Na obra A caixa-preta da governança 1, Sandra Guerra faz profunda análise comportamental de membros dos Conselhos de Administração com o objetivo de prevenir comportamentos nocivos, aumentar a confiança para a tomada de decisão e aprimorar as práticas de governança corporativa.
Em resposta as reiteradas falhas de governança em escândalos de corrupção no Brasil e no exterior, a autora realiza um breve histórico da governança corporativa até as últimas crises corporativas, indicando os comportamentos mais deletérios nos conselhos de administração (como as relações entre conselheiros e gestores, a complexidade do processo decisório e as tensões disfuncionais entre executivos e conselheiros), os cenários de maior preocupação (governança fraca, CEO inadequado, contexto econômico desfavorável, relações com partes interessadas, movimentações societárias, gestão de riscos inadequada, corrupção) e os riscos internos e externos com potencial de maior disrupção para os negócios (como o reputacional, nos casos de fraude, má conduta, conflito de gestão, integridade e segurança de produtos).
Ao final, conclui a autora que apesar dos avanços e aprimoramentos da governança corporativa, é a dimensão comportamental que interfere na qualidade do processo decisório nas companhias, fato gerador de profundas crises corporativas.
Importa reconhecer, com todos os consectários, que a responsabilidade corporativa dos administradores (dirigentes e conselheiros) reclama compromisso com a probidade empresarial.
Para corroborar a tendência no plano normativo, registre-se a Lei n. 13.303/2016, que dispõe sobre o estatuto jurídico das empresas estatais, entre as suas normas gerais, impõe a observância obrigatória de regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno, composição da administração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção.
Corrupção empresarial
De fato, no ambiente de mercado, as possibilidades de atos de fraude e corrupção empresarial se intensificaram com o fenômeno da globalização dos mercados, marcado pelo crescimento do comércio entre os países e dos fluxos de capitais, bem como pelo desenvolvimento do mercado de capitais e da internacionalização de grandes corporações.
Com a formação de complexos sistemas de cartéis em licitações e contratos e a realização de negócios superfaturados, com informações assimétricas, abusos do poder dominante, conflitos de interesses e favores lesivos à probidade administrativa, as estruturas de direção, gestão e controle das empresas estatais mostraram-se absolutamente frágeis, ineficientes e ineficazes.
E é neste ambiente de negócios que as companhias atuam na administração de recursos estatais, na promoção de políticas públicas e na prestação de serviços sociais fundamentais, nas áreas de infraestrutura, indústria, saneamento, abastecimento de água e esgotamento sanitário, geração e fornecimento de energia elétrica, extração de recursos naturais e minerais, alimentação e serviços de saúde, bancários e financeiros, com o fim de estimular o desenvolvimento econômico e social, atraírem investimentos e aumentar a riqueza e a qualidade de vida das pessoas.
Há, pois, uma relação inseparável entre Estado e economia2, inclusive porque o “Estado se torna um fator ativo e influente na economia; se torna uma empresa, uma corporação de negócios; de um corpo político, se torna um corpo econômico”3 e, paralelamente, “o regime administrativo começa a perder sua unidade.”4 Nessa vertente, o Estado-Administração, em matéria de controle de serviços públicos e regulador das atividades, ainda permanece pouco eficiente, eficaz e efetivo em áreas econômicas de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços públicos.
Controle da gestão e governança das estatais
Para mudar esse panorama de incertezas e de graves desvios de conduta de órgãos controladores e administradores de empresas estatais, o novo paradigma de governança pública abraça a ideia de que é necessário aperfeiçoar o ambiente regulatório de controle da gestão e governança das estatais para torná-las mais resistentes e assertivas, mediante a incorporação de novas estruturas e mecanismos consistentes de controle, transparência, participação e justificação de processos decisórios a fim de prevenir práticas e condutas abusivas, e a promover a melhora de performance nos diferentes mercados em que atuam – econômico, concorrencial, monopolista, serviço público.
Dentro dessa conjuntura, as obrigações públicas de governança das empresas estatais, tal como desenhado na Constituição Federal, disciplinado na Lei nº 13.303/2016 e reforçado na Lei nº 12.846/2013 e demais legislações setoriais, devem ser elevadas a um padrão ainda mais rigoroso, em virtude da incidência dos princípios constitucionais, que se somam aos ditames societários do bom administrador5 e aos interesses sociais, públicos e coletivos, que são mais amplos e complexos do que os interesses das empresas privadas.
Desde o início das transformações do Estado, mas principalmente com a inserção dos princípios da moralidade e da eficiência no caput do artigo 37 da Constituição Federal ao lado de outros preceitos constitucionais estruturantes do direito administrativo e de sustentação do progresso da ética pública e social – do qual é exemplo a probidade na administração –, o conteúdo e a função de normas e institutos jurídico-administrativos assumem maior importância nas pesquisas jurídicas e nas práticas de gestão e governança da Administração Pública, seja ela de direito público ou de direito privado.
De fato, a relação entre direito e moralidade atravessa gerações e teóricos de diversas vertentes ao longo da história do pensamento jurídico ocidental6, possuindo grande relevância em virtude das exigências éticas contemporâneas na política, no direito e na economia com reflexos positivos nas instituições públicas e privadas.
Combate à corrupção
A importância do tema é perceptível nas obras de Hans Kelsen7, Norberto Bobbio8, Herbert Hart9 e Ronald Dworkin10, em artigos e teses recentes e na legislação, desde o constitucionalismo até o atual e sempre renovado sistema de combate à corrupção, com o aperfeiçoamento da legislação e a adoção de um novo (ou atualizado) marco regulatório de governança de empresas estatais.
