A confissão, no âmbito do Direito Penal, consiste na admissão, por parte do acusado, da prática do fato que lhe é imputado na denúncia ou queixa. Tradicionalmente, a doutrina distingue a confissão em duas modalidades: confissão simples e confissão qualificada. Como ensina o professor Rogério Sanches Cunha1 a confissão simples se dá quando o acusado assume a prática dos fatos que lhe são atribuídos, podendo ser total (narrando o agente o crime com todas as suas circunstâncias) ou parcial (caso em que não admite, por exemplo, qualificadoras ou causas de aumento). Já na confissão qualificada, o réu admite a autoria do evento, mas alega fato impeditivo ou modificativo do direito (como a presença de uma excludente de ilicitude ou culpabilidade).
Na confissão simples, não há divergência acerca da possibilidade de ser utilizada como atenuante da pena; nem poderia ser diferente, já que essa é a regra prevista no art. 65, inc III, alínea “d”2 do Código Penal. A divergência doutrinária e jurisprudencial aparece com a denominada “confissão qualificada”. Seria possível aplicar a atenuante da confissão caso, por exemplo, o acusado confirme a autoria do crime, mas alegue que agiu sob o manto da legítima defesa?
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), prevalecia, até ao menos o ano de 2013, o entendimento de que a confissão qualificada não ensejava o reconhecimento da atenuante, conforme exemplifica o HC 211.667/RJ3, de relatoria da Ministra Laurita Vaz. No entanto, a partir de 2014, a Corte modificou sua orientação, passando a admitir a aplicação da atenuante mesmo nos casos de confissão qualificada, como demonstrado no AgRg no REsp 1384067/SE4, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro.
Já no Supremo Tribunal Federal (STF), até então a matéria ainda não estava muito bem definida, havendo, porém, uma maior ocorrência de julgados no sentido de negar o benefício em tais casos. Sem embargo, recentemente, em dezembro de 2024, analisando a questão, o plenário do STF, no RvC 55485, acabou por firmar o entendimento no sentido de que a confissão qualificada não serve para atenuar a pena. Embora a decisão não tenha caráter vinculante, trata-se de uma orientação relevante da Corte Suprema e que, certamente, deverá ser balizada como vetor interpretativo pelos demais órgãos do judiciário.
No campo doutrinário, , o tema também desperta intensa controvérsia. Para os fins deste estudo, destacam-se as posições que sustentam a inaplicabilidade do benefício legal à “confissão qualificada”. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci afirma que “não se aceita a atenuante da confissão espontânea se for realizada a admissão da culpa apenas com o intuito de obter o reconhecimento de alguma excludente de ilicitude ou culpabilidade (confissão qualificada). Se o agente, por exemplo, admite ter matado a vítima, mas em legítima defesa, há duas hipóteses viáveis: a) realmente agiu em legítima defesa, sendo, portanto, absolvido; b) comprova-se ser falsa sua alegação, sendo ele condenado, sem qualquer atenuante, pois não narrou a verdade dos fatos, demonstrando insinceridade. Noutros termos, “confessar” um fato típico, mas lícito, não é admitir culpa, pois não é crime. Confissão implica assumir a prática de um delito” (Individualização da Pena. São Paulo: RT, 2005, p. 279).
O mesmo autor, em outra obra (Tratado Jurisprudencial e Doutrinário de Direito Penal, v. 1. São Paulo: RT, 2011, p. 946/947), ensina ainda que “não basta o indiciado ou réu admitir a autoria do delito e, automaticamente, fazer jus ao benefício penal. Ele assume a sua parte, que é referente à autoria, mas precisa fazê-lo com sinceridade, sem subterfúgios e sem pretensão de ludibriar o órgão julgador. (...) A confissão qualificada é uma forma de não admitir o que fez de errado, pois invoca uma proteção legal qualquer, incompatível com prejuízo para sua defesa”. Aduz, ainda, que “se qualquer tipo de confissão valer para configurar a atenuante, banaliza-se a atenuante. O réu pode assumir a autoria, já não contestada e bem demonstrada nos autos, alegando falsos fatos para beneficiá-lo, sem a menor colaboração com o Estado e, ainda assim, receberia a atenuante”.
