O COMPLEXO DE ISRAEL: O TRÁFICO DE DROGAS E A RELIGIÃO3
O traficante Álvaro Rosa, apelidado de Arão e Peixão, é o líder e fundador do Complexo de Israel. Desde julho de 2020 estão sob seu comando cinco comunidades que, juntas, integram mais de 130 mil habitantes; Vigário Geral, Cinco Bocas, Cidade Alta, Pica-Pau e Parada de Lucas. Mas, na realidade, o processo de integralizar as comunidades e criar um grupo forte e unificado, denominado de “Exército do Deus Vivo ou Tropa do Arão” (conforme ilustração abaixo), em referência ao seu líder (Álvaro Rosa) iniciou em meados de 2007, a partir da disputa de narcotraficantes pelo controle do tráfico local das maiores comunidades da região (Vigário Geral, Parada de Lucas e Cidade Alta) (FERNANDES, LEITÃO, RIANELLI, et al., 2020).
Figura 1 - Uso de armas pelos traficantes denominados “Exército do Deus Vivo ou Tropa do Arão”
Fonte: Reprodução/Redes Sociais UOL. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/03/13/tropa-de-arao-o-uso-da-religiao-como-escudo-para-a-pratica-de-crimes-no-rj.htm. Acesso em: 24 jun. 2024.
Ainda conforme os autores, a estabilização e domínio da facção nas comunidades não se deu de forma imediata, passando por processos árduos e complexos de dominância. Em meados de 2007, sob comando de Peixão, a facção iniciou a anexação forçada da comunidade Parada de Lucas e, ainda no mesmo ano, agregou também a comunidade de Vigário Geral. Já a partir de 2016 (decorridos mais de 9 anos de sua constituição), a facção conquistou os territórios do outro lado da Avenida Brasil (Rio de Janeiro), partindo pela Cidade Alta, culminando em um conflito que durou aproximadamente sete meses, contando, inclusive, com intervenção policial e queima de veículos nas vias paralelas. Nos anos seguintes, as comunidades de Pica-Pau e Cinco Bocas, em Brás de Pina, também foram incorporadas ao domínio faccional (conforme ilustração abaixo).
Figura 2 - Mapa da ocupação das comunidades do Complexo de Israel
Fonte: reprodução Rede Globo, acesso em: 24 jun. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/10/25/pm-ocupacao-comunidades-complexo-de-israel-por-tempo-indeterminado.ghtml
Milicianos do Morro do Quitungo, bairro Brás de Pina, uniram-se em 2020 ao Terceiro Comando Puro (TCP), grupo criminoso criado por Peixão, e iniciaram a disputa contra o Comando Vermelho pelo controle da Região Norte da comunidade. A união se deu a partir do início da pandemia de covid-19, meados de maio de 2020, quando foram firmadas negociações e acordos entre traficantes que tiveram a permissão dos paramilitares para visitar parentes que moram em morros dominados pela milícia (OLIVEIRA, C. 2021).
Aproveitando-se das fragilidades e vulnerabilidades criadas pela pandemia, a facção ampliou a dominação territorial para áreas que, até então, não tinham no seu dia a dia a presença do tráfico de drogas e crime organizado, o que, consequentemente, alterou drasticamente a dinâmica social dessas comunidades.
Baseado nos princípios do Estado de Israel para pautar sua interferência e domínio sobre as comunidades do Rio de Janeiro, o Peixão assume o papel de próprio salvador da cristandade, vinculando o teocentrismo evangélico ao tráfico de produtos ilícitos, sendo reconhecido tanto como liderança na hierarquia do crime quanto como líder religioso instituído de autoridade divina (CUNHA, 2009).
Para reforçar o status de comunidades dominadas pelo “Exército do Deus Vivo ou Tropa do Arão”, passou-se a utilizar símbolos religiosos, podendo ser contemplada, a partir de 2020, sobre o ponto mais alto da Cidade Alta uma figura em led azul, formada por dois triângulos sobrepostos: a famosa Estrela de Davi. A estrela possui quatro metros de altura e pode ser avistada por diversos trechos da Avenida Brasil, uma das principais vias de acesso ao Rio de Janeiro.
