Recuperação judicial das fundações privadas

Exibindo página 1 de 3
20/01/2025 às 18:12
Leia nesta página:

“(...) da mesma forma leis e instituições (...) devem ser reformadas ou abolidas se são injustas.” 1 John Rawls

La tarea del jurista (...) consiste en encontrar decisiones justas de casos concretos.” 2

I – O racionalismo crítico de Sir Karl Popper

Este estudo foi inspirado na “simplicidade do realismo popperiano do senso comum”.3

Os argumentos, dos quais lanço mão, vêm do Direito Comparado e decorrem das semelhanças entre as sociedades empresárias e as fundações de direito privado sob os aspectos formal, estrutural, funcional, patrimonial, substancial e em relação ao Poder Público e da diferença entre ambas quanto ao escopo e à destinação de lucros.

As conclusões, sintetizadas ao final, são simples e sensatas, lastreadas em evidências, fruto de paciente observação, cuidadosa análise e ponderada crítica: a uma, porque é de senso comum que as fundações privadas em estado de crise econômico-financeira grave, se não “socorridas”4 desaparecerão com prejuízos às comunidades às quais servem, sobrelevando notar que a transferência do seu patrimônio, se houver, o que dificilmente ocorrerá, para outra instituição filantrópica (CC, arts. 63. e 69), não minimizará os impactos negativos de sua liquidação; a duas, porque se impõem a quem olha, a um só tempo, o que diz a (letra fria da) lei e os (desastrosos) efeitos imediatos e mediatos das decisões que indeferem o processamento de recuperação judicial de fundações privadas

O que me move não é dissertar sobre o sentido e o alcance do art. 1º da Lei nº 11.101, de 2005, - Lei de Falências e Recuperação de Empresas – LFRE, à luz dos princípios e regras de hermenêutica jurídica; não é testar a hipótese da (possível) insuficiência do método/raciocínio lógico dedutivo5 na descoberta da mens legis; não é empreender uma especulação teórica sobre as repercussões próximas e remotas do julgado, que impeça as fundações privadas de se reorganizarem e se reerguerem, mas explorar o tema com uma visão factual, consequencialista, isto é, privilegiá-lo sob um enfoque empírico, 6 ao invés da exegese literal do art. 1º da LFRE, para descobrir o “direito justo”.7

O direito é uma ciência cultural e histórica, uma ciência normativa, porque fundada em valores; não obstante, como as normas jurídicas são elaboradas, votadas, sancionadas, promulgadas e publicadas para reger atos e fatos sociais, políticos, econômicos, culturais, há aspectos e elementos que devem ser, necessariamente, considerados, porquanto essas normas, quando aplicadas, vão se transformar de “direito abstrato” (Liebman) em “direito concreto”.


II – A obsolescência 8 do art. 1º da LFRE

A substituição, empreendida pelo Código Civil de 2002, das figuras do comerciante (CCom, art. 1º) e da sociedade comercial (CCom, art. 287), clássicas desde o Código de Comércio francês de 1807 (CCom.fr, arts. 1.er. e 19), pelas do empresário (CC, art. 966) e da sociedade empresária (CC, art. 982) e da mercancia (CCom, art. 4º) e dos atos de comércio (Reg. nº 737, de 1850, art. 19, n 1 a 4, e CCom.fr, art.1.er)) pela atividade empresarial e a teoria da empresa; o desaparecimento da sociedade civil (CC de 1916, art. 16, I), a criação da sociedade simples (CC, art. 997) e a acirrada polêmica, aqui e alhures, ontem e hoje, sobre os conceitos jurídicos de sociedade empresária, ou, simplesmente empresa, e de sociedade simples repercutiram no Projeto de Código Civil – Mensagem nº 160, de 10/06/1975 -, no Código Civil em vigor e na LFRE.

Embora revista em 2020, a LFRE é antiquada no que tange ao direito de todas as pessoas físicas e jurídicas serem legitimadas a recorrer, quando se mostrar imperativo, à recuperação judicial ou extrajudicial, visando:

(a) à reorganização administrativa, econômico-financeira, operacional, de recursos humanos, de governança, de publicidade e marketing, e, por vezes do controle societário, e, ainda, até mesmo, à revisão do modelo de negócio;

(b) preservar os direitos dos sócios, postos de trabalho e credores;

(c) compor, total ou parcialmente, dívidas vencidas e vincendas,

(d) atender ao interesse público e cumprir sua função social.

