LAICIDADE E RELIGIÃO
A laicidade é um tema atual e de muita repercussão que permite diversas discussões e opiniões divergentes desde a Constituição da República, mas que por um longo período era entendido como uma questão já resolvida, principalmente a partir da separação formal entre Igreja e Estado e a secularização da sociedade. Importante, assim, compreender o que é a laicidade segundo Mariano (2011, p. 244):
[...] regulação política, jurídica e institucional das relações entre religião e política, igreja e Estado em contextos pluralistas. Refere-se, histórica e normativamente, à emancipação do Estado e do ensino público dos poderes eclesiásticos e de toda referência e legitimação religiosa, à neutralidade confessional das instituições políticas e estatais, à autonomia dos poderes político e religioso, à neutralidade do Estado em matéria religiosa (ou a concessão de tratamento estatal isonômico às diferentes agremiações religiosas), à tolerância religiosa e às liberdades de consciência, de religião (incluindo a de escolher não ter religião) e de culto.
Já para Oro (2008, p. 81), a laicidade é:
um neologismo francês que aparece na segunda metade do século XIX, mais precisamente em 1871, no contexto do ideal republicano da liberdade de opinião - na qual está inserida a noção de liberdade religiosa = do reconhecimento e aceitação de diferentes confissões religiosas e da fundação estritamente política do Estado contra a monarquia e a vontade divina.
Há muito os cientistas sociais estão se preocupando com a laicidade, de modo que estão revendo frequentemente o conceito, por mais que na literatura sociológica permaneça a ideia de que a exclusão da religião da esfera pública constitui condição necessária para a democracia, seguindo o princípio secularista (MARIANO, 2011).
Diverge de Mariano (2011) o professor Vieira (2024, entrevista digital), compreendendo que essa teoria de exclusão da religião para efetivar-se a democracia possui origem francesa, “a qual tem como objetivo a retirada da crença religiosa de todo e qualquer espaço público, inclusive escolas, relegando-a apenas ao espaço privado e particular de cada um.” No caso do Brasil, não há o que se fazer quando o estado constitucional é o que está posto, inclusive com o nome de Deus expresso no preâmbulo da CF e a cruz exposta na bandeira do Brasil. Afirma que “a laicidade fomenta a religiosidade, gerando pluralismo político, o que, consequentemente, gera uma comunidade melhor e faz com que o Brasil cresça”.
Assim também pensa Montero (2013, p. 20), reconhecendo que no Brasil as religiões estão em toda parte:
[...] (e, aliás, sempre estiveram), é difícil sustentar que elas estão “fora de seu lugar”. Desse modo, as ciências sociais são chamadas a enfrentar de uma nova maneira o problema das relações entre religião e política, em particular, repensando o próprio secularismo que, de ponto de partida impensado do estudo das religiões, se torna ele próprio objeto privilegiado da reflexão.
Destaca-se que a laicidade estatal não significa, necessariamente, oposição ou hostilidade quanto às manifestações religiosas, pois é dever do Estado garantir às pessoas o livre exercício de suas crenças e religiões, sejam elas individuais ou coletivas, públicas ou privadas, bem como as celebrações e cultos religiosos, os ministros e outros (NETO, 2007). Mas o Estado Laico Brasileiro, constituído como Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1º da CF, assegura a liberdade religiosa e reconhece o transcendental, assegurando sua efervescência espiritual no seio da sociedade, legitimando o fenômeno religioso na esfera pública e privada.
No viés histórico, laico ou leigo tem origem no termo grego laikós, o qual designa o que se refere ao povo (laós). O termo era utilizado para distinguir as pessoas que eram designadas a missões especiais, como no caso dos presbíteros, diáconos e bispos, daquelas que passaram apenas pelo batismo. Nesse sentido, Estado laico não se refere a um estado sem fé, ateu ou que proíbe símbolos ou convicções religiosas, mas se refere a um Estado não confessional, sem religião oficial ou obrigatória.
Conforme Blancarte (2008, p. 23) “o Estado laico é a primeira organização política que garantiu as liberdades religiosas. Há que se lembrar que a liberdade de crenças, a liberdade de culto e a tolerância religiosa foram aceitas graças ao Estado laico, e não como oposição a ele”.
