VIII – As fundações privadas se assemelham às empresas?
As fundações privadas, escolas e universidades de ensino, hospitais, casas de saúde, clínicas médicas e odontológicas, associações e sociedades sem fins lucrativos não são empresas, não são sociedades empresárias, quer sob o aspecto jurídico, quer econômico, quer unitário (jurídico e econômico a um só tempo).
Responder se há semelhança entre as fundações privadas e as sociedades empresárias não é tão simples,20 pois, enfatiza Jean Paillusseau, “(…) rien n’est plus déconcertant de parler d’entreprise! Les aspects de l’entreprise sont tellement nombreux, varies, complexes et importants.” 21
George Ripert é da mesma opinião, ao doutrinar sobre a “Imprecisão da noção jurídica da empresa”: “La notion d’entreprises’applique à des situations très diferentes, depuis le petit producteur travaillant seul jusqu’à la moyenne ou grande société, ou encore aux entreprises publiques ou nationalisées”, aduzindo que “(...) en droit positif, l’entreprise est partois présentée comme un objet de droit, (...) d’autres textes considèrent l’entreprise comme un sujet de droit.” 22
Asquini, profligando o esquema jurídico unitário proposto por Vivante, assevera ser a empresa um fenômeno poliédrico e que não se deve fixar um conceito jurídico da empresa, mas examinar, separadamente, os quatro perfis em que ela se apresenta: subjetivo, funcional, patrimonial e corporativo, assim retratado com maestria por Evaristo de Moraes Filho, meu mestre na FND:23 24 “(...) a) subjetivo, empresa = empresário; b) funcional ou dinâmico, empresa = atividade do empresário; c) patrimonial ou objetivo, empresa = patrimônio comercial e estabelecimento; d) corporativo, empresa = instituição."25
Carvalho de Mendonça, a propósito da definição de empresa, pontua: "(...) empresa é a organização técnico-econômica que se propõe a produzir, mediante a combinação dos diversos elementos, natureza, trabalho e capital, bens ou serviços destinados à troca (venda), com esperança de realizar lucros, correndo os riscos por conta do empresário, isto é, daquele que reúne, coordena e dirige esses elementos sob sua responsabilidade."26
Jean Paillusseau, ao abordar o tema, ressalta: “L’éntreprise n’a pas la personnalité morale, elle n’est donc pas une personne juridique. La notion même d’entreprise n’est pas une notion juridique. L’entreprise appartient au domaine des réalités économiques et sociales. L’entreprise est une notion économique et sociale complexe.” 27
A partir dos ensinamentos desses e de outros grandes mestres, é razoável dizer-se que as fundações de direito privado e as sociedades empresárias sob certos aspectos se assemelham, se equiparam.
Por serem semelhantes, análogas, afins, 28 às sociedades empresárias, as fundações privadas “merecem fazer jus” (a redundância é intencional!) aos privilégios, benefícios e vantagens de que gozam empresários, sociedades empresárias, sociedades rurais e cooperativas médicas! As fundações privadas fazem jus e têm legitimidade para pleitear recuperação judicial por extensão analógica 29 do art. 1º da LFRE, 30 pois muito se assemelham e pouco se diferenciam das empresas: muito se assemelham sob os aspectos formal, estrutural, funcional, patrimonial, substancial e em relação ao Poder Público, por terem “entre si um certo número de pontos de semelhança”; 31 distinguem-se, porém, quanto ao objeto e à destinação dos lucros.
Assemelham-se – formalmente -, porque (a) são pessoas jurídicas direito privado; (b) devem estar (i) registradas no CNPJ (Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas), no DIRF (Declaração de Imposto de Renda), no INSS (Instituto Nacional de Previdência Privada), no FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), na Secretaria Estadual da Fazenda e na Secretaria da Receita Municipal, dependendo das operações que realizam, no PPRA (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais) e no PCMSO (Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional), (ii) cadastradas no eSocial; (c) possuem livros contábeis, fiscais,32 de registro de empregados, de inventário e registro de patrimônio, de atas de reuniões dos conselhos curador e fiscal e da diretoria; (d) realizam reuniões periódicas, que são lavradas em livros de atas, para deliberar sobre assuntos pertinentes ao seu objeto institucional; (e) o estatuto é dividido em capítulos, que definem denominação, natureza, sede, prazo de duração, formação do patrimônio, finalidades, origem das receitas, administração, extinção e destinação do patrimônio.
Assemelham-se – estruturalmente -, porque têm (a) sede, onde funciona o seu centro de comando, e filiais, quando necessário; (b) estrutura hierarquizada, composta por profissionais de capacidade comprovada e ilibada reputação; (c) conselho curador; (d) diretoria com funções operacionais (cujos membros são remunerados dentro dos parâmetros do mercado (Lei nº 9.532/1997) e da regulamentação da Receita Federal), sendo-lhes facultado instalar conselho fiscal e contratar auditoria externa.
Assemelham-se – funcionalmente -, porque o conselho curador tem a atribuição de deliberar sobre o balanço patrimonial, as demonstrações financeiras e contábeis, o orçamento anual e o programa de trabalho, elaborado pela diretoria com base nos princípios da publicidade e transparência; manifestar-se sobre o planejamento estratégico, a gestão financeira e orçamentária, a política de recursos humanos e eventuais propostas de incorporação, fusão, cisão e transformação da fundação; autorizar a contratação de financiamentos, empréstimos, oneração e alienação de ativos, cujo valor ultrapasse determinado montante; fixar a remuneração dos membros da diretoria; (b) à diretoria incumbe contratar empréstimos e financiamentos; alienar, ou permutar, e onerar bens imóveis ou móveis; garantir adequada e segura gestão do capital de giro e do fluxo de caixa; revisar e aprovar o balanço patrimonial; (c) ao conselho fiscal compete controlar/fiscalizar a gestão contábil, financeira e orçamentária; pedir e examinar documentos contábeis e relatórios econômico-financeiros; emitir parecer técnico sobre as atividades institucionais e contas do exercício social; auxiliar na política de investimentos e na tomada de decisões; informar ao conselho curador, à diretoria e ao Ministério Público irregularidades/ilegalidades, cumprindo destacar que os integrantes desses órgãos devem agir com cuidado e diligência no exercício de suas funções e observar princípios e regras de governança corporativa e compliance, e não respondem pelas obrigações contraídas pelas fundações, salvo se agirem com dolo, culpa ou violação do estatuto ou da lei.
Assemelham-se – patrimonialmente -, porque possuem patrimônio social, oriundo, de início, de doação e/ou legado de ativos pelo instituidor (dinheiro, bens imóveis e móveis, títulos e valores mobiliários, direitos de propriedade intelectual), mantido e ampliado por legados e doações de pessoas físicas e jurídicas, rendimentos de aplicações e investimentos financeiros, parcerias e convênios com os setores público e privado, receitas decorrentes de suas atividades institucionais, de marcas, patentes, direitos autorais e de imagem, de convênios ou subvenções governamentais.
Assemelham-se – substancialmente -, porque as fundações privadas, tal qual as empresas, possuem patrimônio material e imaterial, geram receitas e realizam gastos e despesas, contraem obrigações e dívidas, adquirem e cedem direitos, movimentam recursos financeiros e econômicos, celebram contratos de diversas espécies com fornecedores de bens, serviços e créditos, visam produzir impacto social, atender ao interesse público, operar com eficiência e mirar resultados positivos, e, ademais, porque, não obstante as empresas visem produzir lucros e as fundações, atender às demandas de interesse público, ambas obtêm lucros: as empresas, através do exercício exitoso de suas atividades; as fundações, de ganhos de capital e de rendimentos oriundos de investimentos bem sucedidos, de locação de bens móveis e imóveis, de venda/cessão onerosa de bens e direitos ou de publicações, material técnico, dados e informações, exploração de direitos de propriedade intelectual.
Assemelham-se em relação ao Poder Público, porque (a) apresentam declarações à Receita Federal: DIRF (declaração do imposto sobre a renda retido na fonte), EDF-Contribuições (escrituração fiscal digital das contribuições), ECD (escrituração contábil digital), ECF (escrituração contábil fiscal); (b) escrituram as contribuições do PIS/Pasep, incidentes sobre a folha de salários pagos (INRFB nº 2.005, de 2021) no eSocial e declaram na DCTFWeb; (c) prestam contas aos órgãos de fiscalização, quando gozam de imunidade/isenção tributária; (d) recolhem as contribuições destinadas ao INSS e FGTS; (e) retêm o imposto de renda sobre os pagamentos realizados a título de salários, prolabore, alugueres, remuneração paga a terceiros; (f) pagam imposto de renda sobre “os rendimentos e ganhos de capital auferidos em aplicações financeiras de renda fixa ou variável” (Lei nº 9.532, de 1997, art. 15, § 2º), de alugueres (pagamento pelo carnê-leão, mensalmente), de royalties, venda de produtos etc. 33
Distinguem-se, todavia, porque o objeto das empresas é econômico; o objeto das fundações, filantrópico, isto é, “o ganho é alma das empresas”, o bem estar humano, a “alma” das fundações.34
Distinguem-se, ainda, porque, nas empresas, o lucro pode ser destinado (a) à conta de reserva legal, de reserva estatutária, de reserva de lucro; (b) para reinvestimento, contingências, compensação de prejuízos acumulados, constituição de fundo de incentivos ou de benefícios (c) ao pagamento de juros sobre capital próprio ou distribuição de dividendos; enquanto, nas fundações, o lucro é exclusivamente empregado para realização dos fins estatutários e reinvestidos nas atividades sociais, sendo-lhes vedado distribuí-los aos fundadores, administradores ou terceiros.
Distinguem-se, outrossim, porque as empresas, apurado lucro, devem recolher IRPJ, CSLL, PIS e COFINS; as fundações privadas, dedicadas a saúde, educação e assistência social, atendidos determinados requisitos (CTN, art. 14), têm imunidade tributária, que as desobrigam do recolhimento do imposto sobre a renda (CF, art. 150, VI, “c”); reconhecidas como entidades sem fins lucrativos de caráter filantrópico, recreativo, cultural ou científico (Lei nº 9.532/1997, art. 15) e atendidos determinados requisitos, podem ficar isentas do recolhimento do IPTU e do ISS por meio de lei ordinária.
Isto posto, o que – verdadeiramente - importa (e deve preocupar) não é se as fundações privadas são empresas, ou não, mas se elas, capitalizadas com lucros auferidos, doações e legados públicos e privados, programas especiais de financiamento para instituições filantrópicas e auxílio estatal através de incentivos fiscais, são econômica e financeiramente viáveis (LFRE, art. 53, II)!
As fundações não geram, porém auferem lucros, decorrentes, reitere-se, de ganhos de capital e de rendimentos oriundos de investimentos bem sucedidos, de locação de bens móveis e imóveis, de venda/cessão onerosa de bens e direitos ou de publicações, material técnico, dados e informações, exploração de direitos de propriedade intelectual etc.
Destarte, o Poder Judiciário pode – e deve - aplicar, por analogia, o art. 1º da LFRE e deferir os pedidos de recuperação judicial ajuizados por fundações de direito privado,35 como ocorreu nos pedidos formulados – e deferidos – por várias entidades sem fins lucrativos, v.g. Universidade Cândido Mendes, Grupo Metodista de Educação, Hospital Evangélico da Bahia, Fundação Comunitária Tricordiana de Educação, Organização Hélio Alonso de Educação e Cultura, Universidade de Cruz Alta, Associação Luterana do Brasil, Hospital Casa de Portugal, Rede Ulbra de Educação, Fundação Educacional do Município de Assis, Fundação Osório, Fundação São Paulo, Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais; Figueirense Futebol Clube; Associação Chapecoense de Futebol; Futebol Clube Santa Cruz; Coritiba Foot Ball Club; Guarani Futebol Clube; Cruzeiro Esporte Clube; Joinville Esporte Clube.
O deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial das fundações privadas pode embasar-se, outrossim, nos bem lançados fundamentos desses precedentes e no pragmatismo e realismo jurídicos.
IX - O positivismo e as correntes que a ele se opõem
Eméritos magistrados e juristas de escol, na interpretação do art. 1º da LFRE, são fiéis ao princípio da segurança jurídica,36 ao postulado da vinculação do juiz à lei37 e à lição de Montesquieu: “o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei.”
Essa respeitável corrente de pensamento apregoa que o juiz deve limitar-se à estrita aplicação do direito positivo, eis que “(...) o juiz, no Estado legalista, não pondera os interesses de acordo com a sua fantasia, mas vinculado às soluções dadas aos conflitos pelo legislador. Vale o princípio da fidelidade à lei,”38 porquanto “o direito é o comando do soberano” (Hobbes) e o juiz, “o oráculo do direito” (Blackstone), só estando autorizado a criar “direito” quando ele for omisso, ou expresso em palavras vagas, cláusulas gerais, conceitos jurídicos indeterminados.
Ilustres opositores asseveram que o direito, como ciência prática, é um instrumento a serviço do ideal de justiça, que o magistrado deve aplicar a norma legal em função do contexto factual e dos efeitos práticos da decisão e que os julgados devem perseguir os melhores resultados possíveis sob o aspecto da eficiência econômica e social na linha traçada pelo realismo-pragmático ou pragmatismo-realista.39
A - Positivismo jurídico
O positivismo jurídico clássico, ou dogmatismo, ou normativismo,40 argumenta que o direito é um conjunto sistemático, completo, harmônico e perfeito de conceitos, expresso em regras positivas, que interagem e se completam, sem lacunas, sem obscuridades, sem antinomias, sem contradições, razão pela qual o juiz deve ater-se à lei e analisá-la cuidadosa e metodicamente através dos elementos histórico, gramatical, lógico, sistemático e teleológico, do processo analítico-lógico-dedutivo e do princípio da subsunção.