Figura 3 - Foto da estrela de Davi no ponto mais alto da Cidade Alta, Rio de Janeiro
Fonte: reprodução Rede Globo, acesso em: 29 mar. 2024, às 12h20. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/24/traficantes-usam-pandemia-para-criar-novo-complexo-de-favelas-no-rio-deixam-rastro-de-desaparecidos-e-tentam-impor-religiao.ghtml
Ainda durante o regime de Peixão foram utilizados apelos de imagens que constam nos muros dos bairros por meio de artes em grafite com dizeres bíblicos. Em uma delas, um pergaminho é desenrolado para revelar a mensagem “Deus/Jesus é o Dono do Lugar” (figuras 4 e 5), desenhando, ao lado, o mapa do Brasil com as cores da bandeira de Israel. Já em outra aparece a imagem do personagem infantil Peixonauta (ilustração abaixo), referindo-se ao apelido utilizado por Álvaro Rosa, o qual já é reconhecido e aprovado por outros criminosos também convertidos ao evangelismo e igrejas neopentecostais, criando-se, assim, um grupo de traficantes evangélicos4 que atuam no Rio de Janeiro sob liderança de Peixão.
Figuras 4 e 5 - Grafites nos muros das comunidades
Fonte: reprodução O Tempo/Google Street View + reprodução/instragram/@bailesdocabana. Disponível em: https://www.otempo.com.br/cidades/2024/5/27/estabelecimento-de-faccao-evangelica-no-cabana-liga-alerta-para-. Acesso em: 25 jun. 2024.
Figura 5 - Personagem Peixonauta – referência humorada ao Peixão.
Fonte: Foto de Christina Vital da Cunha, 2022, disponível em: file:///D:/Dados/Downloads/aa-11890.pdf. Acesso em: 24 jun. 2024.
Percebe-se que a partir da segregação e da subjugação das classes trabalhadoras pelas dominantes se criam espaços abertos a outros tipos de subordinação, não mais exclusividade do Estado, nas quais se vinculam fortes laços comunitários, interesses do capital articulando o tráfico de drogas, as milícias, as igrejas evangélicas e o próprio Poder Público por meio da violência. É exatamente nesse contexto que o tráfico de drogas e outros ilícitos surge trazendo condições um pouco mais compensatórias em meio às diversas exclusões e escassez de oportunidades de mobilidade social. Em moldes muito semelhantes, o neopentecostalismo vem crescendo com celeridade nas periferias urbanas sob o manto da prosperidade, concebida dentro da ideia da fé em Deus contra todo o mal, expulsando o “diabo” da vida das pessoas e operando vitórias individuais no mundo material (sucesso profissional, riquezas, reconhecimento e ascensão social).
No entanto, conforme explica Costa (2023, entrevista digital), que é pastora e pesquisadora da área, tratando do Complexo de Israel:
Ainda que estejamos falando de uma nova configuração quando olhamos para o Complexo de Israel e os traficantes evangélicos, onde a religião tem papel fundamental na estrutura, estratégia, identidade e ética local impostas pelo tráfico, é equivocado dizer que somente nesses territórios e na relação com evangélicos pentecostais, a religião e as experiências com o sagrado estão presentes dando sentido à vida e segurança em contextos de violências.
Assim, precisamos estar atentos à utilização dos termos narcopentecostalismo e narcorreligião, visto que ambos surgiram na mídia de forma bastante irresponsável. O que poderíamos afirmar que há, comprovadamente, seria apenas a existência de alguns líderes do tráfico de drogas que se identificam como evangélicos e de algumas igrejas que transformam seu jeito de existir nas favelas por conta da dinâmica dessa criminalidade.
O CRESCIMENTO PENTECOSTAL NAS PERIFERIAS
Conforme Rodrigues (2004), o tráfico de drogas é, sem dúvidas, um verdadeiro mercado de trabalho ilícito, com alto grau de lucratividade, justamente por se tratar de uma atividade com diversos níveis, mantido por redes internacionais ou por quadrilhas inseridas em favelas. Normalmente é composto por pessoas excluídas da sociedade, pobres, desempregados e subempregados, que encontram dificuldade de acesso à infraestrutura Estatal, mas facilidade de acesso às instituições corruptas e ao próprio sistema financeiro “ilegal”, conforme explicam Cruz Neto, Moreira e Sucena (2002). O tráfico de drogas nas favelas está tão bem estruturado que chegamos a um ponto onde é possível encontrar planos de carreira, com possibilidades de ascensão profissional e social e diferentes remunerações dependendo da atividade e função desempenhada. O lucro do tráfico retorna à economia formal, assegura lucros para os empresários das comunidades e mantém postos de trabalho, o que torna viável a sua manutenção nas comunidades.