Assim, é possível sintetizar a laicidade em três princípios fundamentais: I. respeito à liberdade de consciência e a sua prática individual e coletiva; II. autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas e filosóficas particulares, e; III. nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos. Este conceito está expresso na Declaração Universal da Laicidade do Século XXI5, na qual podemos enfatizar, também, o art. 6º, que entende a laicidade como “[...] elemento chave da vida democrática. Impregna, inevitavelmente, o político e o jurídico, acompanhando assim os avanços da democracia, o reconhecimento dos direitos fundamentais e a aceitação social e política do pluralismo.”
Esta Declaração é marco importante para a civilização, pois compreende que, enquanto nos Estados religiosos o “poder do monarca” está vinculado ao poder de Deus, nos Estados laicos o poder parte do povo. Assim, é dever do Estado adotar uma postura neutra em relação às concepções religiosas presentes na sociedade, garantindo, de forma universal, a liberdade religiosa.
Vieira (2024, entrevista digital) compreende que o Estado Brasileiro possui uma laicidade colaborativa, os poderes colaboram entre si em busca do bem comum, previsto no art. 19, I da CF. Outro princípio do nosso Estado laico é a benevolência, “a religião é importante para a sociedade, pois gera pluralismo e cidadania”. Ressalta que, na sua percepção, “quanto mais o fenômeno religioso acontece, mais há efetividade da liberdade religiosa e o congraçamento do sistema laico colaborativo”.
Objetivando maior transparência entre as relações existentes entre Estado e Igreja, foi apresentado um Projeto de Lei (PLC 160/2009) que trata das garantias e dos direitos fundamentais ao livre exercício da crença e dos cultos religiosos – a chamada Lei Geral das Religiões, cuja aprovação na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) foi realizada em 12 de junho de 2013 e agora o projeto segue para o plenário do Congresso Nacional. Caso o Projeto seja aprovado no Congresso Nacional, o princípio da cooperação religiosa será ampliado a outras confissões, visando legitimar a relação do Estado com a religião.
E nestas discussões político-religiosas não é incomum o uso de alguns termos de forma equivocada, em especial as palavras “ateísmo”, “secularismo”, “laicismo” e “neutralidade”, as quais passaremos a compreender e distinguir brevemente a partir de agora.
Começando pelo primeiro, o ateísmo não admite qualquer religiosidade e não aceita a sua existência. Segundo o OLE - Observatório da Laicidade do Estado (aba Dicionário, documento virtual):
O Estado ateu é aquele que proclama que toda e qualquer religião é alienada e alienante, em termos sociais e/ou individuais. Para combater a alienação, o Estado ateu tenta suprimir toda e qualquer religião. Se não consegue proibi-la completamente, dificulta ao máximo suas práticas, inibe sua difusão e desenvolve contínua e sistemática anti-religiosa.
O secularismo, por sua vez, possui um significado mais amplo, envolve um contexto cultural de entendimento que faz a separação entre as esferas civis e religiosas, o que, nas palavras de Gauchet (2000), é a “saída da religião” do Estado.
Já o laicismo está relacionado à exclusão da religião da esfera pública de forma mais enérgica e generalizada, não permitindo que a religião tenha qualquer contato em ambientes estatais. Dessa forma, o laicismo não considera os aspectos democráticos da presença social da religiosidade. Na percepção de Blancarte (2008), essa expressão expõe o anti-clericalismo pela hostilidade ou indiferença à religiosidade coletiva.
Nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello (2012, p. 41), “Laicismo [significa] uma atitude de intolerância e hostilidade estatal em relação às religiões. Portanto, a laicidade é marca da República Federativa do Brasil, e não o laicismo”.
Participante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Emmanoel Campelo, analisando o Pedido de Providência - PP Nº 0001058-48.2012.2.00.0000, referiu que "há aqueles que confundem Estado Laico com Estado Laicista, deturpação do primeiro, no qual se procura isolar o fator religioso à esfera puramente pessoal, proibindo ou cerceando as manifestações externas da religiosidade”.
E, por fim, a neutralidade remete a não oficialização da religião no Estado, não podendo este favorecer ou desfavorecer nenhuma religião ou convicção moral, mas deve garantir que os valores da República, da democracia e a liberdade religiosa sejam respeitados.
