A eutanásia, entendida como a prática de provocar a morte de um indivíduo com a intenção de aliviar seu sofrimento, suscita intensos debates no âmbito jurídico, especialmente no direito penal e processual penal. No Brasil, a legislação atual não reconhece a eutanásia como uma prática legal, considerando-a, em linhas gerais, um homicídio, conforme o disposto no Código Penal Brasileiro. O artigo 121 tipifica o crime de homicídio, que se caracteriza pela conduta de matar alguém, e não faz distinção entre as motivações que possam levar a tal ato.
A questão da eutanásia ganhou destaque na sociedade contemporânea, impulsionada por discussões éticas e morais sobre o direito à autodeterminação e à dignidade da pessoa humana. O princípio da dignidade da pessoa, consagrado na Constituição Federal de 1988, poderia, à primeira vista, ser interpretado como um argumento favorável à legalização da eutanásia. No entanto, a proteção da vida é um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro, o que torna a discussão mais complexa.
No âmbito do direito processual penal, a prática da eutanásia levantaria questionamentos sobre a responsabilidade penal do agente que a realiza, bem como sobre os procedimentos a serem adotados em casos de eventual acusação. A tipificação do ato como homicídio implica a possibilidade de pena, mas a discussão sobre a culpabilidade e as circunstâncias que envolvem a decisão de praticar a eutanásia poderia influenciar no julgamento do caso, considerando, por exemplo, o estado de saúde terminal do paciente e o seu consentimento.
Além disso, o debate sobre a eutanásia também se relaciona com as normas de bioética e os direitos dos pacientes, que garantem a autonomia na tomada de decisões sobre tratamentos e intervenções médicas. A falta de legislação específica sobre a eutanásia no Brasil impede que questões fundamentais, como a definição de consentimento informado e a caracterização de casos de sofrimento extremo, sejam adequadamente abordadas.
Diante disso, a eutanásia no Brasil permanece como uma questão complexa, que desafia os limites do direito penal e processual penal e, na ausência de norma reguladora, a prática continuará a ser considerada crime, relegando a discussão a um plano teórico sem aplicação prática. A busca por um equilíbrio entre a proteção da vida e o respeito à autonomia do indivíduo paciente pode vir a ser um desafio a ser enfrentado pelo legislador caso futuramente a sociedade entenda ser necessário disciplinar essa matéria.
Assim, embora a eutanásia não seja legalizada no país e, em geral, seja considerada um homicídio, alguns dispositivos legais e princípios constitucionais poderiam ser invocados em uma discussão teórica ou em uma defesa da prática. Abaixo, enumero alguns artigos que poderiam ser utilizados nesse contexto.
Constituição Federal de 1988
Artigo 1º, III: Este artigo estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado brasileiro, o que poderia ser argumentado em favor do direito do indivíduo a decidir sobre seu próprio fim, especialmente em casos de sofrimento extremo.
Artigo 5º, II: Garante que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei", o que pode ser interpretado como uma defesa da autonomia do indivíduo na tomada de decisões sobre sua vida e morte.
Artigo 196: Estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do Estado", levantando a discussão sobre a obrigação do Estado de garantir o alívio do sofrimento.
Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940)
Artigo 121: Embora tipifique o homicídio, a discussão sobre a configuração das circunstâncias atenuantes (como a dor e o sofrimento extremos) pode ser explorada em um contexto de defesa, considerando atenuantes em casos de ação em favor de um paciente terminal.
Artigo 122: Trata da "morte por compaixão", que poderia ser um ponto de partida para discutir a penalidade em casos de eutanásia, embora ainda seja amplamente considerado homicídio. Este artigo traz a figura do homicídio privilegiado, que ocorre quando alguém provoca a morte de outra pessoa sob a influência de violenta emoção, logo após a injusta provocação da vítima. O caput do artigo diz:
"Art. 122 - Matar alguém, sob a influência de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, é crime, mas a pena é reduzida de um a dois terços."
O artigo 122 reconhece que a humanização do direito penal deve considerar as circunstâncias em que um ato é cometido. A eutanásia, em muitos casos, pode ser vista como uma resposta a um sofrimento insuportável, que causa uma intensa carga emocional tanto para o paciente quanto para os familiares. Essa situação pode ser interpretada como uma forma de "provocação" pela dor e sofrimento que a pessoa está enfrentando, levando a uma ação que, embora resulte em morte, é carregada de nuances emocionais que devem ser consideradas.
A possibilidade de redução da pena prevista no artigo 122 poderia ser utilizada para argumentar que, em casos de eutanásia, a intenção não seria de matar por malícia ou desejo de causar dano, mas sim de aliviar o sofrimento extremo de um indivíduo. Assim, a pena poderia ser atenuada, reconhecendo que a motivação do agente (seja um médico, familiar ou outra figura) está ligada à compaixão e ao desejo de promover a dignidade e o bem-estar do paciente.
A aplicação do artigo 122 também poderia ser sustentada pela ideia de que, se o paciente consente com a prática, isso poderia ser visto como uma resposta à injusta provocação que a dor representa em sua vida. O consentimento do indivíduo em situações de sofrimento extremo deve ser considerado um fator essencial para a análise da culpabilidade e da intenção do agente que pratica a eutanásia.
O debate sobre a eutanásia envolve questões éticas profundas sobre a vida e a morte. O artigo 122 pode ser uma ferramenta para explorar a legitimidade de ações que buscam aliviar o sofrimento, reconhecendo que a moralidade da ação não se resume à letra da lei, mas também à intenção e ao contexto humano que a envolve.
Embora o artigo 122 do Código Penal não legitime a eutanásia, ele abre espaço para uma discussão mais ampla sobre a relação entre emoção, consentimento e a natureza das ações humanas em situações extremas. A aplicação deste artigo em um debate sobre a eutanásia poderia servir como um ponto de partida para a construção de um argumento que busca a humanização do direito penal, reconhecendo a complexidade dos casos que envolvem decisões sobre a vida e a morte.
Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018)
A regulação sobre a autonomia do paciente e a necessidade de consentimento informado pode ser utilizada para argumentar que os pacientes têm o direito de decidir sobre tratamentos que desejam ou não receber, incluindo a possibilidade de interromper a própria vida em situações de dor extrema.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996)
Artigo 2º: Reconhece a educação como um direito de todos, o que pode ser interpretado como um suporte para a necessidade de informação e discussão sobre bioética e decisões sobre a vida e a morte.
Conclusão
Esses artigos e princípios podem ser utilizados em um debate sobre a eutanásia, embora a sua aplicação prática ainda dependa de um contexto legislativo que reconheça e regulamente a prática de maneira formal e segura.