Em virtude da exploração massiva pela mídia ao longo das últimas décadas, o modelo de tráfico de drogas e suas consequências vêm contribuindo para um novo conceito de favela que vincula de forma taxativa a pobreza e a violência, destacando-se como uma vizinhança instável, perigosa e incômoda (PICANÇO e LOPES, 2016,).
Tinha-se, até poucos anos atrás, que o catolicismo era um elemento central estabelecido no Brasil, entendendo-se por cultura popular tradicional. Entretanto, o crescimento do número de evangélicos pentecostais, em específico nos espaços públicos e políticos, têm provocado abalos nessa prevalência católica, gerando, inclusive, abalo nas esferas da vida social nas periferias (CUNHA, 2018, p. 03).
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os números obtidos no Censo 2010 (cabe esclarecer que o Censo de 2022 não abordou especificamente o número de membros de cada religião) confirmam essa alteração emblemática, com o número de evangélicos crescendo mais de 16 milhões em dez anos:
A proporção de católicos seguiu a tendência de redução observada nas duas décadas anteriores, embora tenha permanecido majoritária. Em paralelo, consolidou-se o crescimento da população evangélica, que passou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. Dos que se declararam evangélicos, 60,0% eram de origem pentecostal, 18,5%, evangélicos de missão e 21,8 %, evangélicos não determinados.
Outrossim, mesmo não indicando o número de adeptos de cada religião, é imprescindível afirmar que o Censo de 2022 trouxe novidades quanto ao cadastramento e georreferenciamento de todos os 111 milhões de endereços do Brasil cadastrados durante a pesquisa, o que evidenciou números alarmantes entre estabelecimentos religiosos, educacionais e de saúde. Segundo os dados coletados, o Brasil possui 579,7 mil estabelecimentos religiosos (igrejas, templos e outros), sendo 286 para cada 100 mil habitantes; 264,4 mil estabelecimentos de ensino (escolas, creches e universidades), sendo 130 para cada 100 mil habitantes, e 247,5 mil estabelecimentos de saúde (hospitais, clínicas e pronto socorro), sendo 122 para cada 100 mil habitantes.
A partir da análise dos dados inseridos no mapa do Brasil divulgado pelo Censo 2022, percebe-se que o número de estabelecimentos religiosos em comparação à população é muito maior na Região Norte (estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins), onde há 79.650 igrejas (459 para cada 100 mil habitantes). Com 554 igrejas para cada 100 mil habitantes, o Acre está liderando a média nacional, seguido de Roraima e Amazonas, cada um com 485 para cada 100 mil habitantes. Já na região Sul (Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina) a relação entre o número de estabelecimentos religiosos e a população é reduzida, eis que há apenas 226 estabelecimentos para cada 100 mil habitantes.
Segundo análise de Christina Vital da Cunha (2009), a fé dos traficantes, entre 1980 e 1990, estava intrinsecamente ligada às religiões de matriz africana (umbanda e candomblé), existindo múltiplos locais de culto nas favelas. Inclusive, eram realizados registros da religiosidade em tatuagens, rituais, construção de altares e pinturas nos muros das favelas. Todavia, a partir da década de 90 alguns policiais que foram se introduzindo nas favelas destruíram diversos emblemas religiosos da presença e dominância dos traficantes, marcando, assim, a tomada dos territórios e proclamando a nova ordem local com emblemas e imagens cristãs. Inclusive, esse é o motivo pelo qual até hoje existem traficantes que perseguem os praticantes das religiosidades afro.
O crescimento exponencial das igrejas neopentecostais também pode ser atribuído à capacidade de atualizar seus instrumentos de evangelização, ainda que enfatize a questão do sobrenatural. Especialmente na questão dos templos que, de forma totalmente diferente do sagrado católico, que traz à tona o elemento divino, edificando catedrais majestosas, as religiões neopentecostais fixam-se em lugares comuns e até mesmo periféricos, onde anteriormente existiam estabelecimentos comerciais/industriais ou residenciais, concebendo-se a igreja enquanto local não sagrado, mas comum, de reunião de todos os fiéis, proporcionando acolhimento sem distinções ou constrangimentos (MELLO NETO E SILVA JÚNIOR, 2010).