Júnior (2014, p. 72), compreende que essa confusão entre expressões é repercutida pela mídia de forma muito superficial, quase inexistente:
As declarações noticiadas pela mídia que afirmam a laicidade do Estado brasileiro transmitem a impressão de que se está perante um conceito perfeitamente compreendido por todos. Nada mais enganoso. O que se observa frequentemente é o emprego irrefletido da expressão por indivíduos que, para sustentar sua opinião favorável ou antagônica ao fato religioso, esgrimem-na como mero argumento retórico jejuno de qualquer compromisso com o significado jurídico da laicidade e, o que é pior, divorciado de uma compreensão adequada do tratamento outorgado pela ordem constitucional brasileira ao fenômeno religioso.
Desse modo, o Estado laico tem como bases os ideais democráticos, em especial a liberdade e igualdade, de forma que, caso se alie a uma confissão específica, os cidadãos de confissões distintas não terão a sua liberdade religiosa garantida. Assim, a laicidade permite a coexistência pacífica de diferentes modos de concepção de mundo, sem que haja necessidade de sacrificar identidades distintas em prol do igualitarismo uniformizador que ignora as peculiaridades próprias (HUACO, 2008).
Segundo os dados coletados pelo Instituto Datafolha, ano base 2016, “três em cada dez (29%) brasileiros com 16 anos ou mais atualmente são evangélicos”. Entre eles, há divisões: evangélicos pentecostais (22%), frequentadores das igrejas como Assembleia de Deus, Congregação Cristã, Universal do Reino de Deus, e evangélicos não pentecostais (7%), pertencentes a igrejas como Batista, Metodista e Presbiteriana. Esse movimento de crescimento do pentecostalismo no Brasil iniciou-se em meados dos anos 50, acelerando gradativamente a partir da década de 1980, data na qual o movimento religioso conquistou maior visibilidade pública, espaço na TV e, inclusive, inseriu-se no poder político partidário. Como já citado no capítulo anterior, o número de evangélicos cresceu mais de 16 milhões em dez anos, segundo o Censo.
Destaca-se, outrossim, que quando se refere à religião pentecostal, englobam-se todas as diferentes denominações pentecostais existentes no país, visto que esse movimento religioso possui uma diversidade institucional e pluralidades internas bem acentuadas. Veja-se pelo elevado número de igrejas existentes e concorrentes entre si, diversas variações doutrinárias, rituais, eclesiásticas e comportamentais, o que permite diversas estratégias proselitistas distintas, público alvo e relação com os poderes públicos. Segundo Mariano (2008, documento digital), “trata-se de um fenômeno religioso dinâmico e internamente muito diversificado”.
A escritora Christina Vital da Cunha, autora do livro Oração de Traficante, realizou pesquisas de campo nas comunidades periféricas do Rio de Janeiro e trouxe, em entrevista digital (2024, arquivo digital), concepções interessantes que contribuem para entendermos o motivo pelo qual as religiões pentecostais vêm crescendo em ritmo acelerado. Segundo a autora, essas religiões (não católicas) facilitam o acesso aos cultos por meio de transporte gratuito das favelas até os grandes templos; aproximam o estilo de vida da liderança religiosa e da assembleia reunida, visto que os pastores dão testemunhos do dia a dia, das superações que se aproximam das vivências dos seguidores. E, pela necessidade de atuação in loco para coleta de informações na Comunidade do Acari, percebeu que “as Igrejas Católicas estavam abertas em horários restritos, diferente das demais denominações atuantes que diariamente estavam abertas, facilitando o acesso e cultivando a religião de forma constante e diária”.
Contribui também neste aspecto Lins e Silva (1989, P. 172), que na elaboração do livro “Bandidos evangélicos: extremos que se tocam”, já indicavam que, ao contrário do “mito de que o caminho da bandidagem não oferece volta aos seus componentes”, muitos, à época, já “encontravam uma segura exceção na conversão destes ao evangelho”. Complementam que durante a pesquisa realizada em 1980 na favela Cidade de Deus, o acesso às igrejas evangélicas era permitido por qualquer pessoa, não era “comum frequentadores [...] não evangélicos” ou que não estivessem “em vias de se converter” (1989, p.173).
