Introdução
O que é o direito? Ao longo da história, a filosofia buscou responder a essa pergunta a partir de diversas perspectivas, muitas delas ancoradas em conceitos idealistas, que afirmam a existência de leis ou direitos naturais, inerentes ao ser humano e ao cosmos. Este livro propõe uma ruptura com tais concepções. O direito, aqui, será compreendido como uma criação exclusivamente humana, produto de uma necessidade prática e sustentado pela linguagem.
Adotando uma abordagem empirista, argumenta-se que não existem leis naturais no sentido em que são comumente compreendidas no campo jurídico. O que chamamos de "leis naturais" são, na realidade, abstrações criadas pelo intelecto humano para descrever os fenômenos do universo, tal como as fórmulas matemáticas. Da mesma forma, a ideia de "direitos naturais" carece de fundamento. Assim como não se encontram na natureza fórmulas matemáticas gravadas nas rochas, tampouco se encontram direitos. O direito não está na natureza, mas na linguagem e nas crenças de uma comunidade.
Capítulo 1: Direito, Linguagem e Crença
1.1 A inexistência de leis naturais
A primeira premissa desta teoria é o rompimento com a ideia de que o direito possui uma base natural. A noção de leis naturais confunde-se frequentemente com observações empíricas das regularidades do universo, como a gravidade ou a termodinâmica. No entanto, essas "leis" não são comandos que regulam o comportamento do universo, mas descrições criadas pelo intelecto humano para compreender e prever os fenômenos naturais. Não há nelas qualquer prescrição ou valor intrínseco.
Analogamente, a ideia de "direitos naturais" é uma ficção filosófica. Não existem direitos na natureza. Nenhum animal ou objeto possui direitos que possam ser observados ou mensurados. O que chamamos de direito emerge exclusivamente da abstração humana e, como tal, é uma construção cultural.
1.2 O ser humano e a racionalidade subjetiva
Para reforçar a inexistência de direitos naturais, é importante desconstruir a noção de que o ser humano ocupa um lugar privilegiado na natureza por sua suposta racionalidade. Estudos contemporâneos em ciência cognitiva e etologia (o estudo do comportamento animal) demonstram que a racionalidade humana não é única ou absoluta. Existem diferentes tipos de inteligência, muitas delas compartilhadas por outras espécies. A autoconsciência, frequentemente considerada um atributo exclusivamente humano, foi identificada em diversos animais, como grandes primatas, golfinhos e corvos.
Portanto, a ideia de que o direito deriva de uma racionalidade humana superior não se sustenta. O que realmente distingue o direito não é sua base natural ou racional, mas sua origem prática: a necessidade de organizar interesses em uma comunidade.
1.3 Direito como linguagem
O direito é, essencialmente, um sistema de linguagem. Suas normas, obrigações e proibições são enunciados construídos por uma comunidade para regular comportamentos e proteger interesses. No entanto, a linguagem é subjetiva, e os signos que a compõem variam em significado dependendo do contexto e da experiência de cada indivíduo.
Por exemplo, a palavra "propriedade" pode ter conotações distintas em diferentes culturas ou mesmo entre indivíduos de uma mesma comunidade. Para alguns, ela representa um direito inviolável; para outros, pode ser vista como uma convenção útil, mas contestável. Essa fluidez de significados é intrínseca à linguagem e, por consequência, ao direito.
1.4 O surgimento do direito a partir da necessidade
Antes de existir o direito, havia interesses. Indivíduos e grupos buscavam proteger aquilo que consideravam valioso, seja um parceiro, um abrigo ou o resultado de seu trabalho. Esses interesses, muitas vezes conflitantes, exigiram a criação de regras para evitar disputas e promover a convivência pacífica. O direito, portanto, surgiu como uma resposta prática à necessidade de organização social.
A base do direito é, assim, a crença coletiva em um conjunto de enunciados que, supostamente, devem ser seguidos. Essas crenças não possuem uma origem transcendental ou universal; elas são fruto de escolhas humanas, informadas por contextos históricos, culturais e sociais. O direito, em sua essência, é um contrato implícito entre os membros de uma comunidade, sustentado pela linguagem e pela aceitação coletiva.
