O PRINCÍPIO DO FORMALISMO MODERADO: ATOS ADMINISTRATIVOS PRATICADOS NO PROCESSO DE CONTRATAÇÃO
Muitos são os casos relatados por licitantes que, ao participarem de procedimentos licitatórios, se deparam com decisões administrativas desprovidas de qualquer fundamento legal para a desclassificação do certame licitatório, e até mesmo por exigir, no corpo do instrumento convocatório, requisitos habilitatórios excessivos que ferem o caráter competitivo da licitação.
Quando os requisitos habilitatórios são excessivos ou desprovidos de fundamento legal, eles podem limitar injustamente a concorrência, favorecendo indevidamente certos participantes ou inviabilizando a participação de licitantes qualificados. Isso contraria o princípio da competitividade, que é essencial para garantir que a administração pública obtenha as melhores propostas em termos de preço e qualidade.
Além disso, decisões administrativas sem fundamentação clara e legal podem ser contestadas judicialmente, o que pode atrasar o processo licitatório e aumentar os custos para todas as partes envolvidas. É crucial que os editais de licitação sejam elaborados de forma transparente e justa, com critérios claros e justificados, para assegurar a igualdade de condições entre os participantes e a eficiência do processo.
Nos procedimentos licitatórios, o princípio do formalismo moderado deve ser sempre observado, pois a Administração Pública não pode considerar a desclassificação de uma proposta potencialmente mais vantajosa justificando a aplicação da literalidade da lei, sem possibilitar a convalidação de atos viciados, desde que sanáveis, para atingir a finalidade pretendida.
O princípio preconiza que a administração pública deve buscar o equilíbrio entre a observância das formalidades legais e a obtenção do melhor resultado para o interesse público. Isso significa que, sempre que possível, erros ou irregularidades formais que não comprometam a integridade do processo ou a igualdade entre os concorrentes devem ser corrigidos, permitindo a convalidação de atos viciados que sejam sanáveis.
A aplicação rígida e literal da lei, sem considerar a possibilidade de correção de pequenos vícios, pode resultar na desclassificação de propostas que seriam mais vantajosas para a administração pública. Portanto, é importante que os gestores públicos atuem com razoabilidade e proporcionalidade, buscando sempre o melhor resultado para o interesse público, sem comprometer a legalidade e a transparência do processo.
Na legislação, o instituto do formalismo moderado pode ser encontrado, mesmo que de forma implícita, na Lei Federal nº 9.784/99. Vejamos:
“Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
(...)
VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;
IX – adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;”
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2002) utiliza o termo "informalismo" para descrever o princípio que, embora o processo administrativo deva ser formalizado por escrito e documentado, não deve ser excessivamente rígido em suas formas. Esse conceito de informalismo sugere que o processo deve ser flexível o suficiente para permitir ajustes e correções de vícios formais que não comprometam a substância ou o objetivo do procedimento.
A ideia é garantir que o processo administrativo seja tanto transparente quanto eficiente, sem deixar de lado a necessidade de documentação e formalização, mas evitando a rigidez que poderia impedir a administração de alcançar o melhor resultado possível. Essa abordagem permite que a administração pública se concentre mais na essência e na finalidade do processo, ao invés de se prender a formalidades que não impactam o resultado final ou a justiça do procedimento.
Matheus Carvalho (2020) destaca que o princípio do informalismo no processo administrativo busca proteger os particulares de eventuais prejuízos decorrentes de exigências excessivas de formalidades legais. Essa abordagem visa garantir que os cidadãos e empresas que interagem com a administração pública não sejam penalizados por questões meramente formais, desde que essas questões não afetem a legalidade ou a integridade do processo.
O objetivo é criar um ambiente mais acessível e menos burocrático para os particulares, permitindo que o foco esteja na substância e no mérito das questões tratadas, em vez de se prender a formalidades que podem ser desnecessárias ou excessivas. Isso ajuda a promover a eficiência e a justiça nos procedimentos administrativos, facilitando a participação dos interessados e assegurando que o processo atenda ao seu propósito principal de maneira justa e equitativa.
Nesse diapasão, a doutrina converge no mesmo sentido. O doutor em direito Adilson Abreu Dallari (1997) ensina:
“Existem claras manifestações doutrinárias e já há jurisprudência no sentido de que na fase de habilitação não deve haver rigidez excessiva, deve-se procurar a finalidade da fase de habilitação, deve-se verificar se o proponente tem concretamente idoneidade.
Se houver um defeito mínimo, irrelevante para essa comprovação, isso não pode ser colocado como excludente do licitante. Deve haver uma certa elasticidade em função do objetivo, da razão de ser da fase da habilitação; convém ao interesse público que haja o maior número possível de participantes.” (Grifei)
A intenção da Administração deve ser sempre de possibilitar a participação de maior número de concorrentes e, consequentemente, a seleção da proposta mais vantajosa, de modo a garantir a flexibilização quanto ao saneamento de defeitos mínimos que não comprometam o certame.
Ao permitir a correção de defeitos mínimos que não comprometem a integridade do processo, a administração está alinhada com os princípios de eficiência e economicidade. Essa flexibilização é crucial para garantir que o foco permaneça na obtenção do melhor resultado possível para o interesse público, sem sacrificar a legalidade e a transparência do certame.
Na seara da jurisprudência dos tribunais superiores, nos casos em que o agente público constate irregularidades quanto à formalidade prevista no instrumento convocatório, ainda assim é possível a convalidação dos atos, objetivando prestigiar o princípio do interesse público, desde que não implique em prejuízos aos demais licitantes, e ainda, não interfira no julgamento objetivo da proposta. É o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal:
“As regras do procedimento licitatório devem ser interpretadas de modo que, sem causar qualquer prejuízo à administração e aos interessados no certame, possibilitem a participação do maior número de concorrentes, a fim de que seja possibilitado se encontrar, entre várias propostas, a mais vantajosa” (STJ – RESP n° 512.179-PR, rel. Min. Franciulli Netto)
“Se a irregularidade praticada pela licitante vencedora, que não atendeu à formalidade prevista no edital licitatório, não lhe trouxe vantagem nem implicou prejuízo para os demais participantes, bem como se o vício apontado não interferiu no julgamento objetivo das propostas, não se vislumbrando ofensa aos demais princípios exigíveis na atuação da Administração Pública, correta é a adjudicação do objeto da licitação à licitante que ofereceu a proposta mais vantajosa, em prestígio do interesse público, escopo da atividade administrativa.” (]STF – RO em MS n. 23.714-1, DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence)
Essa abordagem também reforça a confiança no sistema de licitações, ao assegurar que decisões são tomadas com base em critérios justos e razoáveis, respeitando tanto a legalidade quanto a competitividade do processo.
O Tribunal de Contas da União, no recente Acórdão nº 1.211/2021 - Plenário, trouxe um caso de extrapolação dos limites defendidos pelo princípio do formalismo moderado, por entender que os atos praticados em flagrante afronta à norma legal são exemplos de vícios insanáveis pela Administração.
No voto, o relator transcreve a alegação do representante. Em apertada síntese, o pregoeiro, após a fase de lances, suspendeu a sessão para análise da documentação. Em ato contínuo, ao reabrir a sessão, dias após a primeira, informou aos licitantes uma nova oportunidade para envio da documentação, sem qualquer justificativa ou fundamento legal.
O Ministro relator, ao analisar as alegações, procedeu com a irregularidade do ato praticado pelo pregoeiro, pois impossibilitou aos licitantes analisarem as razões, tendo em vista que não declinou (fundamentou) quais seriam os erros e falhas passíveis de saneamento, dentro da margem de correção possibilitada pelos normativos incidentes. Destacou ainda que a fundamentação dos atos administrativos é requisito essencial para a respectiva validade.
Todavia, na sequência do voto, reconheceu que a jurisprudência da Corte de Contas Federal e as regras de licitações vêm evoluindo no sentido de admitir a inclusão de documentos, ou até mesmo a retificação por erros e falhas passíveis de saneamento, de modo que venham a ratificar uma condição pré-existente quando do momento da sessão pública, por entender que tais atos não ferem os princípios da isonomia e igualdade entre as licitantes.
No Acórdão 357/2015 - Plenário, o Tribunal de Contas da União é mais enfático ao asseverar que o princípio do formalismo moderado guarda estreita relação com os princípios da eficiência e da segurança jurídica com objetivo de selecionar a proposta que lhe seja mais vantajosa. Vejamos:
“1. O intuito basilar dos regramentos que orientam as aquisições pela Administração Pública é a contratação da proposta que lhe seja mais vantajosa, obedecidos os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. 2. No curso de procedimentos licitatórios, a Administração Pública deve pautar-se pelo princípio do formalismo moderado, que prescreve a adoção de formas simples e suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados, promovendo, assim, a prevalência do conteúdo sobre o formalismo extremo, respeitadas, ainda, as praxes essenciais à proteção das prerrogativas dos administrados.” (Grifei)
Nesse ínterim, o princípio do formalismo moderado é amplamente reconhecido tanto na doutrina quanto na jurisprudência como uma ferramenta essencial para garantir a eficiência e a justiça nos procedimentos licitatórios. Ele permite o saneamento de falhas formais que não comprometem a essência do processo, facilitando a correção de pequenos erros sem prejudicar os direitos dos licitantes ou o interesse público.
A adoção de formas simples e suficientes visa assegurar que todos os participantes tenham uma chance justa de competir, enquanto a administração pública mantém o foco em seu objetivo primário: o atendimento do interesse público. Isso envolve não apenas a obtenção de propostas vantajosas, mas também a condução de processos transparentes, legais e equitativos.
Ao aplicar o formalismo moderado, a administração pública demonstra um compromisso com a eficiência e a justiça, garantindo que as decisões sejam tomadas com base em critérios substanciais e não meramente formais, promovendo assim a confiança no sistema de licitações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os princípios são fundamentais como fontes do direito administrativo, pois orientam a interpretação e a aplicação das normas, especialmente em áreas complexas como os procedimentos licitatórios. Eles servem como guias para assegurar que os processos sejam conduzidos de maneira justa, eficiente e transparente, respeitando os direitos dos envolvidos e promovendo o interesse público.
No contexto das licitações, o princípio do formalismo moderado é crucial para evitar que formalidades excessivas ou desnecessárias impeçam a participação de licitantes qualificados ou a escolha da proposta mais vantajosa. Ao embasar o procedimento licitatório em princípios como o da razoabilidade, proporcionalidade e competitividade, a administração pública pode formular exigências de habilitação e analisar propostas de preços de maneira mais simples e moderada.
Esses princípios ajudam a garantir que o foco esteja na substância e no mérito das propostas, permitindo correções de pequenos vícios formais que não afetam a integridade do processo. Assim, a administração pública pode tomar decisões que realmente atendam ao interesse público, promovendo a eficiência, a justiça e a competitividade nos processos licitatórios.
REFERÊNCIAS
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