Já na pesquisa realizada por Corrêa (2022, p. 157) na comunidade da Cidade de Deus alguns anos depois, “as igrejas evangélicas poderiam ser encontradas, em seus mais variados tamanhos, a cada esquina da favela.” Inclusive, complementa que “havia um grande número de visitantes esporádicos, podendo bandidos e jovens da boca de fumo serem vistos com frequência nos cultos e nas orações - mesmo aqueles que não apresentavam nenhum intuito de se converter”.
Nas palavras de Vieira (2024, entrevista digital), a “igreja católica é altamente desenvolvida, organizada e hierarquizada, possui um código canônico bem estruturado, normas canônicas que protegem e, ao mesmo tempo, engessam a instituição”. Diferentemente das igrejas pentecostais, que possuem como característica a oralidade, percebido, especialmente, com o Movimento da Rua Azusa no final do século XIX.
Lins e Silva (1989, p. 173), na conclusão do texto de 1980, já permitiam a compreensão de que haveria, muito em breve, uma aproximação entre as igrejas evangélicas e o tráfico, porque:
Enquanto o evangélico significa o bem, o bandido significa o mal, ambos convivem diariamente com a presença do “inimigo”, seja ele o diabo, seja a quadrilha adversária, que é preciso combater a todo instante. Esse modelo de combinações simbólicas, ao mesmo tempo em que polariza o evangélico e o bandido, os aproxima paradoxalmente, posto que, para além da polarização, existe o reconhecimento mútuo por se saberem, de um lado, representantes do bem, os evangélicos, e, de outro, representantes do mal, os bandidos.
É justamente esta compreensão, também, do professor Bobsin (2024, entrevista digital) quando cita que as igrejas pentecostais e neopentecostais mais autônomas ganharam força nos últimos dez anos, período em que alteraram, inclusive, seus princípios, priorizando fortalecer relações com os traficantes das comunidades periféricas (do Rio de Janeiro, Brasil) para expandir seus templos e denominação, ao invés de, justamente, convertê-los a deixar o vício e os crimes.
Já a professora Cunha (2024, entrevista digital) referiu que, durante sua pesquisa de campo realizada nas comunidades periféricas do Rio de Janeiro, ao entrevistar os traficantes que exerciam atividades na região, percebeu que eles pagavam o dízimo regularmente, frequentavam os cultos dominicais e pediam bênçãos, mas não se intitulam evangélicos, mas sim como “desviados”, pois não convertidos oficialmente à religião em virtude das atividades ilícitas do tráfico.
Essa também foi a percepção de Vieira (2024, entrevista digital), referindo que em agosto do ano passado (2023) realizou palestras em algumas comunidades do Rio de Janeiro e ouviu comentários de que são sim os traficantes que comandam os morros, mas ninguém referiu que esses mesmo líder do morro é pastor em alguma instituição religiosa da comunidade. Entretanto, não descarta a possibilidade desse vínculo de atividades entre pastor e líder criminoso de forma indireta.
Alguns pastores são investidos de poderes que podem, sim, mudar a trajetória de vida de um traficante que está sendo julgado pelo Tribunal do Crime, podendo, inclusive, interferir no processo de execução das práticas violentas, interrompendo-as. O traficante é reputado como aquele que tira vidas, enquanto o crente é capaz de salvá-las (CORRÊA, 2022).
Em contribuição, Mariz (1994) sinaliza que o pentecostalismo ajuda os pobres a enfrentarem a pobreza, a se libertarem do alcoolismo e das drogas, melhorando, assim, a autoestima enquanto conversos.
Mariano (1999, p. 107) elucida que:
O sucesso pentecostal fundamenta-se extensamente no milagre, na magia, na experiência extática, no transe, no pietismo ou na manipulação da emoção transbordante e desbragada, práticas desprezadas e reprimidas pelas igrejas Católica e Protestante. Oferece magia e catarse para as massas. E uma boa pitada do velho moralismo cristão.
Complementando esse mistério e magia existente na conversão evangélica, Corrêa (2022, p. 337) ressalta que os crentes, ao contrário dos traficantes, desejam que toda família participe ativamente da igreja por entenderem ser “uma ilha de proteção material e espiritual que permite - ou, ao menos, ajuda - a não sucumbir aos diversos riscos mundanos ali presentes”.