Capítulo 2: Direito, Comunicação e o Abismo Interpretativo
2.1 A comunicação como fundamento do direito
O direito, sendo essencialmente linguagem, depende intrinsecamente do processo comunicacional. Para compreender como o direito funciona (ou falha em funcionar), é necessário antes entender o que é a comunicação e como ela ocorre. Comunicação, como já delineado, é o processo pelo qual ideias, necessidades ou intenções são transmitidas de um indivíduo a outro, utilizando um conjunto de signos. Esses signos podem ser verbais, não verbais, escritos ou até mesmo gestuais, dependendo do contexto e da espécie envolvida.
Esse processo não é exclusivo do ser humano; ele está presente em toda forma de vida. Desde o canto dos pássaros até os sinais químicos entre bactérias, a comunicação é um mecanismo essencial para a sobrevivência e a interação. Contudo, no caso do ser humano, a comunicação alcançou um grau de sofisticação singular por meio da linguagem simbólica, que permite a formulação de conceitos abstratos, como o direito.
No direito, o processo comunicacional assume uma complexidade adicional, pois não se trata apenas de transmitir uma ideia de um emissor para um receptor. Ele envolve normas que devem ser entendidas, interpretadas e aplicadas por diversos indivíduos em diferentes contextos sociais e culturais. Essa característica torna o direito profundamente dependente da eficácia da comunicação.
2.2 O abismo gnoseológico na comunicação jurídica
Toda comunicação está sujeita a falhas, mas no direito, essas falhas assumem um caráter estrutural. Como destacado, a comunicação envolve quatro etapas principais:
Processo interno do emissor: O emissor organiza suas ideias e escolhe os signos que usará para transmitir sua mensagem. No direito, esse papel geralmente é desempenhado pelo legislador ou pelo intérprete da norma.
Processo externo do emissor: A mensagem é efetivamente transmitida. No direito, isso se dá por meio de textos legais, precedentes judiciais, contratos, entre outros.
Processo intermediário: A mensagem desloca-se pelo meio. No direito, o "meio" pode incluir os tribunais, a mídia, ou os sistemas educacionais que difundem o conhecimento jurídico.
Processo interno do receptor: O receptor analisa a mensagem e extrai dela um significado. No direito, o receptor pode ser um juiz, um advogado, ou até mesmo um cidadão comum.
A falha mais comum nesse ciclo ocorre na última etapa: a interpretação. O abismo gnoseológico – a impossibilidade de um receptor captar com absoluta precisão a intenção do emissor – é particularmente problemático no direito. Dois indivíduos podem ler o mesmo texto legal e chegar a interpretações completamente distintas, influenciados por suas experiências pessoais, valores e pressupostos culturais.
Um exemplo clássico disso é o conceito de "justiça". O que para um pode significar equidade, para outro pode significar retribuição. O mesmo vale para termos jurídicos mais específicos, como "propriedade", "direito adquirido" ou "ordem pública". Cada termo carrega um campo semântico amplo, permitindo múltiplas interpretações.
2.3 Direito como linguagem problematizada
Essa característica interpretativa do direito torna-o, por definição, um instrumento imperfeito para sua finalidade primordial: ordenar a convivência em sociedade. Se o objetivo do direito é regular comportamentos, garantindo que os membros de uma comunidade sigam determinadas normas para evitar conflitos, sua eficácia depende da capacidade de seus destinatários compreenderem e concordarem sobre o significado dessas normas. Contudo, a interpretação subjetiva impede que essa compreensão seja uniforme.
No âmbito jurídico, essa falha comunicacional se manifesta de diversas formas:
Ambiguidade dos textos legais: Um mesmo dispositivo legal pode gerar interpretações conflitantes, levando a disputas judiciais.
Diferenças culturais e sociais: Um texto legal pode ser entendido de forma distinta por diferentes comunidades dentro de um mesmo país, dependendo de suas práticas e valores culturais.
A evolução da linguagem: A linguagem é dinâmica, e os significados das palavras mudam ao longo do tempo, enquanto os textos legais muitas vezes permanecem inalterados.
