Resumo : a presente reflexão tem por finalidade analisar a situação dos órgãos públicos que possuem autonomia administrativa e financeira concedida pela Constituição Federal de 1988 face aos inúmeros escândalos de folia com o dinheiro público sujeito a suas respectivas curadorias, com pagamento de quantias exorbitantes a agentes públicos.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Órgãos Públicos. Autonomia.
Segundo Chiavenato (2003, pág. 11), a palavra administração vem do latim ad (direção, tendência para) e minister (subordinação ou obediência) e significa aquele que realiza uma função sob o comando de outrem, isto é, aquele que presta um serviço a outro.
Assim, só se fala em administração caso se esteja sob a direção ou ordens de outrem, prestando serviço de cuidado com a coisa alheia.
De seu turno, para Maximiano (2000, pág. 28),
Embora a administração seja importante em qualquer escala de utilização de recursos, a principal razão para ter se desenvolvido como disciplina é sua importância para o desempenho de todos os tipos de organizações. Nas organizações, os gerentes são as pessoas responsáveis pelo trabalho de outras pessoas. Para que os gerentes possam cumprir essa responsabilidade, as organizações emprestam-lhes um atributo especial chamado autoridade. São também chamados chefes. (g. n.)
Destarte, para os fins do presente trabalho, convém ter em mente, que esses gerentes ou chefes administrativos são investidos nas instituições públicas através de um mandato outorgado pelos respectivos titulares da coisa pública: os cidadãos.
Portanto, sua tarefa consiste em gerir o patrimônio público conforme o interesse coletivo, não o interesse próprio, já que isso seria desvirtuar o conceito de administração dado pela doutrina especializada.
Outrossim, o conceito de administração pública possui íntima relação com a definição de República, como irmãs siamesas.
Nesse particular, de acordo com Martins (2022, pág. 185), a República,
Configura forma de Governo na qual o governante é um representante do povo, por ele escolhido, para um mandato determinado, podendo ser responsabilizado por seus atos, já que é um gestor da coisa pública. Com origem na Idade Antiga, a República se opõe à Monarquia, na qual o governante, embora se considere um representante do povo, não é por ele escolhido, bem como não tem um mandato determinado, e, em regra, não pode ser responsabilizado por seus atos. Por exemplo, o art. 99. da Constituição brasileira de 1824 afirmava: “A pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma”. (g. n.)
No que não destoa de Santos (2021, pág. 427), para quem o princípio republicano
a) É uma forma de governo na qual o patrimônio estatal é concebido como patrimônio público, coisa pública (res pública), que pertence ao povo e não aos governantes;
b) Funda-se do princípio da igualdade, determinando que os governantes tratem as pessoas de forma igual perante a lei, sendo vedadas distinções de qualquer natureza entre pessoas que se encontram na mesma situação jurídica, determinando-se, por outro lado, que adotem medidas para assegurar uma igualdade material entre as pessoas que se encontrem em situações de desigualdade, além de exigir conduta impessoal, ética e eficiente dos agentes públicos;
c) Eletividade dos detentores do poder, consagrada pela soberania popular, a exigir que os membros do Legislativo e Executivo sejam eleitos por eleições populares e exerçam o poder em nome e no interesse do povo;
d) É uma forma de governo representativa devendo os detentores do poder representar a população como um todo, sem exclusões que inferiorizem parcelas minoritárias da população. O governo deve governar para todos e não apenas para alguns, mesmo que esses alguns sejam a maioria;
e) Temporariedade do exercício do poder, exigindo-se a alternância dos mandatários do poder, devendo os mandatos terem prazo certo;
f) Responsabilidade dos governantes, devendo estes responderem política, cível, penal e administrativamente pelos atos praticados no exercício do poder, na forma da lei. (g. n.)
No entanto, conforme escreve Barroso (2020, pág. 35) a respeito do constitucionalismo e para os fins que interessam a este escólio,
A despeito de seu caráter aristocrático, o poder na República era repartido por instituições que se controlavam e temiam reciprocamente. Nada obstante, um conjunto de causas conduziram ao ocaso do modelo republicano, dentre as quais o sistema de privilégios da aristocracia patrícia e a insatisfação das tropas, do povo e das outras aristocracias excluídas dos cargos consulares e do Senado. Do ponto de vista institucional, o fim veio pela via previsível, que destruiu inúmeros outros sistemas pluralistas ao longo da história: os comandantes militares tornaram-se excessivamente poderosos e escaparam ao controle efetivo dos órgãos políticos. Quando a República ruiu e deu-se a coroação do imperador, não foi o fim de Roma, cujo domínio duraria ainda mais meio milênio. O que terminou, na véspera do início da era cristã, foram a experiência e o ideal constitucionalistas, que vinham dos gregos e haviam sido retomados pelos romanos. A partir dali, o constitucionalismo desapareceria do mundo ocidental por bem mais de mil anos, até o final da Idade Média. (g. n.)
Nessa senda, apesar de o autor fazer referência à República Romana, suas considerações parecem bastante atuais, ou seja, um sistema de governo em que agentes públicos gozam de privilégios nos moldes aristocráticos, enquanto a maioria da população sofre.
