Análise Preliminar da PEC da (in)segurança pública no Brasil.

Exibindo página 1 de 2
09/12/2024 às 15:55
Leia nesta página:

1. Introdução

Este trabalho tem origem na junção de dois artigos: Reuniões Mormaceiras: o retorno, escrito antes de o senhor Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, dar a conhecer a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que ficou conhecida como a “PEC da Segurança”, e o outro, A Insegurança da PEC da Segurança, elaborado após a divulgação.

As manifestações, dos senhores governadores, ocorridas na reunião de apresentação, a repercussão na mídia, a intrigante inquietação no meio político e o retorno positivo sobre essas publicações motivaram os autores a se lançarem em uma ampliação.

Contudo, a evolução e a ebulição do cenário inicial demonstraram a oportunidade (conveniência e necessidade) de ser feito, não apenas uma ampliação, mas, sim, um aprofundamento na pesquisa de elementos que evidenciassem essa proposta de PEC, apenas como um dos vetores a ser considerado, para se ter efetividade na elaboração e na execução de ações e operações que objetivem reduzir a insegurança em nosso ecossistema social.

Neste trabalho, mantivemos certos trechos dos dois artigos, resguardando o seu surgimento temporal (antes e depois da reunião em Brasília), e acrescentamos determinados textos, com o pressuposto de que são pertinentes para o amplo conhecimento da matéria, aliás, ponto fundamental para que ocorram debates qualificados, objetivos e efetivos.   

   E, de início, sob nossa óptica, os debates, visando a se buscar procedimentos e comportamentos que reduzam, restrinjam, mitiguem a questão da insegurança (impossível acabar), são mal conduzidos, porque partem de pressupostos equivocados ou incompletos.

A título de exemplo, quando o senhor Ministro falava sobre “Segurança Pública e Defesa Social”, nós, e talvez um grande número de ouvintes, nos perguntávamos: afinal, o que é Segurança Pública? O que é Defesa Social? A que essa PEC apresentada se refere?  

Portanto, um vácuo terrível é a ausência de terminologia e conceituações bem fixadas, o que vem gerando infindáveis diálogos estéreis, que denominamos mormaceiros.

Esta nota técnica aborda a temática sob três perspectivas, não necessariamente de forma compartimentalizada e sequencial: 1. a do Ministério da Justiça e Segurança da Pública (MJSP), autor da proposta da PEC; 2. a dos governadores, convidados para assistir à apresentação da PEC e oferecer sugestões para o Pacto Federativo; e 3. a da população, que clama por ações concretas na redução da insegurança, com ênfase no enfrentamento a esse angustiante e preocupante fenômeno social, a criminalidade violenta.

Assim, presume-se, este trabalho, que aqui se apresenta, para qualificada apreciação dos que estão comprometidos com a pesquisa desse tema, buscando (ou nos aproximando) de um desejável consenso, poderá constituir-se em sólida contribuição às discussões que, por certo, irão ocorrer, não apenas nessa PEC (que não é da Segurança), mas de uma futura e ampla PEC[2] da Defesa Social (tema muito falado e pouco entendido).


2. Conceitos, terminologias e métodos: a urgência/emergência da correta estruturação do problema da (in)segurança pública no Brasil

A população brasileira, que já se mostrava extremamente preocupada com a elevação da espiral da criminalidade violenta em seu aspecto quantitativo,  contemporaneamente, essa mesma população está angustiada com o aspecto qualitativo, em virtude da ousadia, audácia, desrespeito e, sobretudo, da covardia e frieza dos criminosos na execução de cidadãos no seu cotidiano: mães e pais de família e, sobretudo, crianças e jovens, em sua maioria achados por uma “bala perdida”! 

Dado relevante, que precisa ser criteriosamente analisado, é o aspecto multifatorial deste problema – a contenção da criminalidade – que, genérica e equivocadamente, é denominado de Segurança Pública. E um ponto fundamental é entender as causas de mortes violentas, em localidades específicas, que se constituem em realidades culturais distintas.

Em um país continental, não é técnico-cientifico e nem metodologicamente aceitável que índices de metrópoles sejam generalizados para outras realidades nacionais, sejam essas cidades de pequeno, médio ou grande porte. E essa prática, lamentável e recorrentemente, ocorre no Brasil, seja através de órgãos oficiais e/ou por organizações civis, as quais se arvoram em suas análises superficiais sobre a (in)segurança pública no país).

