DA RELIGIÃO E O EMBASAMENTO JURÍDICO
O ordenamento jurídico brasileiro estabelece de forma muito abrangente o direito à liberdade, mas ressalta que ele não é absoluto, eis que sua prática é restrita por outros princípios constitucionais e por regras impostas pela própria Constituição.
A liberdade de expressão, por exemplo, encontra amparo no art. 5º, IV da CF, que define “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” Assim sendo, a CF garante a liberdade de opinião, convicção, comentário, avaliação e/ou julgamento, independentemente do assunto ou pessoa que se trata. Importante ressaltar que o direito à liberdade de expressão, de consciência e da liberdade em geral não se confundem, eis que cada um deles trata de direitos garantidos separadamente na Constituição, possuindo características próprias que os especificam. Mas evidentemente, importantes que são, se conectam entre si a partir de muitos pontos, podendo, todos, serem fundamentos legítimos para um mesmo fato.
Nesse sentido, a liberdade religiosa encontra amparo em três garantias constitucionais: liberdade em geral; liberdade de consciência, e liberdade de expressão. Entretanto, mesmo tendo tanto fundamento constitucional, ainda assim a liberdade religiosa não é absoluta, como podemos mensurar a partir do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do caso Siegfried Ellwanger (concluído em 17 de setembro de 2003).
Proprietário da editora “Revisão Editora LTDA”, Ellwanger publicou obras de relevância que tratavam sobre os crimes de guerra ocorridos durante o Holocausto, assim intitulados “Os conquistadores do mundo - os verdadeiros criminosos de guerra” (de autoria de Louis Marschalko), “o Judeu Internacional”, e “Holocausto Judeu ou Alemão - nos bastidores da mentira do século”, de Henry Ford, nos quais, segundo a denúncia realizada, abordaram mensagens anti-semitas e discriminatórias, motivo pelo qual Ellwanger foi condenado pelo crime de preconceito, forte no art. 20, caput da Lei 7.716/89, que prevê pena de reclusão de um a três anos e multa a quem “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
Impetrado o Habeas Corpus ao Supremo Tribunal Federal, manifestou-se o Relator Ministro Moreira Alves esclarecendo que o recurso não se insurgiria contra a decisão no crime de preconceito, mas sustentou que o preconceito contra judeus não caracterizaria racismo, para fins de se considerar o delito imprescritível. Assim sendo, na sua percepção, o conceito de racismo não abrange toda forma de preconceito e discriminação, “Não sendo, pois, os judeus uma raça, não se pode qualificar o crime por discriminação pelo qual foi condenado o ora paciente [Ellwanger] como delito de racismo e, assim, imprescritível a pretensão punitiva do Estado.”.
Entretanto, conforme julgamento, não foi este o entendimento que prevaleceu, devido ao Ministro Maurício Correa afirmar que, cientificamente, não há raças, de modo que a interpretação do Ministro Moreira Alves não permite a aplicação do que prevê o art. 5º, XLII da CF. No mesmo viés, manifestou-se o Ministro Gilmar Mendes, que “do ponto de vista estritamente histórico, não há como se negar o caráter racista do anti-semitismo.” Ou seja, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a vedação do racismo é limite objetivo à liberdade de expressão.
Atentando-se aos votos divergentes, percebemos a interpretação do Ministro Carlos Ayres Britto, que reconheceu estar frente a uma “contraposição de princípios jurídicos”. Constatou a atipicidade do fato, visto que as condutas descritas na denúncia eram anteriores à Lei 7.716/89, mas, no mérito do habeas corpus, reconheceu que há três excludentes de abusividade da liberdade de manifestação do pensamento: crença religiosa, convicção filosófica ou convicção política. Assim, entendeu que pelo fato das obras escritas e divulgadas por Siegfried Ellwanger serem de caráter científico, de revisionamento histórico, estavam acobertadas pela liberdade de manifestação de pensamento.
Outro caso de grande repercussão que também trata sobre o direito religioso e seus desmembramentos ocorreu na Espanha, quando o Tribunal Constitucional do país, em 1996, reconheceu a restrição indevida de liberdade de expressão, amparada pelo art. 20.1, a, da Constituição da Espanha, à Pedro Varella Geiss, titular e diretor de uma livraria europeia que publicou materiais supostamente vexatórios “para o grupo social integrado pela comunidade judaica”. Foi condenado, em instâncias originárias, como responsável pelo crime continuado de genocídio, art. 607.2 do Código Penal Espanhol, visto que negava a perseguição e o genocídio sofridos pelo povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial.
