A inconstitucionalidade da reserva de vagas por orientação sexual

07/01/2025 às 20:30
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Resumo: a presente reflexão tem por finalidade analisar, de forma acanhada, o incremento de reserva ou cotas de vagas em concursos e seleções públicas motivadas por orientação sexual dos participantes, em contraste ao princípio da igualdade.


Palavras-chave: Direito Constitucional. Princípio da igualdade. Reserva de vagas.


Constitucionalmente falando, somente são legítimas as reservas de vagas que digam respeito às pessoas portadoras de necessidades especiais. Conforme o artigo 37, inciso VIII, a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;


Sem embargo, como o Brasil é o país onde a exceção se transforma em regra, o Supremo Tribunal Federal chancelou as cotas raciais para ingresso no ensino superior público. Eis a tese fixada no tema n. 203: É constitucional o uso de ações afirmativas, tal como a utilização do sistema de reserva de vagas ("cotas") por critério étnico-racial, na seleção para ingresso no ensino superior público.


Além disso, a Suprema Corte, em sua função inconstitucional de legislador positivo, prorrogou a vigência da Lei Federal n. 12.990 de 2014 até que o Congresso Nacional delibere a respeito. Eis trecho da decisão cautelar proferida na ADI n. 7.654-DF:


1. Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta em face dos arts. 1º, caput e § 1º, e 6º, todos da Lei nº 12.990/2014, que regulamentam a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos federais para candidatos negros. (…) 6. Medida cautelar referendada para dar interpretação conforme à Constituição ao art. 6° da Lei n° 12.990, de 9 de junho de 2014, a fim de que o prazo constante no referido dispositivo legal seja entendido como marco temporal para avaliação da eficácia da ação afirmativa, determinação de prorrogação e/ou realinhamento e, caso atingido seu objetivo, previsão de medidas para seu encerramento, ficando afastada a interpretação que extinga abruptamente as cotas raciais previstas na Lei nº 12.990/2014. Ou seja, tais cotas permanecerão sendo observadas até que se conclua o processo legislativo de competência do Congresso Nacional e, subsequentemente, do Poder Executivo. Havendo esta conclusão prevalecerá a nova deliberação do Poder Legislativo, sendo reavaliado o conteúdo da presente decisão cautelar.


Por conseguinte, temos que além das cotas para pessoas com deficiência, por força judicial, vigem igualmente as cotas raciais, ainda que de duvidosa constitucionalidade, já que o artigo 5º, caput, da Constituição Federal é claro quando afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e o artigo 19, inciso III, também da Constituição Federal determina que não haverão distinções entre brasileiros ou preferências entre si.


Nesse particular, damos razão a Daniela Bonadiman, quando afirma1


E como se já não fosse o suficiente, o sistema de cotas atinge também o inciso V do artigo 208 da Constituição Federal, pois é DEVER do Estado efetivar a educação mediante acesso aos níveis mais elevados de ensino segundo a capacidade de cada um e por mais irônico que seja o sistema de cotas também não é capaz de possibilitar isso, tendo em vista que por vezes um branco será preterido (ainda que com notas superiores ao de um negro) somente por causa de sua cor…Realmente um paradoxo gritante! Mister se faz esclarecer que, agregar o componente econômico no sistema de cotas em nada ajudaria, tendo em vista que apenas iria distorcer a realidade, criando uma falsa sensação de justiça, ou seja, o sistema de cotas, baseado em qualquer outro sistema é um atestado da incompetência do Estado, que não cumpre com o dever de propiciar aos jovens o acesso ao ensino de qualidade e voltado à formação integral. O Brasil necessita estabelecer a construção de uma educação pública de qualidade, como prioridade, em todos os níveis de Governo, visando a formação integral do aluno. As ações afirmativas, no que tangem ao sistema de cotas, em nada contribuem para instituir uma sociedade mais justa e igualitária, conforme preconiza nossa Constituição Federal. Em suma, o tratamento diferenciado entre negros e brancos não encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico, razão pela qual, o sistema de cotas é inconstitucional, tendo em vista que ninguém poderá ingressar em uma universidade ou mesmo ocupar um cargo público em razão de sua cor ou classe econômica e sim por ser merecedora de ocupar tal posição, até porque com educação pública de qualidade, as cotas não seriam necessárias. (g. n.)


Outrossim, conforme brilhante decisão proferida pela 8ª Vara do Trabalho de João Pessoa na RTOrd 0131622-23.2015.5.13.0025:


É preciso assentar, no que diz respeito à Lei n.º 12.990/2014, que a qualificação é pressuposto obrigatório para ingresso nos quadros do serviço público, seja em razão do princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição Federal), seja em razão da necessidade de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego (art. 37, II, da Constituição Federal). Ou seja, os critérios para investidura em cargos e empregos públicos decorrem das características do cargo, e não dos candidatos, sendo fundamental o recrutamento dos mais capacitados, independentemente de origem, raça, sexo, cor, idade, religião, orientação sexual ou política, entre outras características pessoais. (g. n.)


Nessa decisão, o magistrado deixa expresso que o ingresso nos cargos e empregos públicos, por força do texto constitucional, se baseia no mérito, pois o serviço público demanda pessoas melhores capacitadas para o fiel atendimento do interesse público, fim maior do Estado.


 Por sua vez, a doutrina, de forma acrítica, apenas reproduz o entendimento do STF acerca do assunto. De acordo com Flávio Martins (2022):


O Plenário do STF, na ADC 41, reconheceu de modo contundente a existência desse descompasso entre o ideal civilizatório que emana das normas vigentes e as mazelas da realidade social que persistem na atualidade. Naquela oportunidade, o ministro Luis Roberto Barroso, ao proferir o voto condutor do julgamento, acompanhado por todos os demais integrantes do STF, descreveu de modo objetivo o assim chamado racismo à brasileira, entranhado em nossa sociedade de maneiras muitas vezes subreptícias, herdeiro das feridas abertas pela escravidão, nunca cicatrizadas: “O racismo no Brasil se caracteriza pela covardia. Ele não se assume e, por isso, não tem culpa nem autocrítica (Abdias do Nascimento)”. No caso da reserva de vagas em concursos públicos, a análise da legitimidade da desequiparação instituída em favor dos negros passa pela constatação da existência do chamado “racismo estrutural” (ou institucional) e das consequências que ele produz em nossa sociedade. Esse tipo de racismo não decorre necessariamente da existência de ódio racial ou de um preconceito consciente de brancos em relação aos negros. Ele constitui antes um sistema institucionalizado que, apesar de não ser explicitamente “desenhado” para discriminar, afeta, em múltiplos setores, as condições de vida, as oportunidades, a percepção de mundo e a percepção de si que pessoas, negras e brancas, adquirirão ao longo de suas vidas. (g. n.)


Ou seja, o racismo estrutural ou institucional seria algo que nem mesmo quem o possui sabe que o possui, como se fosse algo tirado de uma outra dimensão da existência, só perceptível por pessoas de elevado grau intelectual ou místico.



Nesse momento, é imperioso salientar, em especial no caso das cotas raciais apreciadas na ADI n. 7.654-DF, que essas ações afirmativas, “por tempo limitado”, podem acabar se tornando algo permanente, caso o Congresso Nacional resolva prorrogar por mais 10 (dez) anos, ou talvez por maior tempo, e assim sucessivamente.


Sem embargo, enquanto esse sistema traz polêmica e divide ainda mais o tecido social, alguns certames têm instituído um outro critério de seleção de candidatos: ser transexual ou transgênero.


Conforme a deliberação CSDP n. 400 de 2022 da Associação Paulista de Defensores Públicos do Estado de São Paulo2:


Artigo 1º. Ficam instituídas ações afirmativas nos concursos públicos de ingresso nas carreiras de Defensores/as Públicos/as e de Servidores/as com as seguintes reservas de vagas: – 30% (trinta por cento) para pessoas negras e indígenas; II – 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência; III – 2% (dois por cento) para pessoas trans



Artigo 2º. Ficam instituídas ações afirmativas nos concursos e nos processos de seleção pública de estágio as seguintes reservas de vagas: – 30% (trinta por cento) para pessoas negras e indígenas; II – 5% (cinco por cento) para pessoas com deficiência; III – 2% (dois por cento) para pessoas transIV 12,5% (doze e meio por cento) para mulheres em situação de violência doméstica e familiar



Já não fosse de duvidosa constitucionalidade a previsão de cotas para pessoas trans, o ato jurídico ainda separa vagas para mulheres em situação de violência doméstica e familiar nas disputas de estágio, como se as vítimas de outros crimes, como lesão corporal de natureza gravíssima ou tortura, não passassem por intenso sofrimento de ordem física e mental.

Ademais, o normativo eleva de 20% (vinte por cento) para 30% (trinta por cento) as cotas de pessoas negras e indígenas, aumentando a discriminação entre brasileiros ao arrepio do texto constitucional.


Conforme o site da CNN Brasil3, algumas Universidades Federais aprovaram a reserva de vagas para pessoas transexuais, travestis e transgêneros, são elas: UFBA (Universidade Federal da Bahia), UFABC (Universidade Federal do ABC), FURG (Universidade Federal do Rio Grande), UFLA (Universidade Federal de Lavras), UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), UFF (Universidade Federal Fluminense) e UnB (Universidade de Brasília).


Além de tudo, a Portaria da CAPES n. 309 de 2024, regulamenta critérios, estrutura organizacional e normas para seleção de bolsistas e o pagamento de bolsas no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), dispõe4:


Art. 13 O processo seletivo, complementarmente aos normativos internos das instituições e às exigências de qualidade previstas nos instrumentos de regulação do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Sinaes), deverá:

(…)

VIII. Estabelecer, minimamente, reserva de 25% (vinte e cinco por cento) das vagas oferecidas para candidatos negros, pardos, indígenas, e pessoas com deficiência, pessoas transgênero e travesti, utilizando-se, para a aferição dos requisitos, o disposto na legislação aplicável. (g. n.)

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Ora, ainda que as cotas raciais possam ser justificadas pela suposta “dívida histórica” (lembrando que os países colonizadores europeus não possuem cotas raciais, tampouco Portugal, de quem o Brasil era colônia, ou seja, não seria dos brasileiros a dívida histórica, mas dos portugueses), as cotas sexuais não encontram nenhuma justificativa razoável para serem implementadas.


Nessa senda, consta no artigo 1º da Constituição Francesa de 19585:


A França será uma República indivisível, laica, democrática e social. Deve assegurar a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de origem, raça ou religião. Deve respeitar todas as crenças. Deve ser organizado de forma descentralizada. Os estatutos devem promover a igualdade de acesso de mulheres e homens a cargos e cargos eletivos, bem como a cargos de responsabilidade profissional e social. (g. n.)

De seu turno, a Constituição Portuguesa de 1976 expõe o seguinte6:


Artigo 13. Princípio da igualdade

1. Todo cidadão deve possuir a mesma dignidade social e ser igual perante a lei.

2. Ninguém será privilegiado, favorecido, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever com base na ascendência, sexo, raça, língua, local de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, educação, situação econômica, situação social ou orientação sexual. (g. n.)



De outro vértice, a Constituição Espanhola de 1978 também trata do tema de forma idêntica à de seus vizinhos europeus, verbis7:


CAPÍTULO 2. Direitos e Liberdades

Seção 14

Os espanhóis são iguais perante a lei e não podem de forma alguma ser discriminados por motivo de nascimento, raça, sexo, religião, opinião ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social.



Finalmente, a Constituição Alemã de 1949, elaborada após o final da 2ª Guerra Mundial e do regime nazista, contem dispositivo que impede a volta da ideologia da “raça superior”. Eis o seus termos:


Artigo 3. [Igualdade perante a lei]

1. Todas as pessoas serão iguais perante a lei.

2. Homens e mulheres terão direitos iguais. O Estado deve promover a efetiva implementação de direitos iguais para mulheres e homens e tomar medidas para eliminar as desvantagens que agora existem.

3. Nenhuma pessoa será favorecida ou desfavorecida por causa de sexo, filiação, raça, idioma, pátria e origem, fé ou opiniões religiosas ou políticas. Nenhuma pessoa será desfavorecida por causa de deficiência. (g. n.)


Destarte, apenas a título exemplificativo, os principais países colonizadores possuem em suas constituições dispositivos que impossibilitam qualquer tratamento diferenciado baseado em raça ou orientação sexual, como consta expressamente na Constituição de Portugal.


Nesse particular, fica claro que o Brasil, sempre na contramão de nações mais civilizadas, vem instituir preferências entre brasileiros com base em critérios políticos, e não numa real necessidade coletiva.


Portanto, a reserva de vagas em concorrências públicas, salvo no que concerne aos portadores de necessidades especiais, viola o princípio da isonomia e vulnera o sistema meritório de ingresso nas instituições públicas.


Referências


Martins, Flávio. Curso de Direito Constitucional. - 6. ed. - São Paulo : SaraivaJur,

2022.









1 Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/a-inconstitucionalidade-do-sistema-de-cotas-para-negros/

2 Disponível em: https://apadep.org.br/deliberacao-csdp-no-400-de-27-de-maio-de-2022/#:~:text=Prev%C3%AA%20reservas%20de%20vagas%20para,27%20de%20agosto%20de%202021.

3 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/educacao/conheca-10-universidades-que-aprovaram-cotas-para-pessoas-trans/

4 Disponível em: https://cad.capes.gov.br/ato-administrativo-detalhar?idAtoAdmElastic=16423

5 Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97990/constituicao-da-franca-de-1958-revisao-de-2008

6 Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98103/constituicao-de-portugal-de-1976-revisada-em-2005

7 Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98127/constituicao-da-espanha-de-1978-revisada-em-2011

Sobre o autor
Celso Bruno Abdalla Tormena

Criminólogo e Mestre em Direito. Procurador Municipal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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