Compreende-se da leitura de Lins e Silva (1989), que entre os anos de 1990 e 2000 ocorreu uma forte e rápida aproximação entre o tráfico de drogas e a igreja, visto que cada vez mais o tráfico abandonou os terreiros de macumba, as guias e os santos e protetores, bem como a igreja pentecostal passou a ser mais aberta, acolhendo a todos independente do desejo de conversão, culminando, assim, na ascensão do número de bandidos convertidos à igreja.
A denominação Assembleia de Deus dos Últimos Dias (ADUD) é citada por Manso (2023, p. 59) quando refere que algumas mudanças bem impactantes realizadas na favela do Acari foram a mando de um traficante convertido à referida denominação:
A partir dos anos 1990, as imagens de são Jorge, os terreiros e os altares em homenagem aos guias e orixás, as festas de Cosme e Damião, os colares de conta coloridos no pescoço, as roupas brancas, entre outros símbolos ligados à umbanda, ao candomblé e ao catolicismo, vinham sendo substituídos por representações da fé pentecostal.O processo que ocorreu nas favelas da Acari foi liderado por um traficante do TCP convertido à Assembleia de Deus dos Últimos Dias.
Os símbolos citados pelo autor foram substituídos por salmos e páginas da Bíblia e, com maior frequência, a frase: “Jesus é o dono do lugar”. Buscou, assim, criar um espaço cordial entre o tráfico, a religião e os moradores da comunidade.
Em contrapartida, Cunha (2024, entrevista digital) refere que na comunidade de Acari havia irmandades que faziam trabalhos assistenciais poderosos que foram retraídos justamente a partir da intervenção e crescimento do tráfico de drogas e crimes relacionados.
Assim também complementa o professor Bobsin (2024, entrevista digital) citando a “conversão mágica” realizada pelas igrejas pentecostais, em que as pessoas vão à Igreja e são orientadas sem a necessidade de mudarem seus princípios, atitudes ou o passado, em que o indivíduo obtém recursos religiosos e ideológicos para reorganizar o espaço ameaçador sem que mude a realidade.
Cunha (2024, entrevista digital), complementa que a “instrumentalização da fé” e a chamada “conversão mágica” são extremamentes perigosas, pois:
há atores que estão esvaziando os sentidos da religião e produzindo outros sentidos que são relativos a interesses próprios, assim como também há atores políticos que se aproveitam da sensibilização das pessoas, mobilizando gramáticas específicas para atrair corações e mentes para os seus projetos próprios, evidenciando a instrumentalização da fé.
Vieira (2024, entrevista digital) chama atenção àquelas situações em que o líder religioso, utilizando da sua relevância dentro da instituição e no próprio espaço religioso, tenta impor sua agenda ao fiel, em evidente afronta ao Estado laico, usando do poder religioso para exercer domínio no espaço político. Cita, por exemplo, quando o líder exige que os fieis ou membros votem em determinado candidato político ou participem de movimentações políticas específicas.
O culto pentecostal, em partes, cumpre a função de produção de forças elaboradas nos termos da teoria durkheimiana, pois tomado de carga emocional. Com os cultos pentecostais as pessoas se sentem fortalecidas e consoladas em suas necessidades. A presença do Espírito Divino outorga “dons”, produzindo estados proféticos de entrega de bênçãos e vitórias sobre os problemas da vida, fazendo-se crer que se está em contato de forma muito especial com o sagrado. Assim reflete Durkheim (2012, pág. 31):
Quando o fiel está no estado religioso, ele se sente em contato com forças que apresentam as duas características seguintes: elas o dominam e elas o sustentam. Ele sente que elas são superiores àquelas das quais ele dispõe ordinariamente, mas, ao mesmo tempo, ele tem a impressão de que participa desta superioridade. Ele pode mais.
E estes discursos ganham maior relevância nos contextos periféricos, em que a vulnerabilidade socioeconômica e social produzem condições específicas para a disseminação dos discursos de superação e auto-afirmação frente à pobreza. Neste sentido é a linha de compreensão de Mariano (2011, p. 12), em que “[...] os marginalizados - distantes do catolicismo oficial, alheios a sindicatos, desconfiados de partidos e abandonados à própria sorte pelos poderes públicos - têm optado voluntária e preferencialmente pelas igrejas pentecostais.”
