Capítulo 5: Direitos Fundamentais como Sentimentos Compartilhados
5.1 A inexistência empírica dos direitos fundamentais
Os chamados "direitos fundamentais" não existem no sentido empírico. Não são objetos ou forças tangíveis presentes no universo, mas sim construções intelectuais e culturais baseadas em crenças compartilhadas. São ideias que a sociedade, ao longo de sua história, passou a considerar indispensáveis para a proteção de determinados valores ou sentimentos humanos.
Essa construção histórica está intimamente ligada às atrocidades e calamidades vividas pela humanidade. Guerras, genocídios, escravidão, exploração econômica e outros eventos marcaram profundamente a experiência coletiva, gerando um clamor por normas que garantissem a preservação de certos aspectos da condição humana. Dessa forma, os direitos fundamentais surgem como respostas emocionais e racionais a essas experiências, uma tentativa de evitar que tais tragédias se repitam.
Contudo, no plano filosófico, esses direitos não são "super-direitos" ou prerrogativas inatas à condição humana. Eles não existem por si mesmos, mas apenas porque uma crença coletiva os sustenta. Assim como qualquer outra norma jurídica, os direitos fundamentais dependem da aceitação da comunidade para serem reconhecidos e aplicados.
5.2 A crença como fundamento dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais podem ser vistos como "superdireitos" na medida em que pretendem estar acima das demais normas jurídicas, servindo como limites ou princípios estruturantes. Contudo, esse status elevado não lhes confere qualquer existência ontológica independente. Eles só existem porque se acredita neles.
Essa crença, por sua vez, não é arbitrária, mas encontra raízes em sentimentos profundamente humanos. Por exemplo, o direito à vida, frequentemente colocado no ápice da hierarquia dos direitos fundamentais, é sustentado pelo sentimento de repulsa diante da perda de vidas. O medo de ser morto ou de perder entes queridos reforça a crença na sacralidade da vida como um valor compartilhado.
Sem essa crença, os direitos fundamentais deixam de ter força normativa. Isso é evidente em sociedades ou períodos históricos em que certos direitos não eram reconhecidos. A escravidão, por exemplo, era amplamente aceita em muitas culturas porque faltava a crença coletiva na dignidade universal de todos os seres humanos. Quando esse sentimento mudou, a regra também mudou.
5.3 O direito como proteção de valores (ou sentimentos)
Se analisarmos a relação entre direito e valores, podemos perceber que o direito surge precisamente para proteger sentimentos compartilhados em uma comunidade. A necessidade de regras decorre do desejo de preservar algo que a comunidade considera importante – seja a propriedade, a vida, ou mesmo a carne de carneiro, como no exemplo dado.
Imagine uma sociedade em que não houvesse sentimento de posse sobre bens materiais. Nessa sociedade, a violação de um espaço ou objeto não geraria nenhuma emoção negativa, e, portanto, não haveria necessidade de criar uma regra jurídica para proteger esse espaço ou objeto. O direito, nesse sentido, é sempre uma resposta à necessidade de proteger valores que emergem de sentimentos humanos.
Os direitos fundamentais, nesse contexto, são os sentimentos mais profundos e compartilhados de uma sociedade. Eles refletem aquilo que uma comunidade considera indispensável para a convivência e o "viver bem". Por isso, enquanto sentimentos, os direitos fundamentais são dinâmicos e mutáveis. Quando um sentimento deixa de ser compartilhado, o direito que o protege também desaparece.
5.4 A relação entre moral, direito e direitos fundamentais
Com base nessa perspectiva, podemos afirmar que direito e moral são duas faces da mesma moeda. A moral representa os sentimentos individuais, enquanto o direito reflete os sentimentos compartilhados. Ambos têm como objetivo a regulação do comportamento humano, mas se diferenciam em sua aplicação:
A moral regula o comportamento do indivíduo consigo mesmo ou com sua comunidade imediata. Ela é subjetiva e não depende de imposições externas.
O direito regula comportamentos que afetam outros indivíduos de forma mais ampla, servindo como um pacto coletivo para preservar sentimentos compartilhados.
Os direitos fundamentais, por sua vez, representam os sentimentos mais profundos e universais de uma comunidade em determinado momento histórico. São expressões daquilo que a sociedade, como um todo, considera essencial para a dignidade e o respeito entre seus membros.
