10-E A SUSPENSÃO CONDICIONAL DA SINDICÂNCIA?
A Suspensão Condicional da Sindicância, prevista inicialmente no artigo 267 – A, “in fine”, da Lei 10.261/68 como uma das modalidades de práticas autocompositivas e regulada pelos artigos 267 – N a 267 - P do mesmo diploma não encontra tratamento nem na Portaria DGP 2/2023 nem na Portaria CGPC 1/2023, assim como na Lei Complementar 207/79.
Dessa forma, a única prática autocompositiva aplicável à Polícia Civil é o Termo de Ajustamento de Conduta – TAC. Não existe previsão de Suspensão Condicional da Sindicância no âmbito policial civil.
Haveria aí eventual infração à isonomia ou igualdade com relação aos demais funcionários públicos?
Nosso entendimento é o de que não há violação à isonomia ou igualdade, considerando que a atividade e os cargos policiais civis são dotados de autoridade e peculiaridades que permitem justificar um tratamento mais rigoroso sob o ponto de vista administrativo – disciplinar.
11-ALGUNS ASPECTOS DESTACÁVEIS DA LEI 10.261/68 QUE NÃO FORAM MELHOR APONTADOS NO DECORRER DO TEXTO
11.1-AS FIGURAS DO FACILITADOR DE JUSTIÇA RESTAURATIVA OU MEDIADOR
No artigo 267 – B, inciso I, da Lei 10.261/68 é determinado que as sessões de autocomposição sejam conduzidas por “facilitador de justiça restaurativa” ou “mediador” devidamente capacitados, em ambiente adequado que resguarde a privacidade dos participantes e a confidencialidade de suas manifestações.
Quanto ao ambiente certamente é possível desde logo providenciar o mesmo procedimento nas unidades corregedoras.
No entanto, as normativas da Polícia Civil não preveem as figuras do “facilitador de justiça restaurativa” e do “mediador”. Tudo fica concentrado na Autoridade Policial Corregedora Presidente da Apuração Preliminar.
Infelizmente, é algo muito corriqueiro na Administração Pública que se criem funções, obrigações etc. e não sejam ofertados os meios humanos e materiais necessários para um bom desempenho.
No caso específico, concentrando-se no Delegado Corregedor todas as funções da justiça restaurativa, há que evitar simplesmente jogar o funcionário (Delegado) numa atividade para a qual não possui formação específica. Seria interessante que a Academia de Polícia do Estado de São Paulo, em suas unidades, ofertasse cursos de capacitação de técnicas de negociação e mediação voltadas para a justiça restaurativa, talvez inicialmente com obrigatoriedade para as Autoridades Policiais e demais servidores lotados nas Corregedorias e Equipes Corregedoras. Ainda numa primeira fase, seria importante incluir na grade curricular de todos os cursos de formação técnica profissional essas matérias, especificamente voltadas para a autocomposição na seara administrativa. Em fase posterior, seria importante ofertar reciclagem para todos os Delegados de Polícia que não tiveram tal formação originalmente e que podem, eventualmente, ocupar cargos correcionais.
11.2-DA VOLUNTARIEDADE E DO IMPEDIMENTO DE DANOS
O mesmo artigo 267 – B ora em destaque, agora em seu inciso II determina que a participação do funcionário nas práticas autocompositivas deverá ser “voluntária”, bem como que sua recusa não pode ser considerada em seu prejuízo.
Como já havíamos destacado linhas volvidas, exige-se “voluntariedade” do funcionário, não sendo necessária a “espontaneidade”. Por outro lado, não é possível admitir que o funcionário seja de qualquer maneira induzido ou coagido a participar de composição restaurativa. Por isso, sua recusa deve realmente ser livre, com plena ciência de que não sofrerá nenhum prejuízo em razão de sua negativa em participar de autocomposição, o que é um direito pessoal seu e não configura recalcitrância, insolência ou rebeldia.
11.3-DAS VÁRIAS ESPÉCIES DE PRÁTICAS AUTOCOMPOSITIVAS
O § 1º., do artigo 267 – B, da Lei 10.261/68 arrola as várias espécies de práticas autocompositivas aplicáveis à negociação, em rol exemplificativo.