A LFRE “parou no tempo” quanto ao pressuposto subjetivo da recuperação judicial devido ao arraigado conservadorismo dos operadores do direito: conservadorismo, que tem início no curso de bacharelado, cujas raízes datam do Século XIX, quando se ensinava – e continua a ser ensinado até hoje - que o direito é um conjunto sistemático de regras na esteira da concepção kelseniana, segundo o qual pouco importa se as normas são justas ou injustas, porém se são válidas ou inválidas, isto é, o que sempre deve prevalecer é o “direito posto”, o direito positivo; conservadorismo, que prossegue no exercício do magistério, da judicatura, do Ministério Público e da advocacia, porquanto as questões formais e a teoria estrutural do direito (o direito limita-se a permitir e a proibir) prevalecem sobre as questões de fundo, a teoria funcional do direito (o direito se manifesta também através de sanções positivas, ou sanções premiais de incentivos, e sanções negativas na acepção de Norberto Bobbio)9 e o realismo-pragmático (as decisões judiciais devem mirar os melhores resultados)10; conservadorismo, que culmina na elaboração de leis, repletas de “jabuticabas”, inseridas na undécima hora por um Poder Legislativo despreparado para o exercício do seu relevante mister e sujeito a grupos de pressão, o que talvez explique a crítica de Richard A. Posner: “A redação das leis é frequentemente um processo apressado e pouco cuidadoso.”11

O Poder Executivo, através de projeto de lei, e o Legislativo, por iniciativa própria, ou na qualidade de responsável pela tramitação de projetos do Executivo, ao invés de mudarem, radicalmente, a redação do art. 1º da LFRE, criaram duas exceções – gloriosas exceções e não exceções odiosas (as exceções são, em regra, odiosas) -, para reparar, timidamente, o vácuo do atual diploma falimentar.

A Lei nº 14.112/2020 incluiu o § 13, no art. 6º, da LFRE, para permitir que cooperativas médicas operadoras de planos de saúde possam recuperar-se judicialmente, havendo o Plenário do STF julgado, por 6 votos a favor e 5 contra, a constitucionalidade na tramitação do processo legislativo que deu origem à lei de 2020.

A mesma Lei nº 14.112/2020 adicionou, ao art. 48, da LFRE, os §§ 2º a 5º, que regulam a forma de comprovação do exercício de atividade rural, e o art. 70-A, que legitima o produtor rural a “apresentar plano especial de recuperação judicial” nos termos da Seção V, do Capítulo III, (arts. 70. a 72), tendo o STJ estabelecido, no Tema Repetitivo 1145, que, “ao produtor rural, que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos, é facultado requerer recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento de formalizar o pedido, independentemente de registro.”

Logo após, para atender aos consumidores, pessoas naturais, endividados, a Lei nº 14.181/2021 (Lei do Superendividamento) alterou o CDC, que passou a dispor sobre o “processo de repactuação de dívidas de consumidores pessoas naturais” (art. 104-A) e o “processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação de dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório” (art.104-B) com a finalidade de auxiliá-los na composição de suas dívidas.


III. Pressuposto subjetivo da recuperação judicial no direito comparado

À luz de modernas leis de reorganização econômico-financeira de pessoas naturais e jurídicas em estado de pré-insolvência, o seu arcaísmo12 salta aos olhos: é chocante compará-la à Lei de Falências da Espanha, Título I - “A declaração de falência”, Capítulo I - “Os pressupostos da falência”, “Art. 1. “Pressuposto subjetivo”, que estatui em uma oração clara, simples, infensa a questionamentos: “A declaração de falência abrange qualquer devedor, seja pessoa natural ou jurídica.” (art. 1º, 1.)

A - Pressuposto subjetivo no direito alemão

A Lei de Insolvência da Alemanha (InSo), promulgada em 01/01/1999, atualizada em 01/12/2001, legitima pessoas jurídicas, com ou sem personalidade jurídica, e naturais, inclusive consumidores, o espólio, a comunhão de bens e a pessoa jurídica de direito público, a postularem a declaração de insolvência, que redundará ou em recuperação ou em liquidação (art. 11).

