DIREITO, RELIGIÃO E O ESTADO BRASILEIRO LAICO
A Igreja Católica utilizou todos os seus recursos para que, durante a Assembleia Constituinte de 1890, incumbida de promulgar a Constituição da República, os valores do catolicismo fossem utilizados ao máximo para compor o novo documento que daria base à sociedade brasileira. Entretanto, a Constituição de 1891 rejeitou qualquer tipo de união entre o poder civil e o poder religioso, exterminando, dessa forma, o Regime do Padroado, dando início ao regime de separação entre Igreja e Estado (CÂMARA NETO, 2006).
O Estado assumiu o compromisso de garantir a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos, independente dos valores morais e religiosos, adotando uma postura, do ponto de vista jurídico-constitucional, de Estado moderno (na acepção da teoria da secularização cunhada nos países centrais) teoria esta que prevê a separação entre Igreja e Estado premissa básica para os Estados modernos (Huaco, 2008, p. 34). Importante também referir a compreensão de Huaco (2008, p. 43) que:
o Estado (diga-se o Estado moderno) não busca a salvação das almas, mas sim a máxima expansão das liberdades humanas em um âmbito de ordem pública protegida, ainda que às vezes o exercício de tais liberdades seja contrário aos padrões éticos das religiões.
Percebe-se que no próprio preâmbulo da Constituição Federal (CF) de 1891 não consta qualquer referência eclesiástica: “Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Congresso Constituinte, para organizar um regime livre e democrático, estabelecemos, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL”. O artigo 72, parágrafos 4º, 5º, 6º e 7º da Constituição são uma evidência desta separação, pois abordou de forma autônoma e distante das concepções católicas assuntos como casamento, registro civil, cemitérios, educação pública confessional, dentre outros.
Artigo 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
[...].
§ 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.
§ 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. § 6º - Será leigo, [isto é, laico], o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.
§ 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.
É evidente que a promulgação da Constituição não necessariamente alterou o cotidiano das pessoas, que continuavam a agir e pensar de acordo com o Regime do Padroado, que vigorou no Brasil por aproximadamente 400 anos, durante o Brasil Colônia e Império. Esse regime de separação entre Estado e Igreja não trouxe somente mudanças negativas à Igreja, pois esta passou a exercer suas atividades sem interferência estatal, com maior autonomia no trabalho pastoral e trabalhos internos, publicando livros e documentos livremente e cobrando o dízimo sem interferências (ESQUÍVEL, 2008, p. 169).
Ocorre que, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, o que parecia irrevogável foi rapidamente modificado, a começar pelo preâmbulo da Constituição de 1934, que passou assim a vigorar:
Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL DE 16 DE JULHO DE 1934. (grifo próprio)
Essa referência no preâmbulo da CF retrata o posicionamento dos legisladores membros da Assembleia Constituinte, revelando o sentimento religioso da maioria da população à época, visto como um ato tradicional na história do constitucionalismo brasileiro.
Alterações também foram realizadas no art. 17 da Constituição, evidenciando a colaboração recíproca entre a Igreja e o Estado, vejamos:
Artigo 17 - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
II - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo.
Outrossim, como aponta Emmerick (2010), a CF de 1934 alterou grande parte dos princípios liberais estabelecidos pela Constituição de 1981, possibilitando a interferência do religioso na política e nos assuntos públicos do Estado, bem como restabeleceu-se as aulas de ensino religioso nas escolas públicas em todos os seus níveis (primário, secundário), bem como o casamento religioso passou novamente a ter efeitos civis, ocasionando grandes retrocessos aos avanços da Constituição anterior e ao Estado laico. E, com a nova Constituição em voga, a Igreja Católica reconquistou seu espaço nas relações públicas, privadas e políticas, passando a exercer ingerências que formavam margens de manobra para defender seus interesses, o que agora estava calcado no inciso III do art. 17 da CF, “colaboração em prol de interesse coletivo”.
Mesmo com a Constituição de 1946, que previa o regime democrático no Brasil, as relações entre Igreja e Estado permaneceram inalteradas, o preâmbulo continuava mencionando Deus, o casamento religioso manteve efeitos civis, garantia-se à família monogâmica e heteressexual proteção especial por parte do Estado. Uma das únicas alterações da Constituição foi ao avanço dos direitos fundamentais de liberdade de consciência e liberdade religiosa, garantias estas que foram incrementadas ao texto original (EMMERICK, 2010).