São algumas menções casuísticas:
a)A mediação: método de autocomposição alternativo e colaborativo para a resolução de conflitos, no seio do qual as partes, com vontade autônoma, procuram identificar e solver o conflito por meio de diálogo e cooperação. Sua alternatividade, não significa que seja algo secundário, mas um caminho diferente dos mais usuais que são de caráter conflitivo. É colaborativo, na medida em que contribui de forma relevante para a redução de demandas, reservando a atuação dos órgãos ligados ao processo (judicial ou administrativo) somente para os casos irresolúveis consensualmente, seja por sua gravidade, algo grau conflitivo, complexidade ou relutância das partes. 10
b)A conciliação: é uma prática autocompositiva que se constitui da solução de conflitos por intermédio de um acerto consensual entre os envolvidos. A conciliação é uma espécie de técnica de autocomposição, que também abrange a mediação. Nesta técnica autocompositiva surge um terceiro interventor chamado de conciliador. Cabe a ele mediar e conduzir o processo e, diversamente de um mediador, pode propor às partes eventuais soluções para o conflito. Estas, por sua vez, são dotadas da faculdade, oriunda do princípio da autonomia de vontade, de discordar e não aceitar as soluções propostas pelo conciliador. 11
c)Os processos circulares: são um método de organização dialogal, reflexão e de possibilidade de estabelecimento conjunto de planos de atuação. Essa metodologia foi concebida a partir de vários princípios operativos. A principal influência para a adoção dessa metodologia foi o feitio e os preceitos reguladores das reuniões tribais de nativos norte-americanos do Canadá e dos Estados Unidos. Há nessa técnica um elemento muito destacado de comunitarismo na solução de conflitos. 12
O dispositivo comentado é encerrado, após os casuísmos, com uma fórmula genérica que lhe confere a condição de “numerus apertus”: “outras técnicas de justiça restaurativa”.
11.4-DO ENCAMINHAMENTO ALTERNATIVO OU CONCORRENTE PARA PRÁTICAS AUTOCOMPOSITIVAS
Neste ponto é importante destacar uma diferença entre o trato das técnicas autocompositivas no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo e nas normativas administrativas especiais da Polícia Civil.
A Lei 10.261/68, em seu artigo 267 – C, §§ 1º. e 2º., permite o encaminhamento para práticas autocompositivas de forma “alternativa” ou “concorrente”. Assim também, autorizam as normas enfocadas a aplicação de autocomposição em procedimentos administrativos acusatórios (com potencial punitivo disciplinar), tais como a Sindicância e o Processo Administrativo.
Já no âmbito da Polícia Civil, as regras estabelecidas pelas Portarias DGP 2/2023 e CGPC 1/2023 são bem mais restritivas.
Em primeiro lugar não há espaço para a opção de “concorrência” entre a solução consensual do TAC e o seguimento de Sindicância ou Processo Administrativo. Como já visto neste trabalho, na Polícia Civil, o TAC somente é aplicável na fase de Apuração Preliminar, portanto antecedente à Sindicância ou Processo Administrativo. Tomada a decisão de encaminhamento para a proposta de TAC, a via eleita (consensual ou conflitiva) será exclusiva, não concorrente. Ou seja, na Polícia Civil somente é admitida a via consensual de forma alternativa e nunca concorrente. Mesmo no caso de descumprimento e revogação do TAC ou de insucesso das negociações, o que acontece não é a concorrência, mas a retomada do andamento da Apuração Preliminar e a adoção, se for o caso, de procedimento punitivo disciplinar. Não existe previsão de concomitância entre TAC e Sindicância ou Processo Administrativo.
Ademais, como também já visto neste texto, não há na Polícia Civil previsão legal ou regulamentar para a “Suspensão Condicional da Sindicância”. O formato adotado pela Polícia Civil é aquele em que na fase apuratória inicial, enquanto ainda não se estabelece acusação alguma, é possível a solução consensual. Mas, quando instaurado um feito acusatório, finda a tempestividade e a adequabilidade da única técnica autocompositiva prevista (TAC).
11.5-DA INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 267 – D, § 2º., DA LEI 10.261/68 À POLÍCIA CIVIL
Consta do artigo 267 – D, § 2º., do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo, o seguinte:
“Nos casos em que o cumprimento do acordo restaurativo não ensejar a extinção da punibilidade, tal acordo deverá ser considerado pela autoridade competente para mitigação da sanção, objetivando sempre a melhor solução para o serviço público”.
Essa previsão de uma espécie de potencial atenuante no âmbito da Lei 10.261/68 para os casos de acordo restaurativo que não gere extinção de punibilidade se dá para situações em que o referido acordo foi entabulado em “concorrência” com Sindicância ou Processo Administrativo e, “ab initio”, já não ensejaria o efeito de extinção de punibilidade, ainda que devidamente cumprido.
Não se trata, obviamente, de caso de descumprimento do acordo. Nessas situações realmente a extinção de punibilidade não se operará, mas nenhum benefício pode derivar disso. É princípio geral do Direito que ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza (“nemo auditur propriam turpitudinem allegans”).
Então, é evidente que se trata de situação em que o acordo é cumprido, mas há Sindicância ou Processo Administrativo concomitante e, quando de sua decisão, o desvelo do funcionário no cumprimento do acordo deve ser levado em conta como uma espécie de atenuante.
Isso pode se transplantar para a Polícia Civil? Não, é impossível.
Como já observado, não existe possibilidade de adoção concorrente na Polícia Civil de solução consensual e conflitiva. Como o TAC somente é possível na Polícia Civil na fase de Apuração Preliminar e não havendo procedimento acusatório, após seu entabulamento só há duas hipóteses: ou é cumprido e gera extinção da punibilidade, ou é descumprido e o servidor responde pela falta no devido processo administrativo. Note-se que a única maneira em que o acordo na Polícia Civil não enseja a extinção de punibilidade, diversamente do que ocorre na Lei 10.261/68, é a hipótese de descumprimento, a qual não pode jamais gerar qualquer benefício para o agente.
11.6-DO COMETIMENTO DE NOVA FALTA FUNCIONAL DURANTE O PRAZO DE CUMPRIMENTO DO AJUSTE
O artigo 267 – L da Lei 10.261/68 estabelece que o cometimento de nova falta funcional durante o tempo de cumprimento do ajuste pode levar à revogação do TAC.
Esse regramento, a nosso entender, pode ser aplicado também para o TAC na Polícia Civil.
Quando da celebração do ajuste, há o requisito de que o compromissário não tenha sindicância ou processo disciplinar em curso (artigo 14, V, da Portaria CGPC 1/2023). Mas, uma circunstância é a de que no momento da celebração não responda o funcionário por outra falta; outra diferente é a de que após a celebração, venha então a responder por falta subsequente. Nessa situação há que observar os artigos 267 – L e 267 -E da Lei 10.261/68 em combinação com o artigo 16, I, da Portaria CGPC respectiva. Conclui-se então que é obrigação do compromissário ajustar sua conduta aos deveres e proibições previstos nas normas legais e regulamentares. Por obviedade que a reiteração em faltas funcionais é um claro e evidente indicativo de que não houve tal ajustamento, motivo mais que suficiente para a revogação do acordo.
Pode haver alegação de inconstitucionalidade com relação a esse proceder, acenando-se com a Presunção de Inocência, já que o mero cometimento, em tese, de falta funcional, ainda não apurada e punida regularmente, pode ser considerado como uma espécie de presunção de culpabilidade. No entanto, não se trata de impor penalidade ao funcionário pela falta sem o devido processo legal, mas constatar que seu envolvimento, ainda que em tese, em novas infrações não é compatível com a via alternativa do ajustamento de conduta, quando não se trata de juízo exauriente de coisa alguma.
12-CONCLUSÃO
Neste trabalho estudamos as normas regentes do Termo de Ajustamento de Conduta na Polícia Civil, enquanto metodologia de Justiça Restaurativa e Autocompositiva, mais precisamente as Portarias DGP 2/203 e CGPC 1/2023, em suas correlações com a Lei Estadual 10.261/68 e com a Lei Complementar Estadual 207/79.
A administração da Polícia Civil procedeu a um salto de eficácia e celeridade, bem como de modernização em seu âmbito disciplinar pela adoção de um novo modelo consensual de resolução de conflitos, tendo como paradigma a experiência já firmada do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo.
Não houve um transplante puro e simples das normas gerais dos funcionários estaduais para a Polícia Civil, mas uma adaptação, considerando as peculiaridades da atividade policial.
Resta agora um caminho prático a ser desenvolvido no dia a dia das atividades correcionais, objetivando em especial, os interesses do bom funcionamento da administração pública.
13-REFERÊNCIAS
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COMO fazer memória de cálculo judicial: entenda sua importância e como apresentar uma defesa efetiva. Disponível em https://www.calculojudicialonline.com.br/memoria-de-calculo-judicial
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