Esse crescimento ocorre, sobretudo, em países em desenvolvimento, em contextos periféricos, conectado diretamente com o perfil socioeconômico local, a experiência de vulnerabilidade social e a vivência de abandono do poder público, apresentando-se como resposta, ou fuga, aos desafios e sofrimentos, por meio das redes de apoio evangélicas pentecostais, ressignificando o dia a dia de quem vive em territórios marcados pela violência e abandono. Interessante observar, também, os números trazidos pelo Censo Institucional Evangélico, realizado pelo Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER) entre 1990 e 1992, que apresentaram riquíssimos detalhes do avanço pentecostal nas periferias de 13 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Durante o período foi registrada a abertura de 3.477 templos, sendo que destes, 61% eram de igrejas pentecostais. Os outros (39%) eram igrejas protestantes históricas. Ainda, neste mesmo intervalo, 710 novos templos foram registrados no cartório do estado, uma média de 5 novas igrejas evangélicas por semana. O que se mostra ainda mais surpreendente, na percepção de Mariano (2014), é a constatação de que “em cada dez templos evangélicos criados no período, nove eram pentecostais”.
A respeito do crescimento pentecostal em áreas de fragilidade político-social, Cunha (2014, p. 67), da Universidade Federal Fluminense, afirma que:
Embora muitas análises tratem de salientar que a onda pentecostal, para usar uma expressão de Freston (2014), ganhou nos últimos anos a adesão de segmentos abastados, não se pode negar o fato de que, ainda hoje, os mais pobres e mais vulneráveis econômica e socialmente são os que compõem a maioria pentecostal mundo afora. Nos países em desenvolvimento, são os habitantes dos “territórios da pobreza” aqueles que mais se convertem. Assim também ocorre em países desenvolvidos [...] O pipocar de denominações e templos evangélicos pentecostais nesse país é alvo da atenção da academia e dos governos locais, preocupados com o crescimento das (possíveis/supostas) seitas e com a forma pela qual tal crescimento pode impactar essas sociedades e culturas.
Essa fala reforça as preocupações quanto ao futuro da religião no país e a sua influência nos campos políticos e sociais, motivo pelo qual estudos mais aprofundados devem ser realizados e o acompanhamento dessas mudanças religiosas deve ser acentuado.
Importante ressaltar que o neopentecostalismo atual é diferente do movimento pentecostal inicial (surgido em 1910), cuja ênfase recaía sobre o batismo no Espírito Santo, a cura e a salvação mediante a rejeição do mundo. Surgindo durante o inchamento urbano no Brasil, desenvolvimento da industrialização, modernização e comunicação em massa, no final da década de 70, com a crise católica, o movimento neopentecostal se caracterizou, sobretudo, pela realização de milagres e na crença da salvação e extinção da pobreza, da miséria e da opressão demoníaca, iniciando a guerra espiritual viabilizada pelos três pilares: cura, exorcismo e prosperidade (PICOLOTTO, 2016, p. 81).
De acordo com Cao e Zhao (2010), processos intensos e acelerados de modernização, quando acompanhados por uma fragilidade estatal e redes de infraestrutura incapazes de responder às novas demandas urbanas, resultam em períodos de anomia social, que encorajam a emergência de novas experiências de coletividade e coesão, que são alavancadas com a falta de investimento Estatal nas favelas, surgindo, assim, os chamados poderes paralelos. Essa negligência estatal com investimentos em infraestrutura urbana, serviços básicos de saúde, educação, lazer e segurança, em conjunto do sentido de insegurança e ameaça proveniente dos conflitos com a polícia e comunidade, conduz favoravelmente ao surgimento destes poderes paralelos ao Estado (OLIVEIRA & ALENCAR, 2017).
Em algumas comunidades dominadas pelo tráfico de drogas o poder político e religioso está na mesma pessoa (traficante), o que favorece a criação de um estado paralelo teocrático, pois “existe um povo, uma unidade cultural, espaço geográfico e existe quem governa (que não é o governador ou o prefeito), faltando apenas uma constituição” (Veira, 2024, entrevista digital).
No entendimento de Amorim e Júnior (1993), a concepção de “estado paralelo” depende de:
1) disposição das organizações criminais de uma força armada, composta por milícias próprias; 2) sustentação de um poderio bélico pelo qual passa o controle da vida social de todo um território, impondo regras de conduta à população; 3) realização de ações assistencialistas normalmente realizadas pelo Estado; 4) influência direta ou indireta na escolha de lideranças locais que ocupam cargos representativos em entidades locais ou até mesmo apoio à candidatura de parlamentares; 5) existência de burocracia organizacional; 6) afirmação do poder à organização criminal independente do reconhecimento formal do Estado, com quem se confronta frequentemente.