5.5 A contingência dos direitos fundamentais
Dessa análise, decorre que os direitos fundamentais não são absolutos nem imutáveis. Eles existem enquanto refletem sentimentos compartilhados, e desaparecem quando esses sentimentos deixam de existir. Por exemplo, a ideia de "dignidade humana" não era um valor universal em sociedades medievais, mas tornou-se central no mundo contemporâneo. Da mesma forma, valores que hoje consideramos inquestionáveis podem, no futuro, perder relevância.
Essa contingência é fundamental para compreender os direitos fundamentais como fenômenos humanos, e não transcendentais. Eles são produto de crenças e emoções, não de uma ordem superior. Assim, não há nada que os torne intrinsecamente "superiores" ou "naturais". Eles são, como todo direito, fruto do intelecto humano e da linguagem.
Capítulo 6: Direito e Comunidade: A Alteridade como Fundamento
6.1 Direito como fenômeno comunitário
O direito só faz sentido enquanto fenômeno comunitário. Regras que um indivíduo estabelece para si mesmo, sem qualquer interação com terceiros, pertencem ao campo da moral, conforme já discutido. A moral regula os sentimentos individuais e os comportamentos que não afetam diretamente os outros. Por outro lado, o direito emerge da interação entre pessoas, da coincidência de regras no intelecto de dois ou mais indivíduos que compartilham valores e concordam sobre como devem se comportar em determinadas situações.
Portanto, o direito não é simplesmente a existência de uma regra externa – como uma lei ou decisão judicial – mas o processo pelo qual essa regra se instala no intelecto de diferentes pessoas, que passam a compartilhá-la e considerá-la válida. É esse compartilhamento que dá sentido ao direito, transformando-o de uma ideia individual em um fenômeno social.
6.2 A alteridade como marca distintiva do direito
Se ontologicamente não há distinção entre direito e moral, já que ambos são expressões de sentimentos humanos traduzidos em regras, há, contudo, uma diferença funcional fundamental: a alteridade. Enquanto a moral trata de sentimentos e regras individuais, que dizem respeito ao próprio sujeito, o direito surge da necessidade de regular as relações entre diferentes indivíduos.
Alteridade é a experiência do outro – a compreensão de que existem outros seres humanos com seus próprios sentimentos, valores e necessidades. É essa percepção que exige a criação de regras compartilhadas, capazes de regular as interações sociais de maneira minimamente harmônica. Por exemplo, o sentimento de posse pode ser individual, mas o direito de propriedade só surge quando duas ou mais pessoas concordam que é necessário respeitar o espaço ou os bens do outro. Sem essa concordância, a propriedade não é protegida, e a regra deixa de existir como direito.
Assim, enquanto a moral é individual e subjetiva, o direito é essencialmente coletivo e intersubjetivo. Ele depende de uma comunidade que partilhe valores e, a partir desses valores, construa regras para proteger os interesses comuns.
6.3 Direito como processo intelectivo e comunicacional
O direito, portanto, é um fenômeno que ocorre no plano do intelecto humano. Ele surge quando duas ou mais pessoas coincidem em suas ideias sobre como devem se comportar frente a uma situação específica. Essa coincidência de ideias é um processo intelectivo, que não depende da existência de um texto escrito ou de um contrato formal.
Quando uma regra é positivada – por meio de uma lei, decisão judicial ou qualquer outra forma de normatização –, isso representa apenas a materialização externa de um sentimento ou ideia que já existia no intelecto humano. A positivação é, portanto, um ato de tradução: traduzir sentimentos e ideias em signos que possam ser compartilhados e compreendidos por outros. Contudo, o direito em si já existia antes da positivação, pois é fruto da coincidência de valores e da aceitação de regras entre indivíduos.
Essa perspectiva reforça que o direito não está na materialidade de um texto ou na autoridade de uma instituição, mas no processo comunicacional que faz com que indivíduos compartilhem regras em suas mentes e as considerem válidas. O texto ou a norma escrita é apenas uma tentativa de uniformizar ou organizar essas regras compartilhadas, mas não é o direito em sua essência.
6.4 A comunidade como fundamento do direito
Direito e comunidade estão intrinsecamente conectados. Uma comunidade pode ser definida como um grupo de pessoas que compartilham sentimentos, valores e crenças. O direito, enquanto sistema de regras, só faz sentido nesse contexto. Se um valor é exclusivo de uma única pessoa, ele permanece no campo da moral e não gera qualquer regra jurídica.
Imagine uma comunidade fictícia onde não existe o sentimento de posse sobre bens materiais. Nesse cenário, não haveria necessidade de criar regras para proteger a propriedade, pois ninguém sentiria indignação ou repulsa diante da apropriação de algo por outro indivíduo. Contudo, na maioria das sociedades humanas, o sentimento de posse é compartilhado. Esse compartilhamento dá origem à regra de propriedade, que se torna uma regra jurídica apenas porque é aceita por mais de uma pessoa.
Dessa forma, o direito só emerge quando há comunidade, pois é no contexto da interação social que valores individuais se tornam compartilhados e, consequentemente, exigem proteção coletiva. Sem essa interação, não há direito, apenas moral.
6.5 Direito além da positivação
Ao reconhecer que o direito é um fenômeno intelectivo, torna-se evidente que ele não depende da positivação para existir. A positivação – a materialização de regras em textos legais ou normas escritas – é um ato posterior e acessório. Sua função é organizar e uniformizar o que já existe no plano do intelecto humano e do compartilhamento de valores.
Por exemplo, uma constituição é um documento que traduz em palavras os sentimentos e valores considerados fundamentais por uma comunidade. As pessoas aceitam essa constituição porque reconhecem nela os valores e regras que já internalizaram. Se essa coincidência não existir, a constituição será percebida como ilegítima, e suas normas dificilmente serão seguidas. O direito, portanto, precede a positivação e não depende dela para existir.
Uma Análise Prospectiva: Crítica e Reflexão sobre a Natureza do Direito
Diante de tudo o que foi exposto, é inevitável reconhecer que a análise do direito sob uma perspectiva empirista, baseada em sua origem como fenômeno intelectivo e comunitário, esvazia qualquer pretensão transcendental ou imutável sobre o conceito de direito. Essa abordagem recusa a ideia de que existam critérios absolutos ou universais para determinar o que é ou não é direito. Sob esse prisma, uma regra que considere a escravidão como aceitável pode ser tão legítima quanto uma que a vede, desde que ambas sejam fruto de crenças compartilhadas por suas respectivas comunidades.
Essa constatação nos conduz a uma conclusão desconfortável, mas inevitável: o direito, em sua essência, não é mais justo ou mais injusto por conta de seu conteúdo moral. O sentimento de repulsa diante de uma regra, como a que permite a escravidão, não é um critério científico para deslegitimá-la enquanto direito. Isso porque a sensação de injustiça – sendo um sentimento – é subjetiva e contextual, variando de acordo com a sensibilidade e os valores de cada época e comunidade.
Por isso, ao afirmar que o direito não depende da moral, o que se quer dizer é que ele não é intrinsecamente atrelado a uma concepção específica de justiça. O direito pode nascer de qualquer valor – mesmo os que consideramos hoje inaceitáveis, como a escravidão –, desde que esse valor seja compartilhado e aceito por uma comunidade.
O Desafio de Definir o Direito
Essa visão empirista nos leva a questionar a utilidade de definir o direito de maneira ontológica. Se o direito pode assumir qualquer forma, desde que seja fruto de um processo intelectivo e comunicacional, então talvez a busca por uma definição universal do direito seja infrutífera. Em vez disso, pode ser mais produtivo adotar uma abordagem funcionalista, que abandone as pretensões de determinar "o que é" o direito e se concentre em entender "como" ele opera em contextos específicos.
Um conceito funcional de direito se voltaria para sua finalidade prática: regular as interações humanas de forma a facilitar a convivência em comunidade e proteger valores compartilhados. Essa abordagem permite que analisemos diferentes sistemas jurídicos sem julgá-los a partir de critérios transcendentais, mas considerando sua eficácia em atender às necessidades de sua comunidade.
O Direito em uma Sociedade em Evolução
A evolução tecnológica e social trouxe melhorias significativas à qualidade de vida humana, permitindo avanços em áreas como saúde, educação, e comunicação. Esse progresso tem moldado as sensibilidades coletivas e, consequentemente, os valores que sustentam o direito. Por exemplo, a vedação à escravidão é hoje considerada um avanço civilizatório, uma conquista moral que reflete um valor amplamente compartilhado: a dignidade humana.
Contudo, esse movimento de evolução não é garantido. O progresso social não é linear nem irreversível. Momentos de regressão histórica – como o ressurgimento de regimes totalitários ou a aceitação de práticas moralmente repugnantes – já foram observados, mesmo após períodos de grande avanço.
No direito, essa fragilidade é especialmente preocupante. Se o direito é um reflexo dos valores de sua comunidade, e se esses valores podem mudar, como garantir que práticas consideradas hoje inaceitáveis, como a escravidão ou o genocídio, não retornem no futuro?
A Preocupação com a Permanência de Valores
A ausência de um núcleo transcendente ou imutável no direito nos deixa sem garantias de que valores fundamentais serão preservados. Se os valores que sustentam o direito dependem de crenças coletivas, e essas crenças são dinâmicas, não há como evitar que determinados valores sejam substituídos ou abolidos.
Essa incerteza é inquietante, especialmente quando consideramos os horrores que a humanidade já enfrentou. Como garantir que valores como a dignidade, a igualdade e a liberdade não sejam abandonados em momentos de crise ou sob regimes autoritários?
Ponderações sobre a Garantia de Valores Fundamentais
Embora não haja garantias absolutas, algumas estratégias podem ser consideradas para minimizar os riscos de regressão:
Educação e Cultura: A preservação de valores fundamentais começa na educação. Promover uma cultura de respeito, empatia e reflexão crítica é essencial para manter os valores compartilhados que sustentam o direito. A educação pode moldar as sensibilidades coletivas, fortalecendo a rejeição a práticas como a escravidão e o genocídio.
Instituições Resilientes: O fortalecimento de instituições que protegem valores fundamentais, como tribunais constitucionais, organizações internacionais e sociedades civis, pode ajudar a garantir que esses valores resistam a pressões políticas e sociais.
Memória Histórica: A preservação da memória histórica é crucial para evitar que erros do passado sejam repetidos. Monumentos, museus e narrativas que documentam atrocidades passadas ajudam a manter vivo o sentimento de repulsa que sustenta determinados valores.
Flexibilidade do Direito: Paradoxalmente, a própria mutabilidade do direito pode ser uma força. Um sistema jurídico adaptável pode incorporar novos valores e corrigir desvios, garantindo que o direito continue a refletir as sensibilidades de sua comunidade.
Conclusão: Uma Reflexão sobre o Futuro do Direito
A análise apresentada ao longo deste texto revela tanto a força quanto a fragilidade do direito. Ele é poderoso porque reflete os valores de uma comunidade e regula sua convivência, mas é frágil porque esses valores são dinâmicos e sujeitos a mudanças.
Reconhecer que o direito é fruto de um processo comunicacional e não um dado objetivo reforça a importância de que os valores que sustentam o direito sejam constantemente introspectados pelos indivíduos. Se o direito é dinâmico e depende da coincidência de crenças, é necessário um esforço contínuo para que valores considerados fundamentais – como a dignidade, a liberdade e a igualdade – sejam mantidos e cultivados na consciência coletiva.
Da mesma forma, para alterar uma estrutura jurídica, não basta mudar as regras formalmente. É preciso, antes de tudo, transformar os sentimentos da comunidade. Somente quando os valores de uma sociedade evoluem é que as normas jurídicas podem acompanhar essa mudança. A história está repleta de exemplos dessa dinâmica: a abolição da escravidão, o reconhecimento dos direitos das mulheres, o combate à discriminação racial. Todas essas mudanças foram precedidas por transformações profundas nos valores coletivos.
Embora não possamos garantir que valores fundamentais serão preservados para sempre, podemos adotar estratégias para proteger as conquistas civilizatórias que consideramos indispensáveis. O futuro do direito dependerá, em última análise, de nossa capacidade de educar, fortalecer instituições e manter viva a memória coletiva.
O direito, enquanto construção humana, carrega consigo a incerteza e a contingência que definem a própria condição humana. Essa constatação, longe de ser motivo de desânimo, deve nos inspirar a continuar moldando o direito de forma consciente, reconhecendo sua mutabilidade, mas trabalhando incansavelmente para que ele reflita os valores mais nobres de nossa humanidade.