Além disso, o princípio republicano possui amizade com o princípio da isonomia, o qual não autoriza tratamento discriminatório entre cidadãos dentro do território nacional, tampouco entre agentes públicos e particulares, salvo as exceções expressamente previstas na Constituição da República, como o foro por prerrogativa de função, a estabilidade, a vitaliciedade e a inamovibilidade.
Prefacialmente, a Constituição Cidadã, sem seu artigo 73, prescreve ao Tribunal de Contas da União as atribuições previstas no artigo 96, relativas ao Poder Judiciário, e no artigo 75 as estende aos Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios.
Noutra quadra, a Carta Magna, em seu artigo 99, confere ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira.
De outro vértice, em seu artigo 127, § 2º, assegura ao Ministério Público autonomia funcional e administrativa. Já em relação ao Ministério Público de Contas, somente aos seus membros foram estendidas prerrogativas, ficando a instituição submetida a Corte de Contas (art. 130).
Finalmente, em relação a Defensoria Pública, em seu artigo 134, § 2º, também assegura autonomia funcional e administrativa.
Por conseguinte, esses são os órgãos públicos que, sob a ótica constitucional, possuem liberdade condicionada no gerenciamento de seus recursos.
Malgrado, temos que todas essas salvaguardas têm sido mal utilizadas.
Recentemente saiu na mídia especializada que a Presidente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Clarice Claudino da Silva, autorizou o pagamento a juízes e servidores do auxílio-alimentação de R$ 10.000,00 (dez mil reais), denominado como “vale-peru” ou “vale-ceia”. Além disso, consta na matéria que a Desembargadora percebe subsídios no valor de R$ 130.000,00 (cento e trinta mil reais) por mês, a despeito do disposto no artigo 37, inciso XI, da Carta da República.1
Na mesma linha, Desembargadores do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, Sérgio Fernandes Martins, Vladimir Abreu da Silva, Alexandre Aguiar Bastos, Sideni Soncini Pimentel, Marcos José de Brito Rodrigues, investigados na operação “Ultima Ratio” da Polícia Federal por venda de sentenças, receberam subsídios na casa dos R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) líquidos, desrespeitando o texto constitucional.2
No Estado de São Paulo, leis municipais que concedem cesta natal a servidores públicos foram consideradas inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça, todas de representação do autor deste trabalho. Vejamos alguns acórdãos, verbis:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXPRESSÃO « E UMA CESTA DE NATAL ANUAL » CONTIDA NO CAPUT DO ART. 1°, E DO §2° DESTE MESMO ART. 1°, TODOS DA LEI MUNICIPAL DE NOVA ODESSA 2.067/2005. - Analisando as disposições normativas impugnadas, percebe- se a inexigência de contrapartida alguma por parte dos servidores de Nova Odessa para recebimento o benefício da cesta de Natal. É dizer, inexiste suporte fático ou jurídico idôneo a justificar o dispêndio de recursos públicos para essa concessão. - As correspondentes normas locais terminam por afrontar (i) os princípios da impessoalidade, moralidade, razoabilidade e finalidade, e (ii) a previsão constitucional de que a instituição de vantagens de qualquer natureza apenas se justifica quando forem atendidos, de modo efetivo, o interesse público e as exigências do serviço, nos termos dos arts. 111. e 128 da Constituição paulista. - A só mudança da natureza do benefício sub examine que, no caso, pode conceder-se em gêneros ou por meio de crédito em cartão próprio não tem o condão de tornar a norma constitucional, uma vez que, ainda assim, haverá dispêndio de recursos públicos para a concessão das cestas de Natal sem contrapartida alguma por parte dos servidores públicos novaodessenses, não se avistando, pois, a agitada perda de objeto da demanda. O art. 3° da Lei de Nova Odessa 2.067/2005 revogou expressamente a Lei municipal 1.432/1994 (de 16-11), cujo § 2° do art. 1° possuía a seguinte redação: « Fica ainda a Prefeitura Municipal autorizada a conceder uma cesta de natal anual a todos os servidores municipais ». Assim, diante da procedência da ação e visando a evitar indesejado efeito repristinatório de um ato normativo inquinado por de todo equivalente inconstitucionalidade, declara-se inconstitucional, por meio de arrastamento, o dispositivo legal antes revogado. Indeferimento de ingresso de amicus curiæ. Ação direta de inconstitucionalidade procedente, com modulação.