Não se pode deixar de concordar com este autor, quando aduz que a denominada “confissão qualificada” conturba a instrução do feito, pois demanda prova em contrário para desmontar a versão dada pelo réu. De fato, ao invocar a tese de legítima defesa, ao revés de contribuir, passa a exigir outro esforço do Estado-acusação, para desqualificar esta tese.
Entendendo de forma semelhante, EDILSON MOUGENOT BONFIM preleciona que “a confissão qualificada, em que o acusado admite a autoria, mas alega ter agido acobertado por causa excludente da ilicitude (confessa ter matado em legítima defesa), não atenua a pena, já que, neste caso, o acusado não estaria propriamente colaborando para a elucidação da autoria, tampouco concordando com a pretensão acusatória, mas agindo no exercício de direito de autodefesa” (Direito Penal - Parte Geral. São Paulo:Saraiva, 2004, p. 723).
Ficando apenas na doutrina doméstica, diversos outros autores entendem que o reconhecimento da confissão, como atenuante, ampara-se em razões de política-criminal e/ou que ela visa contribuir com a realização da Justiça, de modo que a confissão qualificada não deve se presta a tal. Cita-se: BASILEU GARCIA (Instituições de Direito Penal, v. I, Tomo II, 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1956, p. 483), ANÍBAL BRUNO (Direito Penal parte geral, tomo III, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 143), HELENO FRAGOSO (Lições de Direito Penal parte geral, 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 433), LUIZ RÉGIS PRADO (Tratado de Direito Penal Brasileiro, v. 3. São Paulo: RT, 2014, p. 88).
De fato, não há dúvidas que a incorporação da confissão em um sistema penal como forma de beneficiar o acusado, fundamenta-se em princípios éticos, funcionais e sociais que justificam um tratamento mais brando ao acusado que admite voluntariamente ter praticado um crime. Esse benefício busca reconhecer a responsabilidade moral do réu, valorizar sua colaboração com a justiça e promover a eficiência do sistema penal, além de favorecer a reabilitação do infrator e minimizar os impactos sobre as vítimas.
A confissão é interpretada como um reconhecimento de responsabilidade por parte do infrator, que admite ter violado o contrato social. Em troca dessa cooperação, o Estado oferece benefícios, como redução de penas ou acordos mais favoráveis, reforçando a noção de justiça como um pacto entre o indivíduo e a sociedade. Esse modelo busca equilibrar o interesse público e a individualidade, incentivando o arrependimento e a responsabilidade moral.
Ao confessar, o acusado demonstra consciência do erro cometido e aceita as consequências de seus atos, o que reflete arrependimento e compromisso com a verdade. Sob outro aspecto, a confissão pode facilitar investigações e o esclarecimento de fatos, permitindo que o sistema penal alcance seus objetivos de forma mais rápida e precisa. Esse ato de cooperação é reconhecido como uma contribuição significativa para a realização da justiça e, por isso, merece uma redução proporcional na pena.
Assim, é natural e até justo, pois, que o Estado adote um tratamento menos severo em relação àquele que contribui efetivamente para a Administração da Justiça Penal, reconhece seu erro e aceita a responsabilização por seus atos, sendo plenamente justo que um benefício seja concedido a esse indivíduo, representando o fundamento central da atenuação da pena ao réu confesso.
No caso da denominada “confissão qualificada”, observa-se uma evidente incompatibilidade do instituto com as premissas que justificam o benefício da atenuação da pena. Dita modalidade de confissão não promove a realização da Justiça, tampouco reflete o reconhecimento sincero do erro ou a aceitação da sanção penal decorrente do crime. Há aqui um verdadeiro choque ontológico entre o instituto e o benefício legal.
Como já mencionado, a denominada “confissão qualificada” revela-se, em essência, como uma estratégia defensiva, na qual, diante da inevitabilidade da comprovação da autoria criminosa, o réu admite a prática do fato, mas associa a essa admissão uma causa de exclusão da responsabilidade penal. O objetivo, nesse contexto, não é colaborar com a justiça, nem reconhecer o erro e aceitar a punição. Ao revés, busca evitar a responsabilização pelo crime cometido, frustrando os fundamentos que legitimam a concessão do benefício. Essa distinção é crucial, pois permite corrigir a imprecisão terminológica que permeia o conceito de "confissão qualificada".