Dessa forma, no Tribunal Constitucional da Espanha foi reconhecido que a liberdade de expressão compreende, também, a liberdade de crítica, “ainda quando a mesma seja ríspida e possa molestar, inquietar ou desgostar a quem se dirige, pois assim o impõe o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura, sem os quais não existe sociedade democrática.” E continuam, afirmando que “a liberdade de expressão é válida não somente para as informações ou ideias acolhidas com favor ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que contrariam, chocam ou inquietam o Estado ou uma parte qualquer da população.”
Na legislação brasileira, por exemplo, as organizações religiosas são asseguradas pelo artigo 44, I, do Código Civil de 2002, o qual foi incluído na legislação pela Lei nº 10.825 no dia 22 de dezembro de 2003, garantindo maior autonomia em relação ao Poder Público, eis que expresso na legislação infraconstitucional.
Já o parágrafo primeiro do referido Código assim dispõem:
São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
Assim, é natural que as organizações religiosas possam instituir um poder de auto-ordenação, formando suas normas de admissão e exclusão dos seus filiados, regras de distribuição interna do poder, bem como adotar modelos de governança próprios. Importante ressaltar que esse poder de auto-ordenação das igrejas não se confunde com o disposto nos arts. 59 e 60 do CC, que impõem uma gestão democrática das associações mediante a manifestação da vontade por meio de assembleias gerais. Diferem as igrejas justamente porque, na sua grande maioria, não são reguladas pela democracia, mas sim pela ordem hierárquica, de forma que o convencimento das lideranças é suficiente e superior à opinião dos membros e fiéis.
Concluindo-se, assim, que a autonomia da organização religiosa possui seus fundamentos no direito à liberdade religiosa, ganhando reforço e garantia pelo modelo de laicidade do Estado Brasileiro, identificado especialmente no art. 5º, VI a VIII e art. 19, I da Constituição Federal (CEDIRE, 2022).
Conforme prevê o artigo 5º, VI da Constituição Federal de 1988, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” E, neste sentido, destacamos a concepção sobre religião a partir de Mendes e Branco (1996, p. 595 e 2015, p. 317) “na liberdade religiosa inclui-se a liberdade de crença, de adquirir alguma religião e a liberdade do exercício do culto respectivo. As liturgias e os locais de culto são protegidos pelos termos da lei”.
Assim, evidenciamos a importância do direito de liberdade de crença estar esculpido na Constituição Federal, protegendo as instituições e suas práticas religiosas. Entretanto, essas proteções têm limites e, a partir do momento em que as práticas religiosas o ultrapassam, não devem mais ser interpretadas à luz do direito previsto na Constituição.
De forma mais objetiva, a liberdade de manifestar sua fé, seja qual for a sua religião, a liberdade de realizar cultos e encontros para tratar de assuntos religiosos, liberdade para alterar entre as diversas religiões existentes, liberdade, inclusive, para não acreditar em nenhuma dessas religiões (ateísmo) ou até mesmo não ter religião, é a autonomia que representa a liberdade religiosa.
É importante distinguir as diferenças existentes entre a liberdade de crença e a liberdade de consciência, que não podem ser confundidas, conforme ressalta Dirley da Cunha Jr. (2011, p. 694):
Poder-se-ia dizer que isso não tem importância, na medida em que as liberdades de consciência e de crença se confundem, são a mesma coisa. Não é verdade! Primeiro porque a liberdade de consciência pode orientar-se no sentido de não admitir crença alguma. Os ateus e agnósticos, por exemplo, têm liberdade de consciência, mas não têm crença alguma. Segundo porque a liberdade de consciência pode resultar na adesão de determinados valores morais e espirituais que não se confundem com nenhuma religião, como ocorre com os movimentos pacifistas que, apesar de defenderem a paz, não implicam qualquer fé religiosa. (grifo próprio)
O Brasil, por exemplo, é um país que não tem religião definida, não segue nenhuma crença específica e, desta forma, deve manter as opiniões imparciais e longe de qualquer discriminação de crença, motivo pelo qual se define como Estado laico. Entretanto, há países com religião definida, a exemplo do Vaticano, um Estado Teocrático, onde a religião comanda a política do país, sendo utilizada como base para o desenvolvimento da sociedade e das estruturas governamentais.
