDIDOS DE CASAR. TESE REPELIDA. REQUERENTE QUE CONVIVEU DE FORMA PÚBLICA, CONTÍNUA, COM ÂNIMO DE CONSTITUIR FAMÍLIA POR MAIS DE 40 ANOS COM O FALECIDO. COEXISTÊNCIA DE VÍNCULO CONJUGAL SEM SEPARAÇÃO DE FATO PELO MESMO PERÍODO. ESPOSA E COMPANHEIRA/RECORRIDA QUE TINHAM CIÊNCIA DA CONCOMITÂNCIA DE MAIS DE UM NÚCLEO FAMILIAR NOS QUAIS O FALECIDO FAZIA-SE PRESENTE SEM A EFETIVA OPOSIÇÃO DAS INTERESSADAS, QUE DEMONSTRAVAM ACEITAR A VIDA DUPLA DO ENTÃO SIMULTANEAMENTE CÔNJUGE E COMPANHEIRO. PRESERVAÇÃO DO INTERESSE E DA PROTEÇÃO DE AMBAS AS CÉLULAS FAMILIARES. A FAMÍLIA, BASE DA SOCIEDADE, TEM ESPECIAL PROTEÇÃO DO ESTADO. FORMALISMO LEGAL QUE NÃO DEVE PREVALECER SOBRE A SITUAÇÃO FÁTICA CONSOLIDADA POR MAIS DE 40 ANOS, QUANDO PRESENTES OS REQUISITOS ESSENCIAIS PARA SE RECONHECER A FORMAÇÃO DE UMA ENTIDADE FAMILIAR BASEADA NO AFETO, NA CONVIVÊNCIA, NA TOLERÂNCIA E NA ESTABILIDADE DOS RELACIONAMENTOS.
(TJSC, Apelação Cível n. 0500608-26.2012.8.24.0082, da Capital - Continente, rel. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 25-06-2020).
DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de convivência afetiva - pública, contínua e duradoura - um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina - palavra preconceituosa - mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro.
(TJMG - Apelação Cível 1.0017.05.016882-6/003, Relator(a): Des.(a) Maria Elza, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/11/2008, publicação da súmula em 10/12/2008).
DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL SIMULTÂNEOS. RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. PROVIMENTO. 1. Ainda que de forma incipiente, doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo a juridicidade das chamadas famílias paralelas, como aquelas que se formam concomitantemente ao casamento ou à união estável. 2. A força dos fatos surge como situações novas que reclamam acolhida jurídica para não ficarem no limbo da exclusão. Dentre esses casos, estão exatamente as famílias paralelas, que vicejam ao lado das famílias matrimonializadas. 3. Para a familiarista Giselda Hironaka, a família paralela não é uma família inventada, nem é família imoral, amoral ou aética, nem ilícita. E continua, com esta lição: Na verdade, são famílias estigmatizadas, socialmente falando. O segundo núcleo ainda hoje é concebido como estritamente adulterino, e, por isso, de certa forma perigoso, moralmente reprovável e até maligno. A concepção é generalizada e cada caso não é considerado por si só, com suas peculiaridade próprias. É como se todas as situações de simultaneidade fossem iguais, malignas e inseridas num único e exclusivo contexto. O triângulo amoroso sub-reptício, demolidor do relacionamento número um, sólido e perfeito, é o quadro que sempre está à frente do pensamento geral, quando se refere a famílias paralelas. O preconceito - ainda que amenizado nos dias atuais, sem dúvida - ainda existe na roda social, o que também dificulta o seu reconhecimento na roda judicial. 4. Havendo nos autos elementos suficientes ao reconhecimento da existência de união estável entre a apelante e o de cujus, o caso é de procedência do pedido formulado em ação declaratória. 5. Apelação cível provida.
(ApCiv 0190482013, Rel. Desembargador(a) LOURIVAL DE JESUS SEREJO SOUSA, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, julgado em 10/07/2014 , DJe 17/07/2014).
APELAÇÃO CIVEL. DIREITO DE FAMILIA.AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. UNIÃO ESTAVEL SIMULTANEA. PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA AFETIVIDADE. PROVA ROBUSTA. POSSIBILIDADE. 1. Ainda que de forma incipiente, doutrina e jurisprudência vêm reconhecendo a juridicidade das chamadas famílias paralelas, como aquelas que se formam concomitantemente ao casamento ou à união estável. 2. A força dos fatos surge como situações novas que reclamam acolhida jurídica para não ficarem no limbo da exclusão. Dentre esses casos, estão exatamente as famílias paralelas, que vicejam ao lado das famílias matrimonializadas. 3. Havendo nos autos elementos suficientes ao reconhecimento da existência de união estável entre a apelante e o de cujus, o caso é de procedência do pedido. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO.
(Classe: Apelação, Número do Processo: 0002396-95.2010.8.05.0191, Relator(a): MAURICIO KERTZMAN SZPORER, Publicado em: 15/04/2015)
Por fim, enfatizo que o entendimento aqui defendido não entra em rota de colisão com o quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 1.045.273/SE, julgado em 2020, sob o rito da repercussão geral18.
É que no caso analisado pelo STF as famílias concomitantes não tinham conhecimento uma da outra, de sorte que não se chancelaria uma escolha de vida de todos os envolvidos.
A situação que foi posta ao apreço do STF é, portanto, distinta da analisada neste artigo, que cuida de famílias que escolheram viver afetos concomitantes e que assim se apresentaram publicamente, merecendo, a sua escolha, fruto da liberdade existencial, ser chancelada pelo Estado, a partir da concessão de efeitos jurídicos familiaristas.