Sabe-se que um dos grandes problemas enfrentados nas periferias são as facções religiosas e o domínio do crime. E, neste sentido, nas palavras de Cunha (2024, entrevista digital) “a Assembleia de Deus dos Últimos Dias tem um papel fundamental na conversão dos traficantes, empregando políticas de redução de danos, diminuição da violência nas comunidades, prática de crimes hediondos e afins.” Lembra de lideranças da Assembleia que atuaram nos presídios do Rio de Janeiro realizando missões para conversão dos detentos, inclusive junto aos Tribunais do Crime, situações em que intervém para salvar o sujeito da morte e convertê-lo à igreja.
Corrêa (2022, p. 161), compreende que essas atividades de evangelismo nas prisões, em especial com as lideranças do tráfico de drogas das comunidades, contribuíram significativamente para a “pentecostalização do tráfico e do crime”, visto que muitos desses líderes se converteram ao evangelho ainda enquanto reclusos nos presídios, tanto é que as ordens para derrubada de santuários e outros itens religiosos ligados à umbanda e ao catolicismo sincretizado que estavam nas comunidades foram realizadas pelos líderes de dentro dos presídios com a aproximação do evangelho.
Essa expressão “pentecostalização do tráfico” também é citada por Vital (2008), ao compreender que, por mais que se mantivessem distantes e com barreiras bem estabelecidas, a igreja e o tráfico, por coabitarem o mesmo espaço e elaborarem, entre si, uma rede de interdependência por trocas, se transformam mutuamente.
Neste aspecto, Corrêa (2022, p. 180), em sua pesquisa de campo na comunidade Cidade de Deus, elencou alguns pontos de convergência entre o tráfico e a igreja pentecostal, sendo eles:
(1) aumento significativo de bandidos que frequentam igrejas pentecostais; (2) o aumento de traficantes ou bandidos convertidos à religião evangélica; (3) a proibição, em todas as regiões da Cidade de Deus, de se fazer despachos e coisas afins; (4) a presença de passagens bíblicas (normalmente salmos) nas paredes da favela - pinturas feitas a mando dos líderes do tráfico de drogas local; (5) a construção de monumentos relacionados ao universo pentecostal, como a Bíblia [...]; (6) relatos sobre a mudança nas atitudes e no comportamento de traficantes - incluindo os donos da boca - a partir de sua aproximação com o mundo pentecostal ou forma de vida pentecostal (traficantes que oravam, liam a Bíblia, frequentavam cultos etc); [...].
Ou seja, a partir da disseminação da igreja evangélica nas comunidades periféricas houve um aumento significativo de conversões dos traficantes/bandidos à religião e, simultaneamente, modificações importantes no dia a dia das comunidades, atribuindo-se regras de convivência que possuem respaldo em dogmas evangélicos.
Assim também depreende Bobsin (2024, entrevista digital), indicando que existem algumas igrejas pentecostais e neopentecostais muito localizadas que favorecem a influência do tráfico de inúmeras formas, visto que os pastores, por mais que não defendem a droga, não conseguem manter hígida a postura do não consumo e comércio de drogas, inclusive fazendo pregação para a conversão, mas sem muito sucesso. Refere que situação semelhante ocorre nas periferias do estado de São Paulo, local em que há acordos implícitos entre traficante e o pastor, porque se o jovem traficante “quer sair fora da organização, eles dizem ó ‘se tu sair fora tu tem dois caminhos: nós vamo [sic] te matar ou tu vira crente.’ E o pessoal que opta por isso eles controlam dentro da igreja para ver se não tá traindo eles, denunciando para a polícia.” É perceptível, nessa situação, que o medo predomina, fazendo com que os pastores e as pessoas se mantenham na organização por receio de perderem a vida, bem como os traficantes se convertam para conseguirem influenciar em ambos os setores (igreja e comunidade).