De acordo com o Atlas da Violência (2023), as taxas de homicídios, que são calculadas por 100 mil habitantes, estão classificadas por grupo de municípios, conforme a seguir:

Quadro 1 - Taxa de homicídios por 100 mil habitantes por município no Brasil (2022)

Município

Taxa de hom. Por 100h

Grupo

População

Quantidade

Média (%)

Pequeno

Até 100 mil hab.

5.251

21,7

Médio

Entre 100 e 500 mil hab.

278

26,2

Grande

Acima de 500 mil hab.

41

26,4

Todos

5.570

22,0

 Fonte (IPEA; FBSP, 2024, p.08), adaptado.

Os dados de homicídios, acima referenciados, identificados como mortes violentas e classificados pelo MJSP e pelas secretarias estaduais de segurança pública (e, em algumas unidades federativas, da defesa social, também), não podem ser concebidos como um fato social (Durkheim, 2001) em si. Suas causas são multifatoriais e, ao mesmo tempo, específicas, dado que as regiões brasileiras apresentam características próprias, mesmo que fatores transversais possam catalisar esses homicídios: tráfico de drogas; tráfico de armas; corrupção na esfera pública e privada; Educação precarizada, em especial a Educação Básica, o que compromete as demais modalidades de ensino no país, desencadeando um círculo vicioso – que incrementa números de escolaridade, mas, necessariamente, não significa melhoria da escolarização[3] – que pode ensejar a exclusão social.

Daí a urgência/emergência de se examinar a (in)segurança pública a partir de uma concepção técnico-profissional e acadêmico-científica. Uma estruturação criteriosa e metodologicamente adequada do problema é o que induzirá a práxis de seu enfrentamento.   (Freidson, 1999; Silva Júnior; Rondon Filho; Silva et, 2022; Meireles, 2023).

            O Quadro 1 apenas mostra um dantesco retrato dos números dos homicídios no país. Dessa forma, como se apresentam, os dados – em números absolutos – são pouco significativos. Seria importante e metodologicamente adequado, para construção técnico-científica desse problema, se tivessem sido considerados os fatores determinantes, componentes e condicionantes que intervieram nas ocorrências, cujos resultados refletiriam melhor a realidade fática.

Em uma analogia rápida com a Medicina, para um bom tratamento, um passo indispensável é um diagnóstico preciso. Nisso consistirá a diferença medicamentosa entre um simples resfriado e uma virose devastadora que, obrigatoriamente, demandará administração rigorosa de antibióticos. O diagnóstico e seu consequente tratamento inadequado poderão transformar a infecção original em uma pneumonia e/ou outras enfermidades oportunistas. Por que na segurança pública seria diferente?

            Como já teorizado por Durkheim no final do século 19, sendo o crime um fato social, este precisa ser dissecado nos moldes das ciências naturais – coisificado, individualizado, quantificado (e, contemporaneamente, com os artefatos tecnológicos disponíveis, não se concebe a mera tentativa e erro/acerto). Também, considerando-se que a sociedade contemporânea é dinâmica e complexa (Morin 2015), deve-se ponderar as variáveis socioculturais que a permeiam (demográficas, econômicas, culturais, educacionais, etc.), em uma análise criteriosa, visando a um diagnóstico mais aproximado da realidade.

Sabe-se, por motivos objetivos (as estatísticas demonstram), que a probabilidade de fatos criminosos acontecerem em muitas cidades é maior que em outras. É imprescindível, porém, considerar-se o aspecto subjetivo, pois, em razão de notícias (não de informações) que, atualmente, se espalham em incrível velocidade, a sensação de insegurança tem aumentado, generalizadamente, em razão de a Ilusão de Isotopia – a sensação de que se está no local onde eclodiu uma ameaça ou que essa ameaça irá eclodir no local onde se vive – (Meireles, 2023), estar contaminando as pessoas, em vários ambientes.

Se os crimes de rua, explícitos, provocam danos pessoais (inclusive mortes), observa-se que o crescimento das organizações criminosas (Orcrim), atuando na clandestinidade, provocam enormes prejuízos materiais e cometimento de crimes que causam enorme repulsa (Lima; Ratton; Azevedo, 2014).