Por exemplo, a expressão "moral e bons costumes", amplamente utilizada em legislações do século XX, tornou-se vaga e controversa à medida que a sociedade evoluiu e valores culturais se diversificaram. O que era considerado "imoral" em uma época pode ser visto como aceitável ou até mesmo desejável em outra.
2.4 O desafio da interpretação no direito
Se o direito é problemático enquanto linguagem, ele é ainda mais desafiador enquanto sistema interpretativo. As normas jurídicas não apenas descrevem ou informam; elas prescrevem comportamentos. Isso significa que sua interpretação não é meramente acadêmica, mas possui implicações práticas e concretas.
Os operadores do direito – legisladores, advogados, juízes – enfrentam o desafio de construir interpretações que sejam, ao mesmo tempo, fiéis à intenção do legislador e aplicáveis ao caso concreto. Contudo, essa busca por fidelidade interpretativa é limitada pela subjetividade. Como saber, com certeza, o que o legislador "quis dizer"?
Mesmo quando o legislador explicita sua intenção, como ocorre nas exposições de motivos que acompanham certas leis, a subjetividade do intérprete não pode ser eliminada. O receptor (intérprete) traz consigo um conjunto de pressupostos e preconceitos que inevitavelmente influenciam sua leitura.
Isso é evidente em jurisprudências contraditórias, onde tribunais diferentes chegam a conclusões opostas sobre um mesmo texto legal. Essa multiplicidade de interpretações não é um desvio, mas uma característica intrínseca ao direito enquanto linguagem.
Capítulo 3: A Fragilidade dos Métodos Interpretativos e a Base Cognitiva do Direito
3.1 A crítica aos métodos interpretativos
Diante do abismo gnoseológico intrínseco ao direito, qualquer tentativa de sistematizar ou criar regras para a interpretação das normas jurídicas soa como um exercício de imposição arbitrária. Os chamados métodos interpretativos – gramatical, sistemático, teleológico, entre outros – não possuem, em essência, qualquer superioridade ou legitimidade intrínseca. Cada método carrega uma finalidade específica, escolhida de forma casuística para atender a um objetivo pré-determinado. Assim, propor um método interpretativo como "superior" é menos um avanço técnico e mais uma pretensão de autoridade sobre a liberdade interpretativa do destinatário.
Quando se afirma, por exemplo, que deve ser dada primazia ao método gramatical por razões de clareza ou segurança jurídica, o que se faz, na prática, é tentar fixar a interpretação no plano formal da linguagem, ignorando os demais aspectos do processo comunicativo. Essa escolha não é neutra, mas revela uma intenção: limitar a subjetividade interpretativa para alcançar maior previsibilidade. No entanto, previsibilidade, por si só, não garante justiça, equidade ou funcionalidade. É apenas mais uma escolha entre muitas, e não há um critério universal que determine que esta escolha seja "melhor" do que outra.
Ademais, qualquer tentativa de impor um método como regra superior falha em resolver o problema fundamental do abismo interpretativo: o receptor da mensagem jurídica continuará interpretando-a com base em seus próprios referenciais cognitivos, culturais e emocionais. Assim, mesmo uma norma que prescreva o uso de um método interpretativo específico será, ela própria, objeto de interpretação.
3.2 A liberdade interpretativa do destinatário
Se não há um método universalmente correto de interpretação, resta admitir que o destinatário da norma possui ampla liberdade para adotar a interpretação que considerar mais adequada. Essa liberdade, longe de ser um defeito, é uma das características mais fundamentais – e libertadoras – do direito.
O que confere força ao direito não é o poder coercitivo do Estado, nem a força das armas, nem qualquer princípio transcendente. A força normativa do direito reside unicamente na crença do destinatário. O direito existe apenas porque aqueles a quem ele se dirige acreditam em sua legitimidade, seja por convicção moral, por pragmatismo ou por temor às consequências. Essa força cognitiva e intelectual do direito é sua única fonte de normatividade.