Em verdade, a nosso ver, a controvérsia sobre a aplicabilidade do benefício em tais casos decorre, essencialmente, da imprecisão terminológica associada à expressão "confissão qualificada". Embora amplamente difundida na doutrina e na jurisprudência, essa nomenclatura padece de inconsistências semânticas e conceituais. Tal imprecisão reside no fato de que, embora o termo sugira a existência de uma confissão, o conteúdo jurídico subjacente não preenche os requisitos essenciais que caracterizam uma verdadeira confissão.
À luz do conceito clássico de confissão no Direito Penal, é possível afirmar que esta exige, necessariamente, a presença de três elementos fundamentais: o reconhecimento do erro, a aceitação da punição e a contribuição com a administração da justiça. Esses elementos traduzem a essência da confissão, revelando uma manifestação de arrependimento e colaboração efetiva por parte do agente. No entanto, a denominada "confissão qualificada" apresenta um conteúdo diametralmente oposto. Nessa modalidade, nenhum dos elementos essenciais está presente, pois o agente não reconhece o erro, não aceita a punição e, ao contrário de contribuir com a justiça, costuma levantar justificativas que exigem a produção de novas provas e o reforço da atividade investigativa, dificultando o esclarecimento dos fatos.
Diante disso, a “confissão qualificada” não pode ser tratada como confissão, pois não possui os elementos essenciais que caracterizam esse instituto. Ela nada tem de “confissão”, além da nomenclatura. Trata-se, na realidade, de uma mera declaração de prática de fato acompanhada de uma defesa de mérito. Nessa situação, o agente não assume a responsabilidade pelo ato nem aceita a imposição de uma sanção, limitando-se a admitir a prática de um fato, ao mesmo tempo em que apresenta justificativas que demandam investigação e comprovação. Essa distinção é fundamental, pois revela que o uso do termo "confissão" para designar essa conduta não só carece de precisão técnica, mas também contribui para a confusão conceitual no sistema jurídico, gerando interpretações equivocadas e decisões contraditórias.
Nesse contexto, constata-se que o problema reside mais na questão semântica do que propriamente no conteúdo jurídico. O termo "confissão" possui uma carga semântica específica, associada à ideia de reconhecimento do erro, aceitação da sanção e contribuição com a justiça. No entanto, ao utilizar a expressão "confissão qualificada" para designar uma conduta que não preenche esses elementos, cria-se uma distorção conceitual que compromete a clareza e a precisão dogmática. Denominá-la de “confissão qualificada” assemelha-se a pintar um gato de branco e querer chamar de coelho: pode até ter alguma semelhança superficial, mas não possui as características que o definem. Trata-se de uma dissimulação terminológica que afeta diretamente a aplicação das normas penais, especialmente na interpretação do art. 65, inciso III, alínea 'd', do Código Penal, o qual exige uma confissão autêntica para a concessão da atenuante.
Assim, é inegável que a natureza jurídica da denominada "confissão qualificada" é distinta da confissão propriamente dita, razão pela qual ambas demandam tratamento jurídico diferenciado. Na prática, ao aplicarem essa atenuante, mesmo quando o réu apresenta uma tese defensiva, sob o rótulo de "confissão qualificada", os tribunais acabam por contrariar a lógica do instituto, criando um benefício indevido ao réu.
Proposta de uma nova terminologia
Torna-se evidente que a raiz do problema está na imprecisão terminológica, a qual precisa ser superada. Se o instituto em questão não contém os elementos jurídicos essenciais de uma confissão, é inadequado continuar denominando-o como "confissão qualificada". A solução mais apropriada seria abandonar essa terminologia e adotar uma expressão mais precisa, que não gere confusão entre os conceitos de "confissão" e "declaração de fato". Nesse sentido, propõe-se a adoção do termo "admissão qualificada", que reflete de maneira mais clara e fiel a essência do instituto.
A utilização da expressão "admissão qualificada" tem o mérito de evitar a confusão conceitual e de preservar a lógica do art. 65, III, "d", do Código Penal, restringindo a aplicação da atenuante de confissão aos casos em que o agente efetivamente contribui para a justiça, com reconhecimento de erro e aceitação de punição. Além disso, essa proposta está em consonância com a lógica de precisão terminológica que se busca na ciência jurídica. Um exemplo análogo pode ser encontrado na distinção entre "prescrição" e "decadência" no Direito Civil, que, embora frequentemente confundidos, possuem naturezas distintas e efeitos jurídicos diferentes. Da mesma forma, a separação entre confissão e admissão de prática de fato exige precisão conceitual, a fim de garantir a coerência dogmática e a correta aplicação da norma.