Um dos chefes do tráfico de drogas nas comunidades, pertencente ao Terceiro Comando Puro e sócio de um grupo de milicianos, reconhecendo-se como um grande apreciador da fé pentecostal, tatuou no braço direito o nome de Jesus, misturando suas atividades criminosas com a fé. Assim, percebeu-se que em diversos locais e comunidades que o pentecostalismo se misturou com o crime e as milícias, ações violentas e opressoras foram realizadas contra terreiros e seguidores das religiões de matriz africana (MANSO, 2023).
Seguindo as perspectivas indicadas no Censo 2010 e pelos números trazidos pelo Instituto Datafolha, o pentecostalismo irá crescer e angariar milhares de adeptos nos próximos anos, o que, consequentemente, poderá criar um fenômeno de pulverização dos templos nas comunidades, podendo, na perspectiva de Bobsin (2024, entrevista digital), favorecer a influência do tráfico das mais variadas formas, eis que os criminosos “se convertem à religião de forma que o pastor encontra dificuldade de se posicionar contra seus seguidores”.
Nesta perspectiva, Cunha (2024, entrevista digital) chama atenção para como as diversidades postas em campo refletem as dinâmicas em curso, tanto das pequenas igrejas de garagem que, pela proximidade do pastor com a família do traficante, do próprio familiar do pastor que está envolto no tráfico, fazem o acolhimento dessas pessoas que vivem em situações de vulnerabilidade. A autora ainda cita a Favela do Acari, onde percebeu que as “grandes denominações insistiam veementemente na conversão dos traficantes, pois entendiam que podiam atuar em todas as margens, sejam elas criminosas ou outras religiões” (CUNHA, 2024, entrevista digital).
Corrêa (2022, p. 215), que em seu trabalho de campo participou ativamente dos cultos evangélicos nas comunidades, percebeu que “a cada testemunho, a cada pregação, a boca de fumo e a igreja parecem se sintonizar ainda mais, parecem fluir em uma mesma frequência.” Por isso, nesses locais, com apoio das pregações e intenso apelo emocional e afetivo, elos e vínculos se estreitam.
Os traficantes, após convertidos ao evangelho, deparam-se com um dilema: o dinheiro advindo do tráfico e dos crimes (na percepção evangélica, atividades relacionadas ao Diabo), é legal ou ilegal na concepção da fé? Uma das teorias compreende que tudo que veio do Diabo é ilegal e deve ser recusado para que seja possível viver em Cristo, como na pergunta que Paulo faz em 2 Coríntios 6,14: “Que comunhão pode ter a luz com as trevas?”.
A segunda teoria, e que aqui mais nos interessa, refere que não é tão importante a origem do dinheiro, mas sim o seu destino, forte no versículo encontrado em Neemias 13:2 “O nosso Deus, porém, transformou a maldição em bênção”. Assim, os traficantes e bandidos convertidos utilizam o dinheiro obtido por meio das atividades ilícitas para estruturar e fornecer meios de subsistência para os templos evangélicos nas Comunidades.
E esse dinheiro obtido por meios ilegais é utilizado pelos grupos criminosos para realizarem o controle e influência nas pequenas igrejas existentes nas comunidades periféricas por meio do fornecimento de bens materiais e estruturação da instituição, a fim de manter o líder religioso como refém do crime (BOBSIN, entrevista digital, 2024).
Neste aspecto, Cunha (2024, entrevista digital) ressalta que há pastores que se submetem aos criminosos, os que se valem do poder dos traficantes e aqueles que se mantêm afastados dos criminosos, mas concorda que “há sim traficantes que se valem do aporte financeiro dentro das instituições religiosas para lá atuarem”.
Como percebeu Manso (2023, p. 65), na trajetória de Álvaro Malaquias Santa Rosa, mais conhecido como Peixão, chefe do Complexo de Israel que mistura assistencialismo com violência, ao assumir o controle das comunidades, distribuiu “uma carta-manual aos moradores para anunciar a troca de comando, contendo as diretrizes daqueles que chegavam para governar ‘em nome de Deus’”. E visando melhorar o dia a dia dos moradores da comunidade, obtendo, assim, apoio e respeito destes, Peixão organizou e investiu em recolhimento de lixo, pavimentação de ruas e na construção de obras reivindicadas há tempo pela comunidade, a exemplo da construção da ponte para ligar as comunidades Cinco Bocas e Pica-Pau, conforme retrata MANSO (2023).
Entretanto, em contraposição, Cunha (2024, entrevista digital) refere que a ponte construída e que foi engrandecida pela comunidade “pelo fato de que o Poder Público demoraria anos para construir e, quiçá, nunca construiria”, não foi construída tão somente com fins sociais, mas sim para ser utilizada pelos veículos com condições de passar pelos obstáculos de concreto lá introduzidos, visando evitar o acesso de veículos não autorizados (polícia, traficantes e facções rivais). A autora afirma, ainda, que os traficantes não fazem políticas públicas, políticas universais, mas sim com objetivos específicos e claramente pontuais (beneficiando as atividades ilícitas).
E, neste ínterim, há de se questionar: as facções criminosas ocuparam o espaço do Estado nas comunidades periféricas? Na percepção de Cunha (2024, entrevista digital), “o tráfico de drogas nessas localidades está muito além e muito aquém do Estado”. Refere que os traficantes participam ativamente da vida das comunidades, resolvendo os conflitos cotidianos e fornecendo benefícios individuais e pontuais a algumas pessoas, promovendo uma dimensão de lazer, importantes para a sociabilidade local, especialmente em datas comemorativas, como Páscoa e Natal. Essas atividades e ações não são, em essência, de responsabilidade do Estado, por isso o tráfico se mantém muito além do Estado.
Outrossim, nada que os traficantes possam oferecer nessas comunidades se aproxima do que o Poder Público pode e deveria fazer, visto que não atuam por uma política universal, mas sim por ações que os beneficiam (Cunha, 2024, entrevista digital).
Um dos assuntos mais repercutidos ao tratar sobre Estado laico x Religião é o questionamento sobre a permanência dos símbolos religiosos em prédios públicos, se colide ou não com a laicidade do Estado brasileiro. Este tema inclusive será abordado em breve pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a partir de uma Ação Civil Pública iniciada em 2009 na 3ª Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo, de iniciativa do Ministério Público Federal (MPF), em que se postula a retirada de todo e qualquer símbolo religioso dos órgãos e prédios públicos da União no Estado de São Paulo.
O referido julgamento é de repercussão geral, ou seja, influenciará diretamente futuras decisões que tratam de temas semelhantes. Por isso, é importante mencionar que o Estado laico é de todos, sem distinção entre crentes ou ateus, de tal forma que é de responsabilidade do Estado promover a pacificação e união entre todos os cidadãos, sem que a laicidade se torne antirreligiosa.
Campelo (2019) compreende que o ato/determinação de serem retirados os símbolos religiosos de repartições públicas que tradicionalmente estavam expostos é agressivo, discriminatório e favorece a intolerância religiosa, visto que privilegia uma minoria que professa outras crenças.
Ressaltam Mendes, Coelho e Branco (2015) que o Estado pode sim conviver com símbolos religiosos, mesmo que não professe o ateísmo, pois estes símbolos traduzem valores histórico-culturais, bem como são conhecidos e importantes para parcela significativa da população, motivo pelo qual não é viável proibir suas exibições em lugares públicos.
Nas palavras de Capez (2009, documento digital), “A Constituição Federal não conformou um Estado ateu, nem hostil ao cristianismo, apenas estabeleceu um regime não confessional. Não há religião oficial, mas também não há política oficial de repúdio à religião.” Neste mesmo viés pensa Vieira (2024, entrevista digital), compreendendo que “a presença de um crucifixo no espaço público é herança cultural daquele país (no caso, o Brasil)”. Assim, a retirada destes símbolos desses espaços somente deve ser realizada de forma consensual, de acordo com a vontade do povo, jamais por ações judiciais.
E complementa Tavares (documento digital) que a pretensão evangelizadora, no âmbito da religião cristã, “constitui elemento normativo-constitucionais essencial da liberdade religiosa, merecendo, por conta disto, um tratamento mais cauteloso do exegeta (no caso em concreto do Judiciário), quanto ao seu escopo.” O autor também ressalta que a liberdade religiosa atua como garantidora da inviolabilidade de consciência e de crença, de modo que os valores transcendentais do indivíduo não podem sofrer direcionamento estatal.