Essa ideia pode ser desconcertante para quem busca no direito uma base sólida e imutável. Contudo, ela é corroborada pela realidade. Não há força metafísica ou sobrenatural que impeça um indivíduo de violar uma norma jurídica. O que impede um indivíduo de matar outro? Nada, além da crença de que isso é errado ou inadequado. Para aqueles que não compartilham dessa crença, a norma jurídica é inócua, e é por isso que violações ocorrem.
3.3 Direito e moral: semelhanças e diferenças
Essa análise nos conduz a uma reflexão sobre as semelhanças e diferenças entre direito e moral. Ambos são, essencialmente, sistemas de regras que dependem da crença de seus destinatários para terem eficácia. Ambos buscam orientar comportamentos com vistas a um objetivo maior, que pode ser chamado de "melhor viver". No entanto, há diferenças fundamentais entre eles.
3.3.1 Regras morais: o foco no indivíduo
As regras morais têm como característica principal sua aplicação ao comportamento do indivíduo em relação a si mesmo. Elas buscam moldar ações que, do ponto de vista empírico, não interferem diretamente na realidade de terceiros. Por exemplo, a regra que sugere que o indivíduo deve escovar os dentes todas as manhãs é uma regra moral, pois tem como objetivo melhorar a saúde e a qualidade de vida daquele que a segue, sem impacto imediato em outras pessoas.
Outro exemplo é a regra moral de cumprimentar os vizinhos com um "bom dia". Embora envolva interação social, este ato não altera a realidade objetiva de ninguém além do próprio emissor. A moral, nesse sentido, é um conjunto de regras que guiam o comportamento individual, muitas vezes baseado em crenças culturais ou religiosas.
3.3.2 Regras jurídicas: o foco no coletivo
O direito, por outro lado, regula comportamentos que afetam a realidade de terceiros. As normas jurídicas são criadas para ordenar a convivência em sociedade, garantindo que os interesses de um indivíduo sejam respeitados por outros. Por exemplo, a regra que obriga alguém a respeitar a propriedade alheia é jurídica, pois busca proteger o interesse de um terceiro em relação ao seu bem. Da mesma forma, a regra que exige que alguém preste socorro a uma pessoa em perigo envolve diretamente a interação entre indivíduos e a preservação de interesses de terceiros.
Essa diferença essencial – o impacto na realidade de terceiros – é o que distingue o direito da moral. Contudo, em termos de funcionamento, ambos os sistemas se assemelham. Ambos dependem de crenças compartilhadas e são vulneráveis às mesmas falhas comunicativas e interpretativas.
3.4 A normatividade sem transcendência
Ao reconhecer que a força do direito reside exclusivamente na crença de seus destinatários, dissolvem-se as pretensões de transcendência frequentemente associadas a ele. Não há algo inerentemente especial no direito que o torne superior a outros sistemas normativos, como a moral ou os costumes. Sua eficácia decorre da aceitação coletiva, e não de uma qualidade intrínseca.
Isso não diminui a importância do direito, mas nos obriga a olhar para ele sob uma perspectiva mais realista. O direito não é um sistema perfeito nem absoluto; ele é humano, contingente e limitado. Sua legitimidade, longe de ser divina ou natural, é construída socialmente, renegociada a cada nova interpretação, a cada novo caso concreto.
Conclusão do capítulo
Este capítulo desafiou as bases dos métodos interpretativos e reafirmou a ideia de que a força do direito está enraizada nas crenças de seus destinatários, e não em uma normatividade transcendente. Essa visão leva a uma conclusão paradoxal: o direito é simultaneamente um sistema frágil e poderoso. Ele é frágil porque depende de uma aceitação subjetiva, vulnerável às falhas da comunicação e interpretação. Mas também é poderoso, porque é essa subjetividade que o torna flexível, adaptável e capaz de responder às necessidades dinâmicas de uma sociedade.
No próximo capítulo, exploraremos como essas características impactam a criação e aplicação do direito em sistemas jurídicos contemporâneos, e como as sociedades podem lidar com os desafios interpretativos inerentes ao processo jurídico.
Capítulo 4: Direito, Moral e Valores
4.1 O que são valores?
A discussão sobre valores sempre ocupou lugar central na filosofia do direito, especialmente no debate sobre se o direito pode ou não ser analisado de forma independente deles. Contudo, essa análise muitas vezes é obscurecida por uma abordagem abstrata e idealista, que enxerga os valores como entidades ontológicas separadas da experiência humana. Este capítulo propõe uma perspectiva radicalmente diferente: os valores não existem como entidades objetivas. Eles são, na verdade, expressões de sentimentos humanos.
A ciência contemporânea tem demonstrado que o intelecto humano não pode ser dissociado das emoções. Racionalidade e emoção não são polos opostos; ao contrário, frequentemente se interpenetram. O que se convencionou chamar de "valores" nada mais é do que uma tradução de emoções e sensações humanas em respostas culturais e normativas.
Por exemplo, o que se entende como o "valor da propriedade" surge do sentimento de indignação ou raiva experimentado por alguém que foi privado de seus bens. Esse sentimento é compartilhado por outros, que se identificam com a situação, seja por empatia, seja pelo medo de sofrer a mesma privação. Assim, os valores são construções emocionais, e não entidades metafísicas ou objetivas.
4.2 A evolução dos valores na sociedade
Os valores não são estáticos; eles evoluem à medida que a sociedade se torna mais complexa. O que hoje consideramos "valores universais" podem não ter tido o mesmo peso em períodos históricos anteriores. Um exemplo claro é o conceito de dignidade humana. Enquanto hoje é amplamente aceito como um valor fundamental, há 500 anos ele tinha pouca ou nenhuma relevância em muitas sociedades.
Essa evolução reflete as mudanças nas sensibilidades coletivas. O sentimento de indignação ou repulsa diante da fome, por exemplo, é muito mais forte nas sociedades contemporâneas do que era na Idade Média. Isso não significa que as pessoas do passado fossem menos humanas, mas que os contextos culturais e sociais moldavam de forma diferente as emoções e prioridades coletivas.
Portanto, valores são dinâmicos e refletem a resposta emocional de uma comunidade a determinadas situações. Quanto mais avançada e interconectada é uma sociedade, mais valores ela tende a criar, traduzindo novos sentimentos em normas culturais ou jurídicas.
4.3 Direito e valores: uma relação contingente
Dada a natureza dos valores como construções emocionais e sociais, o direito pode ou não incorporá-los, sem que isso comprometa sua essência. O direito é, fundamentalmente, fruto de um processo comunicacional e de crenças compartilhadas. Ele não depende de valores para existir, assim como não se torna mais "direito" ao incorporá-los.
Por exemplo, uma regra jurídica pode ser criada sem qualquer apelo a valores explícitos, desde que seus destinatários acreditem em sua utilidade ou legitimidade. Do mesmo modo, uma regra pode incorporar valores como dignidade ou justiça, mas isso não a torna intrinsecamente superior. O que importa, em ambos os casos, é a crença dos destinatários na validade da regra.
Essa perspectiva dissolve a pretensão de uma ligação necessária entre direito e valores. Regras jurídicas são regras como quaisquer outras – sejam emanadas pelo Estado, por um condomínio ou por uma comunidade religiosa. O que diferencia o direito de outros sistemas de regras não é sua suposta relação com valores, mas o contexto em que é aceito e aplicado.
4.4 Direito e outras formas de normatividade
A proposta aqui defendida é acabar com a discussão sobre a ontologia do direito, que tenta identificar traços que o distinguem essencialmente de outros sistemas normativos. Não há uma diferença ontológica entre o direito e outras formas de normatividade, como as regras morais ou costumes.
Uma regra de condomínio, por exemplo, não é ontologicamente distinta de uma regra estatal. Ambas são criadas por seres humanos para regular comportamentos em uma comunidade e dependem da crença coletiva para serem seguidas. A diferença entre elas não está em sua essência, mas nas consequências sociais de sua violação.
No caso de uma regra de condomínio que contrarie o regramento estatal, o criador da regra poderá sofrer as sanções do Estado. Contudo, isso não significa que ele esteja "errado". Certo e errado são categorias relativas, moldadas pelas crenças de uma comunidade. A sanção nada mais é do que a manifestação da crença de que quem viola uma regra deve sofrer consequências materiais ou sociais.