O presidente Luís Inácio Lula da Silva, há poucos dias, em mais uma tentativa de apresentar uma alternativa ao problema posto, convocou autoridades para uma reunião em Brasília, dia 31 de outubro do corrente ano.

Segundo a mídia, para “discutir a [...] PEC da Segurança, defendida pelo Planalto para dar poderes ao governo federal de atuar na questão da segurança pública, atualmente de atribuição exclusiva dos governos estaduais” (grifo nosso). Ou, ainda, “Conhecido como PEC da Segurança, o texto foi desenhado pelo MJSP e prevê aumentar a participação federal no setor, que hoje é de competência dos governos estaduais” (grifamos).

Equívocos, do governo e dos meios de comunicação, que se repetem, pois o Art. 144 da CF/88, “segurança pública, dever do Estado [...]” não se refere ao Estado-membro, mas ao Estado brasileiro (República Federativa do Brasil), conforme Art. 1º, CF, ou seja, a União já participa da “segurança pública” (sic) de várias formas.

Na mídia, há a especulação de que o governo federal pretende “assumir o comando” da segurança pública no Brasil.

Se verdadeiro o propósito, encontrará dificuldade para aprovar a PEC, por ferir a autonomia dos Estados.

Por outro lado, consta que o governo federal pretende chamar para si a responsabilidade da coordenação (diferente de comandar) das ações de contenção da criminalidade, o que, a princípio, é oportuno, por suprir uma necessidade basilar.

Uma das medidas a serem apresentadas seria aumentar as competências da Polícia Federal (PF) no combate ao crime organizado (ora, uma de suas missões já é essa) e permitir a atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no patrulhamento ostensivo (ora, a PRF é uma polícia ostensiva). Esta teria suas atribuições ampliadas para portos, ferrovias, aeroportos, pulverizando esforços, o que não seria bom. Convém mantê-la fazendo o que vem fazendo extraordinariamente bem e reconhecer, constitucionalmente, a polícia aeroportuária. Visto o surpreendente crescimento das organizações criminosas, em especial do crime cibernético, seria oportuno, também, reconhecer constitucionalmente a Força Nacional de Segurança Pública (DFNSP), liberando a Polícia Federal de missões de polícia ostensiva, para concentrar todo seu empenho em trabalhos de polícia investigativa.

A celeridade no agendamento da reunião teria ocorrido em razão de o governador do Rio de Janeiro haver declarado que seu Estado, sozinho, não tem instrumentos e procedimentos suficientes, não para reduzir, mas, no mínimo, frear a escalada da violência. E pediu socorro ao governo federal que, se espera, não erre novamente, decretando operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que já se mostrou ineficiente nesses casos[4].

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Não pela operação em si, mas porque não basta atender ao pedido. É necessário que seja cobrado do solicitante um plano local de contenção, identificadas as vulnerabilidades e as ameaças e, na sequência, especificados os auxílios pleiteados. Nunca foi feito!

Em um primeiro momento, é um pedido de ajuda, é uma faixa cinzenta, em que o governo federal escalona o atendimento às necessidades, enquanto a força federal, em alerta, elabora seu plano de ação. Esgotada a capacidade estadual, essa força federal assumiria.

 Porém, lamenta-se, esse trespasse nunca foi observado – o que daria tempo para a força federal se organizar, se preparar – e, “jogados às feras”, governo federal e suas Forças Armadas têm produzido resultados pífios, porque tem havido açodamento na autorização de operações de GLO.

Não tem sido observado que, na destinação das Forças Armadas, está estabelecido que seu emprego somente ocorrerá quando a evolução da Ordem atingir e ou superar o estágio de Grave perturbação ou Subversão da ordem (Dec.88.777 / R-200).

Ao que consta, será posto, apesar de sua complexa exequibilidade, que o país tenha um Plano Nacional de Segurança Pública e os demais entes federativos tenham correspondentes planos estaduais de segurança pública, sob pena de não poderem receber recursos da União para a execução de políticas, programas e/ou ações de segurança pública e defesa social. 