B - Pressuposto subjetivo no direito argentino

A Lei de Concursos e Falências da Argentina (Lei nº. 24.522/199513), no art. 2º, reza que podem ser declarados em concurso as pessoas naturais (las personas de existencia visible) 14, as pessoas jurídicas de direito privado (las de existencia ideal de carácter privado) e as sociedades em que o Estado, as províncias e os municípios tenham qualquer participação

C - Pressuposto subjetivo no direito belga

O Código de Direito Econômico da Bélgica, no Livro XX, art. I.1.1º, que define a empresa como toda pessoa física que exerce de forma independente uma atividade profissional, toda pessoa moral e toda outra organização sem personalidade jurídica.

D - Pressuposto subjetivo no direito espanhol

A Lei de Concursos da Espanha (Lei nº 22/2003, atualizada pelo Real Decreto Legislativo 1/2020, de 05/05/2020), ao tratar do pressuposto subjetivo, art. 1, prima, como ressaltei, pela concisão: “A declaração de concurso abrange qualquer devedor, seja pessoa natural ou jurídica.”

E - Pressuposto subjetivo no direito francês

O Código de Comércio da França, nos títulos “prevenção das dificuldades das empresas” (art. L611-1), “procedimento de proteção” (art. L. 620-1) e “reorganização judicial” (art. L. 631-1, 2 e 3), confere legitimidade a “ qualquer pessoa que exerça uma atividade comercial ou artesanal, a qualquer agricultor, a qualquer outra pessoa física que exerça uma atividade profissional independente, incluindo uma profissão liberal sujeita a um estatuto legislativo ou regulamentar ou cujo título seja protegido, bem como a qualquer pessoa jurídica de direito privado.” para reorganizar-se judicialmente.

F - Pressuposto subjetivo no direito norte-americano

O Código de Falências dos Estados Unidos da América (11USC, art. 109) considera devedor (Who may be a debtor) tanto a pessoa física, quer quando atua pessoalmente, quer quando opera comercialmente, quanto a pessoa jurídica sob qualquer das formas previstas na legislação americana.

G - Pressuposto subjetivo no direito português

O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas de Portugal (Dec. Lei nº 53/2004, de 18/03), no art. 20, preceitua que podem ser sujeitos do processo de insolvência quaisquer pessoas coletivas ou singulares, a herança jacente, as associações sem personalidade jurídica, as comissões especiais, as sociedades civis, definindo o Código Civil, art. 157º, que são pessoas coletivas as associações, fundações e sociedades civis e comerciais.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

IV – Os beneficiários da recuperação judicial na atualidade

Hoje, nos mencionados países e em tantos outros,15 é incontável o número de pessoas físicas e jurídicas que podem valer-se desse instituto se e quando comprovado desequilíbrio econômico-financeiro que possa redundar em liquidação, repita-se, i.e., (a) Alemanha: pessoas jurídicas, com/sem personalidade jurídica, mesmo que não exerçam atividade econômica; (b) Argentina: pessoas jurídicas; (c) Bélgica: toda pessoa moral; (d) Espanha: qualquer pessoa jurídica; (e) EUA: pessoas jurídicas;16 (f) França: toda pessoa moral de direito privado; (g) Portugal: pessoas coletivas.

Entre nós, são titulares da ação de recuperação judicial: o empresário (LFRE, art. 1º); o produtor rural (LFRE, arts. 48, § 3º, e 70-A); a sociedade empresária (LFRE, art. 1º); a sociedade rural (LFRE, art. 48, § 2º); a microempresa (LFRE, art. 70); a empresa de pequeno porte (LFRE, art. 70); a empresa individual de responsabilidade limitada - EIRELI (LFRE, art. 1º); a sociedade de transporte aéreo e de infraestrutura aeronáutica (LFRE, art. 199); a cooperativa médica (LFRE, art. 6º, § 13), e, entre outras, as concessionárias de serviços públicos de telecomunicações (Oi) e de energia elétrica (Light), apesar da proibição expressa do art. 18. da Lei 12.767/12.

Nesta lista, não estão as fundações privadas: ou elas repactuam suas obrigações e equacionam suas dívidas em tormentosas composições extrajudiciais, ou são ... dissolvidas, vale dizer, extintas.17


V – As fundações privadas e os fundos patrimoniais filantrópicos

Exatamente um ano e um mês antes da promulgação da Lei nº 14.112, de 2020, que revisou a LFRE, entrou em vigor a Lei nº 13.800, de 03/01/2019, para regulamentar a constituição, organização, objeto, gestão, governança, transparência etc. dos “fundos patrimoniais filantrópicos” (FPF) (endowments), formados pelo “somatório da dotação inicial e das doações supervenientes” (art. 2º, V) de pessoas físicas e jurídicas com a finalidade de estimular o financiamento de instituições, programas e projetos de interesse público, v.g. educação, ciência e tecnologia, pesquisa e inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social, desporto, segurança pública, direitos humanos (parágrafo. único, do art. 2º).