(ADI n. 2246978-80.2024.8.26.0000)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL SERVIDOR PÚBLICO VANTAGEM PECUNIÁRIA. CONCESSÃO DE CESTA DE NATAL AOS SERVIDORES PÚBLICOS LEI 6.698, DE 25 DE NOVEMBRO DE 2022, DO MUNICÍPIO DE AMERICANA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 111, 128 E 144, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. INSTITUIÇÃO DE VANTAGEM PECUNIÁRIA PARA SERVIDORES PÚBLICOS ATIVOS DA ADMINISTRAÇÃO DIRETA E INDIRETA. INSTITUIÇÃO DE QUALQUER VANTAGEM PECUNIÁRIA QUE DEVE ATENDER AO INTERESSE PÚBLICO E ÀS EXIGÊNCIAS DO SERVIÇO, E NÃO APENAS PRIVILEGIAR, COMO NO CASO EM TELA, INTERESSES PRIVADOS DE SERVIDORES PÚBLICOS MUNICIPAIS. INCOMPATIBILIDADE COM OS PRINCÍPIOS DA MORALIDADE, RAZOABILIDADE E DO INTERESSE PÚBLICO. VALOR DO BENEFÍCIO INSTITUÍDO POR MEIO DE DECRETO DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO E DE RESOLUÇÃO DA CÂMARA DOS VEREADORES SISTEMA NORMATIVO CONSTITUCIONAL EXIGE LEI EM SENTIDO ESTRITO PARA A FIXAÇÃO DA REMUNERAÇÃO DE CARGOS, FUNÇÕES E EMPREGOS PÚBLICOS MATÉRIA QUE DEVE OBSERVAR O PRINCÍPIO DA RESERVA ABSOLUTA DE LEI INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 20, III, E 24, § 2º, “1”,DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL, REPRODUÇÃO DOS ARTS. 51, IV, 52, XIII, E 61, § 1º, II, “A”, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL INCOMPATIBILIDADE COM O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE CONFIGURADA. AÇÃO PROCEDENTE, COM RESSALVA.
(ADI n. 2145412-88.2024.8.26.0000)
Destarte, temos que a razão de decidir adotada pela Corte de Justiça Bandeirante se aplica perfeitamente aos casos aqui narrados: a percepção de diversas regalias no Poder Judiciário não atende ao interesse público e tampouco às exigências do serviço, apenas privilegia interesses privados de magistrados e servidores judiciários.
Como se não bastasse, o órgão que deveria fiscalizar igualmente pega carona na onda dos badulaques.
O Tribunal de Contas do Distrito Federal, conforme jornal especializado, pagou ao Conselheiro Inácio Magalhães e ao Procurador-Geral Demóstenes Três Albuquerque cerca de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) a título de gratificação retroativa por acumulação de acervo processual, procedimental ou administrativo.3
Enquanto isso, a Advocacia Pública deve se circunscrever ao subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, conforme definido no tema n. 510.4
Ora, por qual razão o supracitado tema se aplica somente aos advogados públicos?
Nessa oportunidade, pedimos venia para citar a crítica de Flávio Gomes de Barros acerca do caso ocorrido no TJMT, a qual se aplica as demais situações aqui retratadas5:
A desembargadora e o tribunal de Mato Grosso não são os únicos a se auto concederem privilégios indecentes, imorais, driblando a própria lei que são pagos pelo povo brasileiro para aplicar. Toda hora surgem relatos, investigações e comprovantes de “penduricalhos” para descumprir não uma lei, mas a lei maior do País, e aumentar ilegalmente salários de juízes e magistrados. Isso ocorre em vários estados, ou seria em quase todos? Mas o pior são notícias avassaladoras sobre vendas de sentenças, envolvendo, ora funcionários, ora os próprios desembargadores, e isso respinga até no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Como confiar nos agentes da Justiça e na própria Justiça? E na polícia, nos legislativos, nos executivos? Alexandre de Moraes é implacável contra golpistas de vários naipes e estrelas e Flávio Dino, contra emendas do Congresso que, não raro, evaporam no destino de forma tão espantosa como se multiplicam ano a ano. Palmas para eles, mas quem será o Xandão e o Dino contra abusos e desvios do próprio Judiciário?
Finalmente, temos que, da forma como o dinheiro público tem sido administrado, a autonomia institucional concedida aos órgãos públicos, especialmente ao Poder Judiciário, deveria ser revista para impedir que esses abusos persistam impunemente. Além disso, constatamos o engodo de se permitir ao próprio judiciário decidir sobre a constitucionalidade de pagamentos a si próprio.
Referências bibliográficas
Barroso, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. – 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Chiavenato, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração: uma visão abrangente da moderna administração das organizações. - 7. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
Martins, Flávio. Curso de Direito Constitucional. - 6. ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2022.
Maximiano, Antônio Cesar Amaru. Introdução à administração. 5. ed. rev. E ampl. – São Paulo: Atlas, 2000.
Santos, Eduardo dos. Direito constitucional sistematizado. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021.
Notas
1 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/tribunal-de-mt-contraria-ordem-do-cnj-e-deposita-vale-ceia-de-r-10-mil-para-desembargadores/
2 Disponível em: https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2024/10/25/supersalarios-de-desembargadores-suspeitos-de-vender-sentencas-em-ms-chegam-a-r-200-mil.ghtml
3 Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/grande-angular/tcdf-conselheiro-e-procurador-receberam-mais-de-r-1-milhao-em-extra
4 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4168352&numeroProcesso=663696&classeProcesso=RE&numeroTema=510
5 Disponível em: https://www.tnh1.com.br/noticia/nid/o-silencio-do-stf-sobre-abusos-e-desvios-do-judiciario/