A confirmação dessa confusão terminológica pode ser extraída diretamente do próprio texto legal, no tão citado art. 65, inciso III, alínea "d", do Código Penal. O legislador deixa claro que a atenuante da confissão só é aplicável quando o agente tenha “confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime ”. Portanto, a linguagem jurídica do direito penal não oferece margem para interpretação diversa, senão aquela que entende como “confissão” a admissão de culpa do crime e não apenas admissão de prática de determinado fato (a que denominamos de “admissão qualificada”).
Isso implica que, para a atenuação da pena, é indispensável a admissão de culpa em relação ao fato típico, ilícito e culpável, os quais compõem o conceito analítico de crime na dogmática penal. Quando o acusado admite a prática apenas do elemento “fato típico”, mas nega os demais (admissão qualificada), não há que se falar em confissão no sentido técnico-jurídico, uma vez que não há reconhecimento da prática de um crime. Nesse sentido, a "admissão qualificada" não pode ser considerada como passível de gerar a atenuante, em razão da ausência de previsão legal para tal.
Em conclusão, temos que o termo "confissão qualificada" representa uma anomalia terminológica. Sua utilização gera equívocos na aplicação da atenuante prevista no Código Penal, além de comprometer a coerência do sistema jurídico. Por essa razão, é fundamental uma revisão da nomenclatura. A proposta de substituição pelo termo "admissão qualificada" traz maior precisão técnica e impede que uma mera declaração de fato seja interpretada como uma confissão, com todas as implicações jurídicas decorrentes. Assim, é possível evitar distorções dogmáticas e práticas, conferindo maior segurança jurídica e coerência à interpretação do Direito Penal.
Referências
BONFIM, Edilson Mougenot. Direito Penal - Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2004.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal parte geral. Tomo III. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Salvador: JusPodivm, 2017.
FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal - Parte Geral. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. Volume I, Tomo II. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1956.
NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. São Paulo: RT, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Tratado Jurisprudencial e Doutrinário de Direito Penal. Volume 1. São Paulo: RT, 2011.
PRADO, Luiz Régis. Tratado de Direito Penal Brasileiro. Volume 3. São Paulo: RT, 2014.
Notas
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CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Geral. Salvador: JusPodivm, 2017.
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Art. 65. - São circunstâncias que sempre atenuam a pena:
(...)
III - ter o agente:
(...)
d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime;
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(...) A confissão qualificada, na qual o agente agrega à confissão teses defensivas descriminantes ou exculpantes, não tem o condão de ensejar o reconhecimento da atenuante prevista no art. 65, inciso III, alínea d, do Código Penal (....) HC 211.667/RJ, de relatoria da Ministra Laurita Vaz., julgado em 18/06/2013, DJe 01/07/2013.
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AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA A PESSOA. HOMICÍDIO DOLOSO TENTADO. CONFISSÃO QUALIFICADA. INCIDÊNCIA DA ATENUANTE PREVISTA NO ART. 65, III, DO CÓDIGO PENAL. POSSIBILIDADE. RECENTE POSICIONAMENTO DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Recente jurisprudência desta Corte passou a adotar o posicionamento no sentido de que, mesmo ficando configurada a confissão na modalidade qualificada, é cabível o reconhecimento da incidência da atenuante da confissão prevista no art. 65, III, 'd', do Código Penal. 2. Agravo regimental não provido". (AgRg no REsp 1384067/SE, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA, DJe 12/02/2014)
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Conforme voto do Min. Alexandre de Moraes: “(...) essa conclusão está alinhada à jurisprudência dessa CORTE, firme no sentido de que a CONFISSÃO QUALIFICADA, isto é, aquela em que o agente admite a autoria do delito, mas argui em seu favor uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpabiidade, NÃO É SUFICIENTE para fazer incidir a ATENUANTE prevista no art. 65, inc III, d, do Código Penal”. O processo está em segredo de justiça.