Ora, nesse contexto, enfatiza-se que, desde o início dos anos 1991, a União já vem lançando planos nacionais de segurança pública, e, em alguns, condicionando os mecanismos de repasse, de transferência de recursos para a segurança pública e defesa social - para Estados e municípios -, a que as respectivas unidades federativas atualizem suas políticas estaduais para o setor: 

 - O Plano Nacional de Segurança Pública de 1991: Governo Collor;

- O Plano Nacional de Segurança Pública de 2000: Segundo governo FHC;

- O Plano Nacional de Segurança Pública de 2003: Primeiro governo Lula;

- O Programa Nacional de Segurança com Cidadania de 2007: 2º governo Lula;    

- A Estratégia Nacional de Fronteiras (Enafron) de 2011: 1º governo Dilma;

- O Pacto Nacional de Redução de Homicídios de 2015: 2º governo Dilma;

- O Plano Nacional de Segurança Pública de 2016/2017: governo Temer;

- O Plano Nacional de Segurança Pública de 2018/2028: governo Temer.

Isto também está estabelecido “no atacadão” da Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018, que:

- “Disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, nos termos do § 7º do art. 144 da Constituição Federal;

- cria a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS);

- institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp);

- cria Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social;

- Decreto nº 9.630/2018 – Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social

- altera a Lei Complementar nº 79, de 7 de janeiro de 1994, a Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, e a Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007;

- e revoga dispositivos da Lei nº 12.681, de 4 de julho de 2012”.

Ainda, na citada lei 13.675, também há orientações para “Formulação dos Planos de Segurança Pública e Defesa Social”, como se fosse algo inédito:

“Art. 22. A União instituirá Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, destinado a articular as ações do poder público, com a finalidade de:

I - promover a melhora da qualidade da gestão das políticas sobre segurança pública e defesa social;

II - contribuir para a organização dos Conselhos de Segurança Pública e Defesa Social;

III - assegurar a produção de conhecimento no tema, a definição de metas e a avaliação dos resultados das políticas de segurança pública e defesa social;

IV - priorizar ações preventivas e fiscalizatórias de segurança interna nas divisas, fronteiras, portos e aeroportos.

...

§ 2º O Plano de que trata o caput deste artigo terá duração de 10 (dez) anos a contar de sua publicação.

§ 3º As ações de prevenção à criminalidade devem ser consideradas prioritárias na elaboração do Plano de que trata o caput deste artigo. (g.n.)

§ 4º A União, por intermédio do Ministério Extraordinário da Segurança Pública, deverá elaborar os objetivos, as ações estratégicas, as metas, as prioridades, os indicadores e as formas de financiamento e gestão das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social. (g.n.)

Com o convite de Brasília, para debater o problema, as ações se invertem, visto que, pressupõe-se, o MJSP deve apresentar um esboço de trabalho e coletar sugestões dos governadores e demais autoridades, buscando a efetividade. O que, provavelmente, não alcançará, pois, pela relação de convidados, o crime continua sendo visto como um problema para somente as instituições policiais solucionarem.

E, se o crime é menos um problema policial que uma grave e complexa vulnerabilidade sociopolítica, reitera-se, as instituições específicas, que desenvolvem a atividade policial de proteção da população, não atuam sobre essa distorção da percepção.

Objetivamente, o crime não é problema só das instituições policiais, porque ora é um fenômeno jurídico, ora é um fato social (Durheim, 2001). Portanto, não se resolve somente com incremento de atividades policiais, ou seja, o crime é problema de instituições policiais, também. Todavia, por desinformação ou por incúria, as Polícias continuam pagando o boleto das mazelas e contradições sociais, o que é de responsabilidade de outras entidades.

Identificam-se, minimamente, duas situações para que isso ocorra. A primeira é a Distopia Estatal, isto é, a inexistência ou o funcionamento anômalo de certos órgãos estatais, cujo tamanho das ineficiência, deficiência ou insuficiência é diretamente proporcional ao acionamento da Polícia. Então, quanto maior essa distopia, maior a demanda por Polícia (Meireles, 2023). A segunda vertente se refere a dispositivos legais, que não são observados, quando da elaboração de documentos relativos à Defesa Social (onde se insere a tal Segurança Pública).

É possível, inclusive, que, nessa reunião, desponte um paradoxo: pela manifestação do governador do Rio de Janeiro, infere-se que sua força de polícia está próxima de se exaurir, o que estaria exigindo reforço igual ou maior que ela.

Em outras palavras, aquela autoridade está dizendo que sua Força de Polícia (a PM) está sendo vencida pelos grupos criminosos organizados, em razão de inferioridade logística, em razão de imposições legais que impedem seu emprego de forma igual ou superior à que é confrontada.

Em recente Seminário Internacional sobre Regulação do Uso da Força, realizado pelo MJSP, entidades (que ganham projeção jogando para a torcida) criticaram os números da letalidade policial e, simplesmente, condenaram o atual uso da força.

Não ponderaram, porém, as circunstâncias em que ela ocorreu e a vitimação de policiais.  

Ora, as Polícias Militares são a própria força do Estado, ou seja, operacionalizam a capacidade de o Estado impor sua vontade (incontestavelmente, sempre dentro dos limites da legalidade e de todas as condicionantes e pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário), utilizando a técnica do uso progressivo da força.

No referido seminário, uma colocação pragmática: “O uso da força, quando necessário, não é incompatível com os direitos humanos, desde que os protocolos e as técnicas apropriadas sejam seguidos rigorosamente, garantindo uma intervenção correta e ajustada à realidade de cada caso” (André Garcia, Secretário Nacional de Políticas Penais).

Convém lembrar, aqui e agora, que, em maioria, a transformação do conflito em confronto tem origem no infrator e não no policial. Ademais, o povo já está cansado, esgotado, desnorteado e quer ações rigorosas e vigorosas contra a criminalidade em geral. Isso não significa aceitar a prática de ilegalidades! É, sim, um brado contra o tratamento dessa questão com lirismo ou segundas intenções. A ajuda do governo federal não poderá ser despachando para o Rio de Janeiro um caminhão de rosas!

Romantismo e incapacidade de identificação do problema de forma técnica, científica e metodologicamente adequada é que impedem o enfrentamento profissional do problema (in)segurança pública no Brasil. (Freidson, 1999; Silva Júnior; Rondon Filho; Silva et, 2022; Meireles, 2023).

Enfim, vislumbrou-se mais uma reunião mormaceira: muito calor e pouca luz. Muita publicidade, mas apresentação de soluções paliativas (o que de fato ocorreu!). É que, insiste-se, no cometimento do mesmo erro: a discussão gira em torno do “quê” está acontecendo, quando o fundamental seria discutir o “por quê” está acontecendo. Nesse caso, certamente, representantes de ministérios da área social deveriam ser a maioria, discutindo soluções para as causas e efeitos da criminalidade, que, hoje, recaem sobre os ombros das instituições policiais, protagonistas ocasionais por omissão dos verdadeiros protagonistas.

Enfatize-se: A missão das instituições policiais – sobretudo, das Forças Públicas Estaduais (denominadas Polícias Militares), que fazem Policiamento Ostensivo, no exercício da Polícia Ostensiva – continuará sendo encher o Tonel das Danaides[5]!!!!????    3. Conhecendo a PEC da (In)Segurança 

Finalmente, foi revelado em 13 de novembro do ano em curso, o grande segredo da “PEC da (In)Segurança”. Oficialmente, pelo MJSP, pois, oficiosamente, a imprensa já havia divulgado maioria dos itens que a compõem. Observa-se que não é tão boa, quanto deveria ser, nem é uma caixa de Pandora, como alguns pressupunham.

O fato de o governo central convidar governadores para discuti-la, foi declarado pelos convidados como um gesto de boa vontade, para se encontrar soluções que, se não resolvam, pelo menos minimizem, a níveis socialmente toleráveis, a inquietante, preocupante e angustiante insegurança provocada pela criminalidade, principalmente a violenta.

Na verdade, a reunião transformou-se em manifestações individuais, em apresentação de propostas, ao senhor MJSP, que deseja seja firmado um Pacto Federativo, visando ao enfrentamento da criminalidade, que, afirmou, deve ser debatido à exaustão, antes de ser enviado ao Congresso. Não se discutiu, portanto, uma PEC da Segurança, mas uma PEC para contenção da criminalidade, visto que trata somente desta ameaça, vale dizer, não abordou as demais, ou seja, a exclusão social, os desastres, as conturbações e as comoções sociais.