Justamente por ser um país laico é que o Brasil deve ser imparcial nas questões religiosas, proporcionando formas para que as pessoas possam exercer a fé livremente, conforme explicita o Ministro Marco Aurélio, em julgamento no Supremo Tribunal Federal quanto ao ensino religioso em escolas públicas:
O quadro impõe ao Supremo, última trincheira da cidadania, atuar em defesa da liberdade religiosa e do estado laico. Cumpre-nos retirar o caráter confessional do ensino religioso. É tempo de atentar para o lugar da religião na sociedade brasileira, embora aspecto relevante, digno da tutela, desenvolve-se no seio privado, nas escolas, no lar. O convívio democrático deve prevalecer, a ampla liberdade de pensamento sem direcionamento estatal a qualquer credo. (grifo próprio)
É assegurada também, pela Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso VII, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares do país, de forma a não permitir a privatização de direitos em prol de crenças específicas. Outros artigos importantes previstos na Carta Magna são aqueles que limitam as ações dos entes federativos quando se trata da religião, a exemplo do artigo 19, I:
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
[...]
Tendo em vista alguns doutrinadores que criticam a garantia de assistência religiosa nas entidades civis e militares do país, sob alegação de incompatibilidade com o Estado laico, Moraes (2012, p. 49-50) declara que:
Não nos parece procedente a crítica que alguns doutrinadores fazem a esse inciso da Constituição Federal, afirmando que não há compatibilidade entre um Estado laico e a previsão, como direito individual, de prestação de assistência religiosa, uma vez que o Estado brasileiro, embora laico, não é ateu, como comprova o preâmbulo constitucional, e, além disso, trata-se de um direito subjetivo e não de uma obrigação, preservando-se, assim, a plena liberdade religiosa daqueles que não professam nenhuma crença.
E, ainda, é vedado aos entes federativos, conforme dispõe o artigo 150, VI, alínea “b”, da Constituição Federal, “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte [...] VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto”.
Portanto, compreende-se que o direito de religião é universal e pode ser usado e gozado por todos, desde que respeitada a lei, a moral e os bons costumes, pois a liberdade de crença/religião deve ter limites, não podendo ser absoluta, sendo obrigatório que todos respeitem a crença alheia. Dessa forma, nessas proteções e limitações reconhecidas na Lei é imposto ao Estado o princípio da não intervenção na organização religiosa com o objetivo de proporcionar harmonia na sociedade, excluindo a possibilidade de preconceitos e extremismos religiosos.
Nesta mesma linha trabalha Sarlet (2020), compreendendo que há dois princípios entre Estado e Religião, sendo um deles o da separação, o qual aparta as igrejas e confissões religiosas da organização político-administrativa do Estado, permitindo livre organização e exercício de culto. A segunda é o princípio da não confessionalidade, no qual o Estado se afasta dos sujeitos religiosos, atuando de forma imparcial em todos os âmbitos.
Assim, percebe-se que a liberdade de religião é composta por três modelos de liberdades distintas, mas que estão intrinsecamente relacionadas, sendo elas: a liberdade de crença, a liberdade de organização religiosa e a liberdade de culto.
Consoante o magistério de Silva (1989, p. 223), englobam na liberdade de crença:
a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença.
Já a liberdade de culto se evidencia na liberdade de orar e de praticar os atos próprios das manifestações exteriores na sua casa ou lugares públicos, e ainda a de receber contribuições para tanto. A possibilidade de estabelecimento e organização de igrejas e suas relações com o Estado demonstram a liberdade de organização religiosa, mas enfatizando que, perante a Constituição Federal, deve haver uma divisão bem nítida entre Estado e religiões em geral, não sendo possível existir religião oficial ou, então, proteção e garantias exclusivas à essa ou àquela.
Ressalta-se que a liberdade de religião e crença protege tanto as profecias vinculadas a religiões majoritárias e institucionalizadas, quanto aquelas crenças e convicções ateístas, teístas ou não teístas de grupos religiosos minoritários, de novos movimentos religiosos e, inclusive, de grupos não religiosos. Nesse sentido é interessante abordar a liberdade de crença como conceito mais amplo, alcançando as liberdades de crenças e convicções. Assim também compreende o Comentário Geral nº 22 do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (CCPR/C/21/Rev.1/Add.4, de 30 de julho de 1993), recomendando interpretação ampla dos termos “religião” e “crença”, favorecendo que o art. 18 da Declaração Universal de Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos alcance o maior número possível de crenças e religiões.