O positivismo jurídico atual não se limita às escolas da exegese, da jurisprudência analítica e da jurisprudência conceitual, porque ele é, também, o positivismo utilitarista e descritivo de Austin; o positivismo sociológico-analítico de Hart, alvo de acirrado ataque de Ronald Dworkin;41 o positivismo, primeiro, estruturalista, depois, funcional, de Bobbio; o positivismo hartiano pré-inclusivo de David Lyons,42 o positivismo normativo de Maccormick.43
O juspositivismo é cada um deles (com certos e determinados reparos) e todos eles juntos (com as necessárias revisões/adaptações/atualizações), embora sempre haverá de existir, como em qualquer teoria das ciências humanas ou culturais, espaços a preencher, imprecisões a aclarar, dúvidas a dirimir.
Observe-se, por oportuno e a bem da verdade, que as críticas ao positivismo jurídico44 não abalaram nem os seus alicerces, nem o seu prestígio (ele permanece o método hegemônico de interpretação e aplicação da lei), nem a sua utilização diuturna e contínua pelos operadores do direito.
Não obstante, frise-se, embora predominante aqui e alhures, ontem e hoje, há situações, como sói ser a do art. 1º da LFRE, nas quais o juspositivismo acarreta indiscutível denegação de Justiça.
Até Hans Kelsen admitiria que, in casu, há negação do direito justo, se considerada sua concepção de direito justo: “O direito justo é imanente à realidade social e somente pode ser encontrado através de cuidadosa análise desta mesma realidade, e não pela análise de quaisquer leis estaduais.”45
Para o magnífico líder do movimento de “purificação do direito”, 46 direito justo é produto natural e necessário da vida do homem em sociedade (“imanente à realidade social”); exclusivamente uma “cuidadosa (isenta e responsável) análise” da “realidade” pode “encontrá-lo”, jamais “pela análise (pura e simples) de quaisquer leis estaduais”, cumprindo ressaltar, por oportuno, que, nesta passagem, ele não se afasta, muito menos nega, a essência do seu pensamento, mas o amplia/complementa, dando-lhe uma dimensão prática, como o teriam feito os realistas jurídicos.47
B – Realismo jurídico
Direito é um produto da vida do homem no mundo real, fruto de fatos sociais e históricos; ele não surge do nada, do vazio, nem é cria da legislação, de noções metafísicas, de valores transcendentes, proclamam os adeptos do realismo jurídico.
Alf Ross,48 prócer da Escola de Copenhague e integrante do realismo escandinavo, acentua que é crucial, para escorreita compreensão e aplicação do direito, eliminar os apriorismos racionalistas ou axiomáticos, concebidos pelos idealistas (o direito faz parte essencial do mundo das ideias), eis que o direito é pura e simplesmente um inquestionável fato social, que só pode ser entendido através de critérios empíricos e aplicado com apoio em considerações baseadas numa valoração da razoabilidade prática do resultado. 49
C – Pragmatismo jurídico
O pragmatismo jurídico rejeita a abordagem metafísica no campo do direito e da moral, fundamenta-se no conceito empírico e materialista da realidade e vale-se dos princípios da observação e verificação dos fatos e fenômenos sociais na esteira do neopositivismo ou neoempirismo lógicos, para entender, interpretar e aplicar o direito ao caso concreto submetido ao Judiciário.
Richard A. Posner, expoente da Universidade de Chicago e defensor do pragmatismo jurídico norte-americano, em seu Problemas de filosofia do direito, 50 critica os formalistas (positivistas e jusnaturalistas) por insistirem - contra todas as evidências - que o direito é um sistema homogêneo, completo e autônomo de ideias, basicamente um “conceito ou um grupo de conceitos”,51 que tem em mira a exatidão formal e não material,52 sem nenhuma preocupação com os efeitos teóricos e práticos, imediatos e mediatos, das decisões judiciais.
Devido aos efeitos bons ou maus, próximos ou remotos, que as decisões de sua lavra vão produzir, o juiz deve “olhar para os problemas concretamente, experimentalmente, sem ilusões, com plena consciência das limitações da razão humana”,53 “limitação da razão humana” que manteve intocada a redação do art. 1ºda LFRE, cuja aplicação literal conduzirá à derrocada as fundações privadas que vierem a enfrentar sérias dificuldades financeiras, muitas vezes provocadas pela ignóbil cupidez de credores empedernidos, os quais, obstinadamente, insistem em fazer prevalecer o seu direito de crédito, pouco lhes importando as péssimas consequências que advirão da quebra de uma instituição beneficente.