A partir do golpe civil militar, em 1964, este cenário foi brutalmente alterado , rompendo-se o estado democrático de direito. Entretanto, as Constituições de 1967 e 1969, promulgadas durante o governo militar, em nada alteraram o texto constitucional de 1946 no que se refere à relação Igreja/Estado. Conforme Emmerick (2010), nos anos seguintes novas denominações religiosas começam a disputar espaço econômico, social, cultural e intelectual com a Igreja Católica que, ao perceber a perda da sua hegemonia e com a necessidade de mudança de estratégia, deixou de lado a caridade cristã e focou nos compromissos sociais, surgindo a Teologia da Libertação.
Já com a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição de 1988, os discursos da Igreja Católica e de outras denominações religiosas de matriz cristã se viram contraditórios nas discussões da Assembleia Constituinte, em especial nos temas que contrariam seus ensinamentos e dogmas basilares. Em razão disso, a Igreja influenciou de forma constante e massiva no processo da Constituinte objetivando garantir seus interesses nas questões relacionadas à família, à moral, à educação e, de maneira bem marcante, à reprodução, à sexualidade e ao planejamento familiar.
Estes aspectos são comprovados quando da leitura do art. 5º da Constituição Federal de 1988, que prevê a colaboração entre as religiões e o Estado em ações de interesse público; concede imunidade tributária a templos de qualquer culto; prevê o ensino confessional nas escolas públicas; mantém o casamento religioso com efeitos civis; concede à família proteção especial, dentre outros.
A Constituição de 1891, mesmo tendo sido uma das primeiras a ser promulgada, foi a mais laica da história da sociedade brasileira, visto que a separação entre Igreja e Estado é muito mais nítida e clara do que as posteriores. Mas, não obstante esta separação ser constitucionalmente regulada, percebe-se que a linha que distingue o religioso e o político é muito tênue, o que facilmente incorre em dificuldade de se estabelecer os limites de atuação entre o Estado e as Igrejas.
Neste sentido, tratando-se do vínculo entre influência religiosa no campo político, o professor e historiador Leandro Karnal (2022, entrevista digital), diz:
Os evangélicos neopentecostais são uma novidade crescente na cena política e possuem projetos e interesses específicos e se aproximam de políticos que podem favorecer tais projetos. Isso inclui convicções sinceras contra o aborto ou oportunismos variados. Existe uma reação quase global de desconfiança com a modernidade dissolução de fronteiras de gênero, etc.) que encontra eco em projetos políticos conservadores e instituições religiosas.
Hervieu-Léger (2008, p. 41) contribui de forma importante para que se possa entender as mudanças que estão ocorrendo na relação entre os indivíduos e as instituições religiosas na contemporaneidade (da religião em movimento), salientando que:
Falou-se, muito equivocadamente, de “retorno do religioso” ou de “revanche divina”, para designar, desordenadamente, o atual desenvolvimento dos novos movimentos espirituais, o aumento das correntes carismáticas, o retorno das peregrinações [...]. Longe de se ligarem ao universo religioso das sociedades do passado, esses fenômenos, pelo contrário, trazem à luz o caráter paradoxal da Modernidade do ponto de vista da crença. [...] As instituições religiosas continuam a perder sua capacidade cultural de impor e regular as crenças e as práticas. O número de seus fiéis diminui e os fiéis “vêm e vão”, não apenas em matéria de prescrições morais, mais igualmente em matéria de crenças oficiais. De outro lado, esta mesma modernidade secularizada oferece, geradora que é, a um tempo, de utopia e de opacidade, as condições mais favoráveis à expansão da crença. Mas a incerteza do porvir é grande, mais pressão de mudança se intensifica e mais crenças se proliferam, diversificando-se e disseminando-se ao infinito. O principal problema, para uma sociologia da modernidade religiosa, é, portanto, tentar compreender conjuntamente o movimento pelo qual a Modernidade continua a minar a credibilidade de todos os sistemas religiosos e o movimento pelo qual, ao mesmo tempo, ela faz surgir novas formas de crença. Para responder a esse problema, é necessário ter entendido que a secularização não é, acima de tudo, a perda da religião no mundo moderno.