Agora, início de 2025, tramita, no Senado Federal, o PL nº 2.440, de 2023, que pretende estender, aos FPF, isenção do imposto de renda dos ganhos de suas aplicações, para permitir, aos 74 fundos existentes, que administram mais de R$ 156 bilhões, ampliar a sua capacidade de fomentar o bem estar humano e suprir a ausência do Estado nesses campos de atividade.

Por conseguinte, na mesma época, a Lei º 13.800/2019 inovou e incentivou pessoas físicas e jurídicas a prodigalizarem recursos corpóreos e incorpóreos para a filantropia, enquanto a Lei nº 14.112/2020, por uma equivocada medida de política-legislativa, manteve vedada, proibida, sem justificativa, a reorganização judicial das fundações privadas.


VI - A disfuncionalidade da LFRE

O fato de a LFRE não contemplar as associações e sociedades sem fins lucrativos e, em particular, as fundações privadas deixa clara a falta de adequação da lei às prementes necessidades sociais da contemporaneidade.

A disfuncionalidade é gritante sobretudo em relação à fundações privadas, eis que o seu louvável escopo é servir à comunidade, amiúde a de baixa renda; desenvolver atividades nas áreas de assistência social, saúde, educação, ciência, cultura, pesquisa, meio ambiente, cujo desaparecimento causa sérios impactos sociais, áreas, frise-se, nas quais o país tem carência histórica, v.g., deficiências estruturais, dificuldade de financiamento, insuficiência de investimentos, baixa qualificação dos profissionais, desigualdade de acesso aos serviços, em especial na periferia das grandes cidades, etc. 18

Em virtude de a Lei nº 14.112/2020 só haver incluído no extenso rol dos sujeitos ativos da recuperação judicial e extrajudicial as “cooperativas médicas” não significa que não deva ser elaborado novo projeto de lei, que contemple as fundações privadas.


VII – As sociedades empresárias e as fundações privadas

Toda e qualquer pessoa jurídica de direito privado deveria ter legitimidade para dirigir-se ao Judiciário e invocar a proteção da lei, se e quando em vias de tornar-se inadimplente de obrigações civis e comerciais; contudo, entre nós, o pressuposto subjetivo da recuperação judicial não é o objeto imediato, a atividade que realiza, porém o objeto mediato, a obtenção de lucro.

Por isso, as microempresas podem beneficiar-se da LFRE; as fundações privadas, mesmo com patrimônio, receitas e despesas de vulto e atuação em todo território nacional nas importantíssimas áreas de saúde, educação, segurança alimentar e nutricional, pesquisa científica, promoção da ética, da cidadania, da democracia, dos direitos humanos (CC, art. 44, III), não! Ou seja, a microempresa, que fatura R$ 360.000,00 ao ano; emprega algumas pessoas, muitas vezes parentes; vende/presta serviços a poucos clientes, vizinhos do seu pequeno estabelecimento; registra, à mão, suas operações mercantis nos livros comerciais e contábeis, pode recorrer à LFRE (art.70).

A Fundação Getúlio Vargas, por exemplo, não pode implorar a ajuda do Judiciário, não obstante seja pessoa jurídica de direito privado, reconhecida de interesse público, formada por 4 unidades, 7 escolas e uma extensa rede de conveniados, que oferece cursos de administração, direito, economia, finanças, educação executiva, MBAs, entre outros, presenciais, customizados e a distância, em mais de 140 cidades brasileiras; mantenha 200 parcerias internacionais e mais de 90 Centros de Estudos e Pesquisas; haver sido, em 2020, classificada em 5ª. lugar entre as think tanks do mundo e considerada a 1ª. mais bem administrada pelo terceiro ano consecutivo; o alcance de sua marca ser superior a R$ 6 bilhões em valoração publicitária; ter mais de 4.6 milhões de seguidores e mais de 100.000 alunos.19

Sobre o autor
Jorge Lobo

Mestre em Direito da Empresa da UFRJ e Doutor e Livre-Docente em Direito Comercial da UERJ. Curador de Massas Falidas do MPRJ e é advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos