5. Conclusão
A falta de investimento prioritário e preferencial na efetivação das políticas públicas infanto-juvenil é obstáculo à construção de uma sociedade livre, justa e solidária [27], capaz de garantir proteção integral às crianças e adolescentes em situação de risco, mormente num país de extenso território e multifacetadas mazelas sociais. Ora, não se implementam políticas públicas específicas sem a destinação própria e suficiente de recursos financeiros para o devido custeio.
Em que pese o ECA estar completando dezoito anos, ainda carecem de implementação muitas de suas normas, especialmente a destinação prioritária de verbas para atender à população infanto-juvenil, que, em sua maioria, ainda vive verdadeiro estado marginal de ignorância frente à classe política dirigente. Na prática, a programação orçamentária tem sido sinônimo de desconsideração absoluta à infância e juventude, pela escassez de recursos destinados a essa área. Das "sombras" do orçamento público tudo o que não "sobra" são receitas para custeio da rede de atendimento e otimização dos recursos do Orçamento Criança e Adolescente, incluindo o próprio FIA.
Para enfrentar essa problemática, propõem-se algumas estratégias de intervenção:
a) Os Conselhos de Direitos e Tutelares, na condição de órgãos municipais respectivamente responsáveis pela deliberação das políticas infanto-juvenis municipais e por sua execução no caso concreto, precisam envolver-se na elaboração e acompanhamento das leis orçamentárias.
b) As Câmaras Legislativas, cumprindo seu papel de fiscalizadoras críticas e independentes do Executivo, deverão verificar se a proposta orçamentária encaminhada guarda harmonia com os princípios da prioridade absoluta e destinação preferencial de recursos públicos e, em caso negativo, adotar as providências cabíveis no âmbito do processo legislativo.
c) Ao Tribunal de Contas compete não só assessorar o Poder Legislativo como, dentro de sua autonomia, disponibilizar sua qualificada equipe técnica para realizar permanente auditoria sobre as peças orçamentárias e participar tais informações e relatórios aos demais órgãos que operam no sistema de garantia de direitos, notadamente os Conselhos e o Ministério Público.
d) O Ministério Público, além da responsabilidade de articular os conselhos de atuação municipal (Tutelar e CMDCA), deve atuar tanto na via resolutiva (expedindo recomendações administrativas e celebrando termos de ajustamento de conduta) como demandista (propositura de ação civil pública) para defender a concretização dos comandos legais da prioridade absoluta e destinação preferencial de recursos nos orçamentos públicos.
e) O Poder Judiciário, quando acionado para decidir sobre o orçamento criança e adolescente, precisa sair de sua inércia existencial para corajosamente extrair dos comandos legais da prioridade absoluta e destinação preferencial de recursos uma verdadeira jurisdição inclusiva, admitindo interferência na questão orçamentária e, inclusive, judicialização de políticas públicas infanto-juvenis.
f) O descumprimento dos comandos legais da prioridade absoluta e destinação preferencial de recursos possibilitam tanto a propositura de ação civil pública para estabelecer obrigação de fazer de natureza orçamentária como o ajuizamento de ação de improbidade administrativa por violação de princípios (art. 11 da Lei 8.429/92) e de ação penal por descumprimento de legislação federal (art. 1°, XIV, do Decreto Lei n° 201/67).
g) Convém que se edite norma nacional (emenda constitucional ou lei ordinária) capaz de estabelecer parâmetros objetivos mínimos e específicos para a otimização do OCA.
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Notas
01Tal como o escritor argentino JORGE LUIS BORGES, na sua notável obra "O livro dos seres imaginários", procurou descrever "estranhos entes engendrados, ao longo do tempo e do espaço, pela fantasia dos homens", este despretensioso estudo pretende propor alternativas práticas para evitar que alguns dispositivos da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente continuem embalando nada mais que o sonho e a fantasia dos juristas.
02Arts. 227 da Constituição Federal e 1° do Estatuto da Criança e do Adolescente.
03Arts. 88, I e II, da Lei n° 8.069/90 e 1°, parágrafo único, da Constituição Federal.
04Art. 88, III, da Lei n° 8.069/90.
05"produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação" (Art. 71 da Lei n° 4.320/64).
06"A vantagem de um fundo especial consiste na relativa autonomia que tem, como forma especial de arrecadação (...) e também de ter, em conseqüência, previamente definido o destino desse recurso. É um facilitador de arrecadação, porque é incentivador de arrecadações extraordinárias." (KONZEN)
07Art. 88, IV, da Lei n° 8.069/90.
08Assim, já o disse Murillo Digiácomo: "(...) uma resolução do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente (...) VINCULA (OBRIGA) o administrador público (...), cabendo-lhe apenas tomar as medidas administrativas necessárias ao seu cumprimento (...) a começar pela adequação do orçamento público às demandas de recursos que, em razão daquela decisão porventura surgirem." (grifos do original) (in Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente: transparência de seu funcionamento como condição indispensável à legitimidade e legalidade de suas deliberações).
09Nessa mesma linha, decidiu o STJ – Resp 493.811-SP, Rel. Eliana Calmon.
10Art. 136, I e II, c/c 101 e 129, todos do ECA.
11Arts. 227 da CF e 4º, parágrafo único, "c" e "d", do ECA.
12Art. 88, VI, da Lei n° 8.069/90.
13O CT, pelo art. 136, IX, do ECA; o CMDCA, por conta de sua atribuição deliberativa em decorrência da democracia participativa e por ser o órgão gestor do FIA.
14Sugere-se que as ONGs com atuação no plano nacional e internacional criem alternativas capazes de somarem esforços para passar um "pente fino" nos orçamentos municipais de todo o país, valendo-se, por exemplo, de convênios com os Conselhos de Contabilidade para que, supletivamente, inclusive, haja estudo e produção científica sobre os parâmetros do orçamento-criança.
15Tais normas serão enviadas, respectivamente, até o dia 31 de agosto do primeiro ano de cada mandato governamental; até 15 de abril de todos os anos e até 31 de agosto de cada ano. Esses prazos podem sofrer modificações pelas legislações locais, porém geralmente seguem o padrão definido na CF (arts. 165, I; 165, § 2°; 165, § 5°, respectivamente).
16Art. 201, VIII, do ECA.
17"Espera-se que o Promotor de Justiça seja realizador de positivas transformações sociais, não apenas um asséptico burocrata capaz de contentar-se com mera atuação processual. É tal postura que merece predominar em todos os campos de atuação" (conforme idéia já debatida no artigo "Para onde caminha o Ministério Público?", destes mesmos autores.).
18No artigo supracitado (Para onde caminha o Ministério Público?), estes autores já defendiam a reestruturação dos órgãos auxiliares, "a fim de mitigar o isolamento do Promotor de Justiça como centro de atenção do qual emana toda e qualquer providência, contribuição decisiva para a obtenção de resultados satisfatórios e compatíveis com a expectativa da sociedade e o elevado padrão de exigência constitucional."
19Expressão de Paulo Afonso Garrido de Paula (in Direito da Criança e do Adolescente e Tutela Jurisdicional Diferenciada)
20Art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
21Adotando-se a linha de que, no processo de conhecimento da jurisdição, cabe ao método fenomenológico conter o inevitável subjetivismo do intérprete-juiz, abrangendo sua tradição, historicidade, condição de ser-no-mundo, basta adequar a decisão à realidade dos paradigmas da prioridade absoluta e da proteção integral como linhas-mestras capazes de emprestar efetividade e autonomia ao Direito da Criança e do Adolescente.
22"surgem novos espaços de pensamento que, junto ao questionamento das metáforas e premissas que orientam a epistemologia e a ciência da modernidade, vão destacando a importância para a ciência de temas tradicionalmente vinculados com a arte, tais como a subjetividade, a criatividade, a singularidade e os espaços gerais para o encontro com o outro" (WARAT)
23"Os significantes adquiridos validamente no decorrer deste processo democrático precisam, ao seu final e pelo ''um-juiz'', ser selecionados, simplificados, articulados, organizados, para que, somente então, o sentido advenha, num processo de ''bricolagem jurídica''. Uma decisão se diferencia de outra porque é construída por um personagem humano específico, no tempo, espaço e lugar, ou seja, em um momento histórico, e o narrador-juiz, com sua singularidade, congrega o papel de acertador de significantes" (p. 384)
24Art. 11 da Lei n° 8.429/92: "Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, notadamente (...)".
25por descumprimento de legislação federal (art. 1°, XIV, do Decreto Lei n° 201/67 – "negar execução a lei federal (...)").
26Como, por exemplo, o questionamento indevido da própria norma e a discussão sobre o foro privilegiado.
27Art. 3°, I, da Constituição Federal.