Por este motivo, há, também, qualificadoras no direito penal que abordam especificamente a religião, como, por exemplo, a de injúria por motivo religioso, prevista no art. 140, assim escrito:
Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
[...]
§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência: (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)
Da mesma forma, o Código Civil Brasileiro garante às vítimas reparação civil, nos termos do artigo 927, ao decretar que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Igualmente, o Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288/10, prevê políticas de igualdade nos âmbitos da educação, trabalho, saúde, lazer e cultura, além da tutela de direitos das comunidades quilombolas e dos seguidores de religiões de matrizes africanas, em especial pelos artigos 24 e 26 do Estatuto, quais sejam:
Art. 24. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende:
I – a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins;
II – a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões;
III – a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas;
IV – a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica;
V – a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à difusão das religiões de matriz africana;
VI – a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de natureza privada para a manutenção das atividades religiosas e sociais das respectivas religiões;
VII – o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das respectivas religiões;
VIII – a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais.
Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate à
intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de
seus seguidores, especialmente com o objetivo de:
I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao
ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas;
II - inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de
valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios
arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas;
III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões
de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em
comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público.
O referido Estatuto prevê a reivindicação de medidas concretas para o atendimento de interesses individuais e/ou coletivos, bem como permite que um ente político solicite do outro a sua cooperação dentro dos projetos e programas de combate a discriminações e desigualdades que acometem os afro-brasileiros.
Evidente que não basta apenas a criação de medidas sociais que visem a população negra e a propagação de seus valores culturais individuais, pois o Estatuto, por si só, não tem o condão de alterar as desigualdades do país, em especial a desigualdade social. Tanto é que na esfera penal sequer há sanções em caso de descumprimento das premissas impostas pelo Estado.
Já no crime de “redução à condição análoga de escravo”, há majorante se o agente o cometer por motivo religioso, veja:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
[...]
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
O art. 208 do Código Penal prevê o crime de “ultraje a culto e impedimento ou perturbação a ato a ele relativo”:
Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.
Sem contar as penas previstas na legislação penal especial como, por exemplo, a Lei nº 7.716, de 05/01/1989, que criminaliza condutas que manifestem preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (art. 1º) ou a prática, indução ou a incitação de discriminação ou preconceito, com pena de reclusão de um a três anos e multa (art. 20).
Também previsto na Lei nº 2.889, de 01/10/1956, o crime de genocídio: “Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: [...]”.
Para os grupos indígenas também há o crime daqueles que escarnecem de ritos religiosas indígenas, como é o caso do art. 58 da Lei nº 6.001, de 19/12/1973: “Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena: I - escarnecer de cerimônia, rito, uso, costume ou tradição culturais indígenas, vilipendiá-los ou perturbar, de qualquer modo, a sua prática. Pena - detenção de um a três meses; [...]”
Inclusive, a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 prevê, em seu art. II, 1., o princípio da isonomia, sob o qual não haverá distinção entre as pessoas em razão de opções religiosas:
Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
No aspecto da isonomia religiosa, temos que a sua aplicação é bastante complexa, considerando que o seu cerne é dispensar tratamentos desiguais, de forma a desigualar o típico do atípico, o legal do ilegal, o legítimo do ilegítimo. Este princípio não impede que ocorram distinções entre indivíduos, mas impede que essas distinções sejam incoerentes. Assim, as distinções não permitidas nas leis e na CF devem ser rechaçadas de tal forma que diferenças baseadas na religião entre indivíduos não podem ser admitidas, exceto se previsto constitucionalmente, como é o caso da objeção de consciência. Mas, ainda assim, para que não se crie tratamento mais favorável ao objetor de consciência, deverá ele cumprir prestações alternativas previstas em lei.
Também há menção na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, que veda a distinção por motivos religiosos e prevê a liberdade de manifestação pública de opiniões religiosas: “Artigo III. Toda a pessoa tem o direito de professar livremente uma crença religiosa e de manifestá-la e praticá-la pública e particularmente.”
Referência à liberdade religiosa está na Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, o famoso Pacto de San José da Costa Rica, inclusive permitindo a divulgação da religião, garantindo a liberdade da manifestação pública de ritos religiosos:
Artigo 12. Liberdade de consciência e de religião
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.
2. Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.
4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.
Importante também ressaltar a “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou em convicções”, que data de 1981, documento internacional muito bem detalhado que trata exclusivamente do tema e, já no seu artigo 1º, estabelece que
§1. Toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de ter uma religião ou qualquer convicção a sua escolha, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou suas convicções individuais ou coletivamente, tanto em público como em privado, mediante o culto, a observância, a prática e o ensino. [...]
No artigo 3º, reconhece que “A discriminação entre os seres humanos por motivos de religião ou de convicções constitui uma ofensa à dignidade humana e uma negação dos princípios da Carta das Nações Unidas [...]”
Mas tanto como garante a liberdade religiosa, faz ressalvas quanto às suas limitações, conforme perceptível no art. 1º:
A liberdade de manifestar a própria religião ou as próprias convicções estará sujeita unicamente às limitações prescritas na lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais.
Esclarece e especifica, também, no art. 6º da Declaração, as liberdades que acompanharão o direito fundamental à liberdade religiosa, veja:
[...]
a) A de praticar o culto e o de celebrar reuniões sobre a religião ou as convicções, e de fundar e manter lugares para esses fins.
b) A de fundar e manter instituições de beneficência ou humanitárias adequadas.
c) A de confeccionar, adquirir e utilizar em quantidade suficiente os artigos e materiais necessários para os ritos e costumes de uma religião ou convicção.
d) A de escrever, publicar e difundir publicações pertinentes a essas esferas.
e) A de ensinar a religião ou as convicções em lugares aptos para esses fins.
f) A de solicitar e receber contribuições voluntárias financeiras e de outro tipo de particulares e instituições;
g) A de capacitar, nomear, eleger e designar por sucessão os dirigentes que correspondam segundo as necessidades e normas de qualquer religião ou convicção.
h) A de observar dias de descanso e de comemorar festividades e cerimônias de acordo com os preceitos de uma religião ou convicção.
i) A de estabelecer e manter comunicações com indivíduos e comunidades sobre questões de religião ou convicções no âmbito nacional ou internacional.
A religião e o direito possuem muitas similaridades, pois ambos são sistemas normativos com viés de conduzir, regrar, regulamentar a vida das pessoas, não necessariamente conflitando uma com a outra. Inclusive, um dos dez mandamentos, “não matarás”, possui a mesma finalidade e valor ético-jurídico que o artigo 121 do Código Penal. Mas há, também, direitos religiosos que não são tutelados pela norma jurídica como, a exemplo, o sacrifício dos rituais de animais, a poligamia, consumo de drogas em contexto religioso. Outras situações conflitantes ocorrem quando da necessidade de submissão a tratamento de saúde contrário à sua crença, os dias santos não reconhecidos por lei, concursos, provas e vestibulares que ocorrem aos sábados (candidatos adventistas), entre outras.
Interessante avaliar que, embora a Constituição Federal reconheça um valor positivo na prática da religião (seja ela qual for), assegurando de forma ampla o seu exercício, não informa, expressamente, que o Brasil é um Estado laico. Assim, a partir da leitura do art. 19, I da CF, entende-se que o modelo adotado é de separação entre Estado e religião, apresentando-se um Estado indiferente quanto a estes fenômenos e discussões religiosas.
Muito bem sinaliza Ramos (1987, p. 203), indicando que:
[..] há a separação atenuada, em que o Estado emite um julgamento positivo sobre a religião em geral, embora predominem os objetivos laicos, legalmente estabelecidos, sobre os objetivos religiosos e não haja opção de determinada seita. Essa valoração positiva da crença é sentida em disposição, conquanto reduzidas, que estimulam e favorecem a disseminação de práticas religiosas, mesmo que não envolvam subvenção.
Interessante aferir a decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Recurso Extraordinário nº 494601/RS (28/3/2019) em que, por maioria, fixou-se a tese de que “É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”, vencido o ministro Marco Aurélio, que compreende a constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qualquer natureza, vedada a prática de maus-tratos no ritual e condicionado o abate ao consumo da carne.
Lembrando, há regra constitucional que proíbe a crueldade e a tipifica como maus-tratos, art. 32 da Lei nº 9.605/98: “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: [...] Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.” Assim, o desafio que se estabelece é aliar o âmbito ecológico com a dignidade humana na perspectiva intercultural inclusiva e progressiva, promovendo a liberdade religiosa e o combate à intolerância, nos termos da Resolução nº 440 do Conselho Nacional de Justiça.
Já no Supremo Tribunal Federal, recentemente, em 17 de abril de 2024, foi julgado o caso de Repercussão Geral (RE 859.376 - Tema 953) envolvendo o uso de trajes religiosos em fotos oficiais, que se iniciou a partir de uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da União e o Departamento de Trânsito do Estado Paraná (Detran-PR), dado o momento em que uma freira foi impedida de utilizar o hábito religioso na foto para renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
Por unanimidade, o Plenário seguiu com o entendimento do presidente do Supremo Tribunal Federal, e relator do caso, Ministro Luís Roberto Barroso que assim se manifestou:
Como nós todos sabemos, a liberdade religiosa é direito fundamental, e a restrição a um direito fundamental precisa respeitar o princípio da proporcionalidade. Aqui, ainda que se considerasse que a exigência de não poder utilizar o hábito fosse adequada para o fim de segurança pública, inequívoco que ela é uma medida exagerada e desnecessária por ser claramente excessiva.
Assim sendo, no julgamento ficou estabelecido que “É constitucional a utilização de vestimentas ou acessórios relacionados à crença ou religião nas fotos e documentos oficiais, desde que não impeçam a adequada identificação individual, com o rosto visível.”
Outro caso que requer atenção é a Lei Municipal 7.205/04, de Sorocaba, que instituiu a obrigatoriedade de exemplares da Bíblia nas bibliotecas municipais, que foi reconhecida como inconstitucional a partir do julgamento pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Na ação direta de inconstitucionalidade, processo nº 2287771-95.2023.8.26.0000, proposta pelo Ministério Público alegou-se que a Lei viola a laicidade do Estado e o princípio da isonomia (previsto na Constituição Federal), visto que prestigia um determinado grupo de pessoas em detrimento de outros em ambiente em que a religião ou o credo não podem receber especial consideração. O relator designado, desembargador Campos Mello, em 20 de abril de 2024, salientou que:
Não há notícia de que outros textos religiosos devam fazer parte obrigatória das bibliotecas municipais. Nem o Alcorão, nem o Talmude ou a Torá terão sido objeto dessa obrigatoriedade. Ao contrário, o art. 19 da Lei Maior veda que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estabeleçam cultos religiosos, embaracem os respectivos funcionamentos ou com eles mantenham relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. No caso em tela, porém, a nítida opção do legislador municipal pela difusão apenas das religiões cristãs implica relação de aliança vedada pela Carta Magna. (grifo próprio)
Assim, embora a Bíblia seja um livro mundialmente conhecido, não há obrigatoriedade legal para que esteja em bibliotecas municipais, sob pena de ferir os princípios do Estado laico.
O artigo intitulado “Religião e Política: mistura sempre perigosa” de autoria do promotor de Justiça (MP-SE), mestre em Direitos Humanos, professor de Direito Eleitoral e membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), Peterson Almeida Barbosa, refere a decisão (ainda não transitada em julgado, ou seja, passível de recurso) do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro que cassou o diploma do deputado estadual Fábio Francisco da Silva (União), basicamente por ter promovido, por meio de programa em rádio na qual atua como apresentador, festivais gospel em templos religiosos “assemelhados a showmícios”.
E, em sua redação, o promotor afirma que “Nenhuma liberdade está à margem da lei, nem mesmo os direitos fundamentais são absolutos; o argumento do freedom speach não ampara nem acolhe a transformação do culto ou da missa em local de pedido de votos.” Portanto, é necessário que a liberdade religiosa esteja amparada em ações políticas que garantem, de fato, a ampla liberdade do povo.
Nas palavras de Gabriel (2018), autor do livro Liberdade religiosa e Estado laico Brasileiro, compreendendo que o Estado, por não ser ateu ou a-religioso, “é um Estado, ao menos técnica e teoricamente, tolerante com toda e qualquer manifestação religiosa e garantidor do exercício da liberdade individual de escolher qual religião praticar.”