O próprio tripé da PEC apresentada – que contém propostas de ações circunscritas ao enfrentamento, tão somente, da criminalidade – demonstra percepção restritiva do problema. Em síntese, a referida proposta pretende, apenas: 1. constitucionalização do SUSP; 2. ampliar competências das Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal; e 3. constitucionalizar o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e o Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN).

A primeira proposta é constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), criado pela Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018, para atuar nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS). Sem dúvida, a falta de coordenação é uma enorme vulnerabilidade. Respeitada à Teoria das Realidades Culturais Diferentes, a proposta é aceitável, se ficar claro que o MJSP será o coordenador daquele sistema e não o gestor, como o é o Ministério da Saúde, em relação ao SUS.

Em que pese ter sido dito, exaustivamente, que um dos objetivos é a busca da efetividade, através da integração (de integrar, unir, fundir) observa-se que, nos parece, o que se pretende consolidar é a interação (entrosamento, reciprocidade) ou a palavra composta “integração de esforços”.

A PEC altera artigos da CF/88 “[...] de modo a conferir à União a competência para estabelecer diretrizes gerais quanto à política de segurança pública e defesa social [...]”. Por seu turno, o verbo “estabelecer” não está bem colocado, pois é dúbio: “fixar, ditar, impor”? Ou seria “sugerir, propor”?

Segundo exposição do senhor Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, “a segurança pública precisa falar a mesma língua”. É verdade! Um grande calcanhar de Aquiles, certamente, é a terminologia.

Também é notória a falta de conceituação genuína. Por exemplo, fala-se em Conselho, Política, Sistema, Plano de Segurança Pública e Defesa Social. Afinal, o que é isso? Segurança é sinônimo de proteção, de defesa, de serviço, de negócio, de profissão ou é um ambiente? E Segurança Pública é “correr atrás de ladrão e prender bandido? É sinônimo de contenção criminal, apenas? E Defesa Social, o que vem a ser? É a antiga (de Platão), a nova (de Marc Ancel) ou a novíssima (da Policiologia)? (Meireles, 2023).

Com a PEC, o governo federal pretende “padronizar protocolos, informações e dados estatísticos”. Este também é um grande gargalo para se estabelecer um diagnóstico no setor. Em que pese o Código Penal ser nacional, as secretarias estaduais e até as municipais criam nomenclaturas e classificações diferentes para identificar crimes e ações policiais. Isto inviabiliza conhecer a realidade do problema - a (in)segurança pública, decorrente da criminalidade, em nosso país - e traçar políticas públicas adequadas.  Queremos crer que, para não ferir a autonomia administrativa dos Estados-membros, através da PEC, o senhor Ministro “pretende apresentar propostas, sugestões de [...]”, o que seria muito bom, principalmente em relação à estatística policial, hoje apresentada por entidades particulares, disfemistas de polícia, em maioria.

A atualização das competências da PF e da PRF, de acordo com o que já acontece na prática, é uma confissão explícita de que (embora ambas realizem trabalho de excepcional valor) essas instituições policiais excedem a missão constitucional.

E o Departamento da Força Nacional de Segurança Pública (DFNSP) – mais conhecido por Força Nacional – que existe de fato, mas não de direito, sequer foi mencionado. Segundo o MJSP, “o modelo dos Estados e do Distrito Federal, de duas forças policiais com funções distintas, merece ser replicado no âmbito da União”.

A ideia de simetria é boa, porém, a forma de operacionalizá-la é muito ruim. Primeiro, porque nas unidades federativas, as duas forças, as forças públicas estaduais são a Polícia Militar (PM) e o Corpo de Bombeiros Militar (CBM).

A Polícia Civil (PC), polícia judiciária estadual, tem poder de polícia, mas não é força de polícia (embora, em alguns Estados, a exemplo da União, a polícia judiciária às vezes extrapola, realizando ações de polícia ostensiva).

Segundo, porque a força pública federal (que pretendem criar) pode advir do reconhecimento constitucional da Força Nacional de Segurança Pública (DFNSP), com estrutura e organização próprias. Liberaria a PF de atividades de polícia ostensiva, para se concentrar na investigação, que realiza exemplarmente. Com o crescimento do crime cibernético, a demanda de sua intervenção tende a aumentar consideravelmente. E por que ampliar a competência da PRF, que realiza trabalho específico de reconhecida qualidade?

Veja-se a capilaridade na Medicina - profissão e/ou instituição - (Freidson, 1999; Silva Júnior; Rondon Filho; Silva et, 2022), na qual o médico generalista passa a ter especialistas, que se subdividem em experts.

Na profissão, instituição, na atividade policial e, mais recentemente, na Ciência Policial, isto não deve ser diferente, técnico-cientifica e metodologicamente, conforme, estes últimos autores – policiais e também pesquisadores – têm sistematizado e difundido no Brasil um método próprio para este campo do saber: a desconcentração de atividades policiais peculiares a locais específicos.  

Quanto à Polícia Ferroviária Federal, já na CF, a hora é de desinverná-la e de instrumentalizá-la. O ideal é que, além da DFNSP (que não se confunda com o fundo nacional), outras instituições, que realizam a atividade de polícia em portos, aeroportos, hidrovias, etc., sejam inseridas na CF, compondo, efetivamente, um sistema.

Na exposição, o senhor Ministro da segurança pública citou quatro exemplos do que não se pretende com essa PEC: 1. não centraliza o uso de sistemas de tecnologia da informação; 2. não intervém no comando das polícias estaduais; 3. não diminui a atual competência dos estados e municípios; e 4. não cria novos cargos públicos. Exceto o último, os demais são positivos.

O fato de não criar cargos públicos, não pode tornar-se uma obsessão. Não há como fazer omelete sem quebrar os ovos! Deve ser priorizada uma análise de custo-benefício, sobretudo no campo da segurança pública e defesa social, no qual o índice de afastamentos, desligamentos, aposentação é alto, em face de multifatores. (Silva; Borges, 2017). Para essas reformas preliminares, urge que se invista em tecnologia, mas, também, em pessoal qualificado.

Na oportunidade, é extremamente importante ressaltar que identificou-se um descompasso entre o acréscimo – que o MJSP propõe – do inciso XXVII, no Art. 21, da CF/88, que trata das competências da União, e a manifestação do senhor Ministro:

 “XXVII - estabelecer a política nacional de segurança pública e defesa social, que compreenderá o sistema penitenciário, instituindo o plano correspondente, cujas diretrizes serão de observância obrigatória por parte dos entes federados, ouvido o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, integrado por representantes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na forma da lei” (g.n.).

Da exposição: “[...] a PEC não diminui a atual competência dos estados e municípios”.

Evidentemente, a anotação de que “diretrizes serão de observância obrigatória por parte dos entes federados”, ou seja, são regras de observância imperativa, é uma flagrante invasão na autonomia constitucional dos Estados.

E para se conhecer o que significaria “na forma da lei”, basta consultar o que estabelece o Art. 22 da Lei 13.765, em seu parágrafo 5º:

§ 5º - “Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão, com base no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, elaborar e implantar seus planos correspondentes em até 2 (dois) anos a partir da publicação do documento nacional, sob pena de não poderem receber recursos da União para a execução de programas ou ações de segurança pública e defesa social”. (g.n.).

Em sua intervenção, o senhor Ministro Flávio Dino, lembrou que há vinte anos vêm sendo implementados o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), sendo a avaliação altamente positiva. E sugere, lembrando a interação de órgãos, que essa concepção se estenda à Segurança Pública.

Ora, já existe um Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social e, um de seus fins, é apresentar diretrizes para as políticas públicas de segurança pública e defesa social (o que jamais foi feito). Seus integrantes, possivelmente, têm muito conhecimento, mas não têm a expertise de profissionais da área, decorrente do somatório de conhecimento e de experiência secular adquirida. Assim, para exame e manifestações técnicas, relativas à área da salvaguarda social, seria oportuno criar o Conselho Nacional de Polícia (CNP).

Por fim, foram mostradas as alterações constitucionais necessárias à implementação dos dispositivos da PEC apresentada. Discordâncias implícitas e explícitas em relação à expedição de diretrizes vinculantes, como cabrestos.

Volta-se à Teoria das Realidades Culturais Diferentes! Todavia, a discussão está aberta. Fato que, a par de inédito, é muito positivo!...

Sobre o autor
Amauri Meireles

Coronel Veterano da PMMG Foi Comandante da Região Metropolitana de BH

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos