4. Considerações Gerais
Podemos enquadrar esse episódio da “PEC da Segurança” sob três perspectivas. A primeira, a do governo federal, representado pela exposição do senhor MJSP, Ricardo Lewandowski, sobre a proposta de uma PEC da Segurança, para reduzir a insegurança, com destaque para o aspecto subjetivo, que aflige a todos nós, brasileiros. Contudo, ficou restrita a uma PEC para enfrentar o aumento quantitativo e qualitativo da criminalidade, agora não mais local, mas, até transnacional, e muito organizada (daí, o surgimento de Orcrim). Evidentemente, se a intenção tivesse sido, de fato, uma PEC para dar efetividade às ações de Segurança Pública e Defesa Social, o MJSP deveria considerar minimamente trechos inseridos na Lei 13.675:
- Art.22 A União instituirá Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, destinado a articular as ações do poder público, com a finalidade de: - I - promover a melhora da qualidade da gestão das políticas sobre segurança pública e defesa social; § 1º As políticas públicas de segurança não se restringem aos integrantes do SUSP, pois devem considerar um contexto social amplo, com abrangência de outras áreas do serviço público, como educação, saúde, lazer e cultura, respeitadas as atribuições e as finalidades de cada área do serviço público. [...]
Art. 24. Os agentes públicos deverão observar as seguintes diretrizes na elaboração e na execução dos planos:
I - realizar a integração de programas, ações, atividades e projetos dos órgãos e entidades públicas e privadas nas áreas de saúde, planejamento familiar, educação, trabalho, assistência social, previdência social, cultura, desporto e lazer, visando à prevenção da criminalidade e à prevenção de desastres.
Portanto, alguns alertas para discussões futuras. O primeiro é que a criminalidade não é problema das Polícias, somente. É um problema das Polícias, também. Fala-se muito em Segurança Pública e em Defesa Social, porém, tem-se noção do que sejam, mas não há convicção, gerando interpretações heterogêneas, quase sempre equivocadas. Dessa forma, é fundamental que, no debate sobre Segurança Pública (Salvaguarda Social) e Defesa Social (a novíssima), estejam presentes representantes das áreas sociais do governo, as quais podem e devem restringir causas e efeitos, que fluem e refluem, respectivamente, para a causalidade, vértice em que atuam as Polícias.
A segunda perspectiva – dos governos estaduais, representados pelos governadores presentes à reunião - é, implícita e explicitamente, de oposição ao “cabresto” que lhes será imposto, conforme consta, subliminarmente, da proposta de alteração constitucional (acréscimo do inciso XXVII ao Art.21 da CF/88):
XXVII - estabelecer a política nacional de segurança pública e defesa social, que compreenderá o sistema penitenciário, instituindo o plano correspondente, cujas diretrizes serão de observância obrigatória por parte dos entes federados, ouvido o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, integrado por representantes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na forma da lei.” (g.n.)
Ou seja, os governos estaduais não querem o ascenso constitucional, mas se esquecem de que há uma lei vigente (nº 13.675/2018, sancionada em 11 de junho) que já estabelece:
§ 5º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão, com base no Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, elaborar e implantar seus planos correspondentes em até 2 (dois) anos a partir da publicação do documento nacional, sob pena de não poderem receber recursos da União para a execução de programas ou ações de segurança pública e defesa social”. (g.n.)
Então, é de se entender que os governadores deveriam, também, pleitear revogação desse trecho da citada lei.
Quanto à constitucionalização do SUSP, alguns governadores entendem que pode ser uma boa providência (principalmente em relação às verbas “serem carimbadas”, distribuídas sem viés ideológico ou político-partidário), se o MJSP for o coordenador desse sistema, e não o gestor, como o Ministério da Saúde o é, em relação ao SUS.
Em relação à criação de uma força pública federal, nos moldes de uma das forças públicas estaduais – a PM, pois a outra é o Corpo de Bombeiros Militar – há, no ar, a preocupação de que o governo federal pretende, na verdade, criar uma guarda pretoriana moderna (ou guarda bolivariana?), para servir a seus interesses ideológicos.
Por certo, é assunto que deve ser tratado tecnicamente, sem essa presunção, porque:
- o governo federal (de forma rasa, eventual, pouco eficiente) já realiza atividades de polícia ostensiva em fronteiras, em áreas de desmatamento ilegal, em portos e aeroportos, em lagos e rios, na proteção de dignitários, no desbaratamento de quadrilhas envolvidas com o tráfico ilícitos de armas, drogas, pessoas, etc. Fica claro, então, que o governo não quer criar uma nova Polícia, mas, sim, ampliar competências, isso sim, passível de discussões.
- não há dúvida de que há profissionalismo dos policiais envolvidos, porém, falta profissionalização dessas atividades (constitucionalização de algumas, criação, divulgação e difusão de literaturas, termos técnicos legitimados por profissionais e comunidade científica, protocolos, etc).
- os governos estaduais não podem alegar ingerência, pois já existe, de fato, mas não de direito, uma Força Nacional de Segurança Pública (DFNSP), que realiza atividades de polícia ostensiva, inclusive atendendo solicitação de governadores presentes à reunião.
Reiterando, lamenta-se que maioria de nossos governantes e políticos não entende o que é ser e ter uma força pública federal (que não é “a” polícia ostensiva federal, mas uma das várias instituições que realiza atividades de polícia ostensiva federal), desconhecimento que não é apenas deles, mas, também da maioria da população.
E há descompassos em muitos outros tópicos, por uma razão muito simples, que o senhor Ministro tangenciou, abordou com pouca ênfase: “A Segurança Pública precisa falar a mesma língua”. As Ciências Policiais podem suprir a falta de terminologia e conceituações genuínas.
Objetivamente, convém rever e refazer o espectro de órgãos federais que realizam atividades de polícia ostensiva, concentrando-os no MJSP. A exemplo do que aconteceu recentemente com a recente Polícia Penal, convém que o DFNSP seja, constitucionalmente, reconhecido como a força pública federal (guardando simetria com os Estados), para atuação ostensiva nas fronteiras, em conflitos indígenas, na proteção do patrimônio federal e em suplemento aos esforços das forças estaduais.
Considerando que a Polícia Ferroviária (outra polícia ostensiva) já está incluída na CF/88, convém dinamizá-la, incorporando-a ao MJSP juntamente com a guarda portuária, hoje na estrutura do Ministério dos Portos Aeroportos.
A polícia judiciária federal (hoje, com o nome equivocado de Polícia Federal, visto que, na União, há vários órgãos que realizam atividades policiais, atividades de Polícia) deveria repassar atividades de polícia ostensiva para a força pública federal, preservando-se para realizar o que faz de maneira excepcionalmente bem, ou seja, a investigação de delitos. Com o incremento de Orcrim e do crime cibernético, a demanda por sua expertise será aumentada.
A terceira percepção é da população, que está apavorada com os rumos que a ousadia, a covardia dos marginais e, sobretudo, com a insignificância que têm dado à vida humana.
A população clama por providências efetivas que permitam que a vida volte a ser vivida em um ambiente mínimo de harmonia.
Já começa a adquirir consciência de que essa fatídica “ideologia woke” somente contribuiu para o enfraquecimento, empobrecimento, apodrecimento de valores – pilares de nossa sociedade – de forma subliminar. Insidiosamente, estimulou a desobediência às regras sociais, gerando o endeusamento de bandidos e a demonização da Polícia.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Duas citações: “Até que o sol não brilhe, acendamos uma vela na escuridão”, de Confúcio; outra “É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”, seria de Confúcio ou de William L. Watkinson. Aqui, não se discute a autoria, mas nos agarramos ao conteúdo dessas significativas mensagens, que se encaixa perfeitamente nas manifestações que aqui apresentamos. O convite (verdadeiro ou insidioso) ao debate está posto. Então, cabe aos policiólogos, à comunidade acadêmico-científica darem sua contribuição, principalmente assessorando governantes e políticos.
E, ao final, algo óbvio que ainda não foi percebido pelo MJSP: por mais poder, força, tecnologia ou de outra forma, como aventado na reunião, por mais investimentos, maior integração (na verdade, é interação) e maior priorização em inteligência (não apenas da segurança pública, mas também dos demais setores do aparelho estatal e, em certo nível, até do setor privado), os resultados, certamente, serão pouco significativos, porque se insiste em pesquisar e mitigar o “quê” está acontecendo (número de crimes, tipos, incidência, frequência, etc.) em lugar do “por quê” está acontecendo (quais são as causas, quais são os efeitos?).
A premissa, portanto, está equivocada, quando se trata a Insegurança Pública e, em particular, a criminalidade como sendo, tão somente, um problema de Polícia, quando a realidade fática nos mostra que esse grave fenômeno social decorre de uma gravíssima e complexa vulnerabilidade sociopolítica. Logo, empenhos individuais, seja do MJSP ou de qualquer outro órgão, serão medidas paliativas, dado que, a estruturação do problema, as ações propostas e sua operacionalização devem resultar de esforços multiministeriais e interdisciplinares.
Portanto, se se quer, de fato, debater a Proteção de nosso povo e de nosso território, a origem deve ser a identificação e a correção de vulnerabilidades, no tecido que recobre nosso ecossistema social, que ensejam a ocorrência de ameaças ao organismo social, com destaque (negativo) para a criminalidade, em particular, da violenta.
Enfim, chega de acreditar e divulgar que a efetividade na atividade policial é a panaceia para reduzir, restringir, mitigar essa inquietante e angustiante ameaça. Antes, é hora de acordar e cobrar de órgãos da área social, responsáveis pelo guarda-chuva que abriga uma das maiores, senão a maior vulnerabilidade – a Distopia Estatal – que vem fomentando, há décadas, a elevação da espiral da criminalidade.
Referências
BORGES. André Gustavo de Moraes Vespaziano; SILVA, João Batista da. Política de ingresso na Polícia Militar: planejamento para seleção e recrutamento no RN. In: Direito público e governança: reflexões práticas sobre políticas públicas. (Orgs.) David de Medeiros Leite, Patrícia Moreira de Menezes, Rogério Emiliano Guedes Alcoforado (Orgs.) – Mossoró – RN: EDUERN, 2017. Disponível em: https://issuu.com/eduern/docs/direito_p_blico_e_governan_a_reflex. Acesso em: 08 set 2023.
Durkheim, Emilie. As regras do método sociológico. SP: Martin Claret, 2001.
Atlas da violência 2024: retrato dos municípios brasileiros / coordenadores: Daniel Cerqueira; Samira Bueno – Brasília: Ipea; FBSP, 2024.
FREIDSON. Eliot. Renascimento do profissionalismo: teoria, profecia e política. (Trad.) Celso Mauro Parcionornik. São Paulo: Edusp, 1998. (Clássicos, 12).
Lima, Carlos Alberto de. Força de pacificação: os 583 dias da pacificação dos Complexos da Penha e do Alemão. Rio de Janeiro: Agência 2A Comunicação, 2012.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Ubu; SESI/SP, 2018.
Meireles, Amauri; Espírito Santo, Lúcio. Teoria das Realidades Culturais Diferentes. Belo Horizonte: 1985.
Meireles, Amauri; Espírito Santo, Lúcio. Teoria da Síndrome de Violência Urbana. Belo Horizonte: 1985.
Meireles, Amauri. Insegurança pública e Policiologia. Belo Horizonte: Edição do autor, 2023 (Edição revisada e ampliada).
Silva Júnior. A. L; Rondon Filho, E. B; Silva, J. B; Valente Gomes, P. J; Sandes, W. F. Ciências Policiais: conceito, objeto e método de investigação científica. (Org.) Azor Lopes da Silva Júnior. São Paulo: Editora HN, 2022.
[2] O Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), instituição civil, com objetivo fundante da pesquisa, pluralismo e isenção ideológica, composta por doutores, mestres e outros pesquisadores da segurança pública e defesa social (todos profissionais de segurança pública do Brasil e até de outros países), comprometido com o rigor científico e análise metodológica adequado do problema “(in)segurança pública no Brasil”, realizou um webinar que tratou da temática PEC da Segurança Pública, que está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DGdfOOeOFWs&t=5977s. Acesso em: 21 nov. 2024.
[3] De acordo com o último relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa/2022) o Brasil apresentou resultado pífio, apesar da elevação dos índices, pois os dados qualitativos são inferiores a muitos países do continente americano. Nas três áreas de avaliação do Programa: Matemática, Leitura e Ciências, o país apresentou um desempenho fraco. Foram 379 pontos em Matemática, média inferior à média do Chile (412), Uruguai (409) e Peru (391). Com 410 pontos em Leitura, a pontuação é estatisticamente inferior à média do Chile (448) e Uruguai (430). E por fim, em Ciências, 403 pontos, resultado inferior às médias do Chile (444), Uruguai (435) e da Colômbia (411). Na América do Sul, o Brasil fica em último lugar (empatado com Argentina e Peru). Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/acoes-internacionais/divulgados-os-resultados-do-pisa-2022. Acesso em: 21 nov. 2024.
[4] Inúmeras iniciativas (tentativa e erro) já foram operacionalizadas Brasil afora. O caso do Rio de Janeiro é emblemático dado que sendo um caso sui generis - é possível considerar um “Estado” à parte em face do nível de ineficiência do Estado brasileiro (isso em todos os setores públicos) - em hipótese metodológica alguma pode servir de parâmetro para as demais unidades federativas. Para um maior aprofundamento ver: Espírito Santo, Lúcio; Meireles, Amauri. Belo Horizonte (1985).
[5] Conforme a mitologia Grega, Dánao era pai de cinquenta filhas, conhecidas como as Danaides. Destas, 49 em promessa ao seu pai assassinaram seus maridos à noite. Como punição elas foram condenadas a lavarem seus pecados enchendo continuamente de água uma jarra com furos, por onde a água voltava a sair. HOMERO. Ilíada. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Ubu; SESI/SP, 2018. Em uma analogia rápida, a segurança pública, seria, portanto, enfrentar a consequência e não a causa do problema.