Conforme Leal e Almeida (2012), esses poderes paralelos são comumente exercidos por organizações criminosas que dominam as comunidades periféricas dos grandes centros urbanos e atuam por meio da brutalidade e discursos morais, estabelecem relações íntimas entre seus integrantes e a comunidade em geral que, juntos, operam contra as forças militares oficiais que tentam adentrar nos territórios dominados.
Ainda segundo os autores acima referidos:
As organizações criminais utilizam-se também do discurso moral – assim como a organização estatal – para convencer os indivíduos do valor do crime organizado, fazendo-os perceber sua face assistencialista, ou seja, o seu “lado bom”. Desta forma, torna o controle que exercem sob a população mais estável do que se o fizessem simplesmente através do domínio pela força. Independente dos “bons” sentimentos que o “dono do morro” possa ter para com os seus conterrâneos, o seu comportamento compre a função de estabilizar o seu poder. Por mais sutil que seja a diferença entre um domínio (instável e/ou estável), não se trata de um mero detalhe. (LEAL e ALMEIDA, 2012, p. 12)
Nas comunidades periféricas dos grandes centros urbanos Brasileiros funcionam dois grandes grupos que diferem entre si: as milícias e as facções. A primeira é constituída, majoritariamente, por policiais, ex-policiais, bombeiros e agentes penitenciários com formação militar, que se juntam para prestar segurança às regiões não alcançadas pelo poder estatal, exigindo da comunidade em que atuam o pagamento de serviços básicos através da imposição do medo e da violência.
Já as facções surgem no Brasil durante o período da Ditadura Militar, em que ocorreram diversas situações de violência nas unidades prisionais, e foi necessário a união dos detentos em grandes grupos como, por exemplo, o Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, ou o Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro, para unir forças em prol da segurança e autogestão carcerária. Mas, a partir de bem estruturadas e unificadas, as facções começam a obter lucro por meio dos crimes de roubo, sequestros e, principalmente, o narcotráfico, impulsionado pela entrada de vários países-latino americanos nas redes de tráfico no final do século XX (HIRATA, CARDOSO, GRILLO et al., 2019).
Com o tráfico de drogas, eleva-se, também, o risco constante aos jovens pobres pelo fato de atuarem na ilegalidade, deixando-os vulneráveis e desamparados diante das regras do sistema institucional, suscetíveis às repressões policiais e problemas como a ausência de assistência médica e psicológica. Uma das alternativas é se destacar e ser conhecido na favela em que atua, gerando dinheiro, poder e fama, ingredientes que acrescentam sedução à vida do crime, principalmente nestes ambientes em que a vida pública e privada se entrelaçam.
Conforme Teixeira (2009), um novo tipo de mercado ilegal de drogas foi surgindo a partir da introdução da cocaína no dia a dia das favelas, passando as quadrilhas a fazerem uso de força por meio das armas de fogo, garantindo maior imposição desse poder paralelo à comunidade. É o próprio tráfico que, diante da necessidade de controle e gestão, cria leis, julga os infratores aos códigos estabelecidos e os pune, organizando a favela em nome da funcionalidade do negócio.
Um dos aspectos bem interessantes a ser avaliado, segundo Grillo (2013), é a forma com que se (inter)relacionam os donos do morro e seus subalternos, uma vez que os mesmos mantêm contato próximo, respeitam a honra do “sujeito homem” e “moral de cria”, causando fascínio e admiração para com o outro, diferente da grande maioria das relações entre “patrão” e funcionário nas relações de trabalho formal, em que geralmente o primeiro se torna ausente, impositivo e até fugaz.
Alba Zaluar (1994-1995) traz uma perspectiva interessante entre os jovens que residem em áreas periféricas e de classes mais pobres e o crime organizado, afirmando que estes são as principais vítimas e também os principais agentes da criminalidade, pois prestam os serviços na linha de frente, onde existem mais riscos do que lucros. São eles, jovens, que fazem a distribuição das drogas, carregam as armas e enfrentam a polícia e as quadrilhas/facções rivais, o que, consequentemente, torna-os estatísticas daqueles que, com menos de 25 anos, já estão presos ou já foram mortos em “serviço”.
O vínculo entre traficantes e a igreja nas favelas surge a partir do momento em que as lideranças evangélicas ganham poder político e estabelecem acordos com o crime organizado para proteção e paz no espaço. Sem contar, também, que, por exemplo, segundo consta no site da Assembleia de Deus dos Últimos Dias (ADUD), fundada por Marcos Pereira da Silva, a atuação dentro dos presídios levando a palavra de Deus gera empatia entre os traficantes, alcançando lugares dentro da periferia que são isentos do poder público.