A autora Chantal Mouffe (2006, p. 25-26) ensina que as religiões não podem ser ignoradas enquanto atores políticos nos debates e nos embates na arena pública, mas a participação na política deve respeitar estritamente os limites constitucionais:
Falar de separação Igreja e Estado, portanto, é uma coisa; outra é falar de separação entre religião e política; e outra ainda é falar de separação entre o público e o privado. O problema está no fato de que esses três tipos de separação são às vezes apresentados como de algum modo equivalentes e requisitando-se mutuamente. A consequência disto é que a separação entre Igreja e Estado é vista como implicando a exclusão de todas as formas religiosas da esfera pública. [...] Não acho que esta concepção possa ser defendida. Na medida em que atuem nos limites constitucionais, não há qualquer razão pela qual os grupos religiosos não devam intervir na arena política para pronunciar-se em favor de ou contra certas causas. Certamente, muitas lutas democráticas têm sido informadas por motivos religiosos. E a luta pela justiça social tem com frequência sido fortalecida pela participação de grupos religiosos [...]. As tradições possuem poder de aglutinação especial no trato de intuições morais principalmente no que tange a formas sensíveis de uma convivência humana, Tal potencial faz do discurso religioso que vem à tona em questões políticas referentes à religião um candidato sério a possíveis conteúdos de verdade, os quais podem ser, então, toma-dos do vocabulário de uma determinada comunidade religiosa e traduzidos para uma linguagem acessível em geral.
Então, afinal, qual é o conceito de religião? Devemos considerar ser o mais aberto possível, evitando-se, assim, restrições desnecessárias, permitindo toda e qualquer manifestação religiosa, caso contrário estaremos incorrendo em erros frente ao Estado de Direito Democrático, infringindo o próprio princípio da neutralidade estatal.
Conforme ensinamentos de Laurence Tribe (1988), até o século XIX o conceito de religião era compreendido de forma restrita, teísta, em termos ocidentais, vinculando divindade, moralidade e adoração. Entretanto, a partir do século XX, mais de 250 grandes organizações religiosas foram reconhecidas, o que gerou um novo conceito de religião, agora sob perspectiva do crente e não de uma teologia sistematizada. No Brasil a religião é percebida como uma crença e a manifestação dessa no poder divino ou sobrenatural. Não é necessária sistematização teológica, nem uma unidade organizacional ou vinculação a um determinado líder.
Assim, basta a ligação a um aspecto sobrenatural, ainda que não seja ligado a um deus pessoal para ser considerada religião e estar sob a proteção constitucional, como é o caso do candomblé, o cristianismo, o islamismo, o budismo, o espiritismo, a prática de cartomancia, entre outros. Mas é importante fazermos uma ressalva, o conceito de religião não pode ser confundido com ideologia, crenças políticas ou outro tipo de manifestação intelectual do ser humano, pois deve estar, obrigatoriamente, vinculada ao sobrenatural (Teraoka, 2010).
Percebe-se que no inciso VI, art. 5º, da Constituição Federal de 1988, não se busca tutelar alguns aspectos da liberdade religiosa, mas sim a liberdade de consciência. Esta liberdade é a faculdade do indivíduo formular ideias a respeito de si mesmo e do mundo que o cerca, não se confundindo com liberdade religiosa. A primeira é mais ampla e compreende tanto a liberdade de ter ou não ter religião, bem como de ter qualquer religião, tratando-se do foro individual, enquanto a segunda possui uma dimensão social e institucional.
Arremata Teraoka (2010, p. 50):
[...] a crença, como consciência interna, deve ser sempre livre, não podendo regras jurídicas determinar ou impedir que seres humanos pensem ou acreditem de determinada forma ou em determinada divindade, pois a liberdade de crença protege tanto os aspectos ligados à fé como também a exteriorização da crença religiosa pelo indivíduo por meio de práticas externas.
Para Silva (1989) a liberdade religiosa é compreendida como 3 liberdades: I. liberdade de crença com conotação interior ou espiritual que, no máximo, protege o homem na sua profissão de fé no interior de sua residência, nos chamados cultos domésticos; II. liberdade de culto, que protege a exteriorização da fé, permitindo ao homem a prática pública da religião; III. liberdade de organização religiosa, permitindo a constituição de igrejas ou denominações jurídicas com fins religiosos.
Já para Pinheiro (2007) é visível três dimensões da liberdade religiosa, a primeira é a chamada “subjetiva ou pessoal”, a qual abrange o direito do indivíduo; a segunda é a “dimensão coletiva”, referindo-se ao direito ao culto público, ao proselitismo religioso e à possibilidade de divulgação das ideias religiosas e, por último; a “dimensão institucional”, abrangendo a liberdade de organização religiosa, cultos e liturgias, bem como a possibilidade de arrecadação de recursos para consecução de seus fins.
Como muito bem conceitua Sarlet (2020, documento digital), o direito à liberdade religiosa, “[...] trata-se de um direito complexo que, nem por isso, deixa de ser eficaz e operacional, inserindo-se nas relações entre as pessoas, físicas e jurídicas, e o Estado — e das pessoas entre si.”, de forma que todos possuem direitos, assim como todos possuem limites para exercê-lo.