Com efeito, a promulgação da Lei de Responsabilidade das Pessoas Jurídicas (Lei nº 12.846/2013 – Lei Anticorrupção) e, depois, da Lei de Responsabilidade das Estatais (Lei nº 13.303/2016 – Estatuto Jurídico das Empresas Estatais) podem ser consideradas uma resposta à corrupção, à má gestão e à ineficiência das pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da Administração Pública Indireta, decorrentes do aparelhamento político-partidário nos cargos de administração das empresas estatais, e de abusos e interferências na atuação empresarial do Estado na exploração de atividades econômicas e na prestação de serviços públicos.
Por essa razão, o marco regulatório de governança das estatais impõe a observância obrigatória dos deveres de transparência, integridade, participação, eficiência, conformidade, motivação, competitividade, equitatividade, responsabilidade, prestação de contas e sustentabilidade.
Nesse sentido, compete a regulação da governança a prevenção dos riscos de corrupção e interferência de interesses político-partidários com a contenção tempestiva de abusos e a correção de distorções entre os interesses envolvidos, de modo a garantir um ambiente limpo, competitivo e sustentável para a promoção do desenvolvimento econômico e social das companhias, do Estado e da sociedade.
Marco regulatório
Diante desse cenário, é fundamental o aperfeiçoamento e desenvolvimento do marco regulatório instituído pela Lei nº 13.303/201611 para a prevenção (e controle) da corrupção, da má gestão e da ineficiência nas estatais.
Quer dizer, almeja-se a consolidação de uma estrutura de governança de qualidade, direcionada para a implementação das obrigações públicas de governança, de tal sorte a oferecer limitações materiais às práticas corruptas, à má gestão e à ineficiência, com maior independência entre Governo e Administração, maior integridade e probidade dos gestores e partes interessadas (stakeholders) e maior transparência, com a adoção tempestiva de mecanismos e ferramentas inovadoras, eficientes e racionais de controle e participação, permitindo a integração e a cooperação para a prevenção e o tratamento dos atos de fraude e corrupção nas empresas estatais, de modo a viabilizar processos decisórios mais confiáveis e transparentes.
Nessa linha, importa adicionar ao marco normativo de governança de estatais um modelo robusto de prevenção, controle e responsabilização adequados à relevância das atividades estratégicas e à importância das funções do controlador e dos administradores em relação aos potenciais abusos políticos e aos riscos de fraude e corrupção nas companhias.
Por fim, permite-se concluir que o novo paradigma de governança exige um elevado padrão de conduta empresarial responsável dos gestores, maior diligência e cuidado no processo de tomada de decisão e ampliação da capacidade de avaliação, fundamentação, julgamento e deliberação proba e ética dos agentes de governança, no intuito de assegurar a fiel observância das regras de governança corporativa e a promoção do direito fundamental à boa administração e governança das estatais.
Referências
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. São Paulo: Forense, 2017.
BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Planalto. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13303.htm>.
DWORKIN, Ronald. Justiça para ouriços. Coimbra: Almedina, 2012.
______. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradução de: Nelson Boeira.
______. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GUERRA, Sandra. A caixa-preta da governança. 1. ed. Rio de Janeiro: Best Business, 2017.
HART, Herbert. O Conceito de Direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005. Tradução de: Armindo Ribeiro Mendes.
KELSEN, Hans. Qué es Justicia? Barcelona: Ariel, 1991.
______. Teoria pura do direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1976.
MANNORI, Luca; SORDI, Bernardo. Science of Administration and Administrative Law. In: CANALE, D.; GROSSI, P.; HOFMANN, H. (Eds.). A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: a history of the philosophy of law in the civil law world, 1600-1900. v. 9. Dordrecht: Springer, 2009. cap. 6, p. 225-261.
MATOS, Daniel Ortiz; STRECK, Lenio Luiz. Direito e moralidade em Ronald Dworkin: olhares a partir da crítica hermenêutica do direito. In: OLIVEIRA, Elton Somensi de; CORDIOLI, Leandro (Orgs.). Filosofia e Direito: um Diálogo Necessário para a Justiça, vol. 1. (recurso eletrônico). Porto Alegre: Editora Fi, 2018.
ZIMMER, Fabiano Nobre. Teoria da Probidade Empresarial: Governança corporativa e combate à corrupção nas empresas estatais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
Notas
1 GUERRA, Sandra. A caixa-preta da governança. 1. ed. Rio de Janeiro: Best Business, 2017.
2 Cf. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. São Paulo: Forense, 2017, p. 29-32, o Estado influencia a economia, sendo que a própria existência do Estado e de outros entes estatais já é um sinal de intervenção na economia, pela regulação, pela tributação, pelo atendimento de necessidades e apoio ao mercado, bem como pela prestação de serviços. Explica o autor que o mercado como instituição e interação permanente do conjunto de atores sociais, é criado, limitado, garantido e fomentado pelo Estado.
3 MANNORI, Luca; SORDI, Bernardo. Science of Administration and Administrative Law. In: CANALE, D.; GROSSI, P.; HOFMANN, H. (Eds.). A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: a history of the philosophy of law in the civil law world, 1600-1900. v. 9. Dordrecht: Springer, 2009. cap. 6, p. 258-259.
4 Ibidem, p. 258-259.
5 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. São Paulo: Forense, 2017, p. 304.
6 MATOS, Daniel Ortiz; STRECK, Lenio Luiz. Direito e moralidade em Ronald Dworkin: olhares a partir da crítica hermenêutica do direito. In: OLIVEIRA, Elton Somensi de; CORDIOLI, Leandro (Orgs.). Filosofia e Direito: um Diálogo Necessário para a Justiça, vol. 1. (recurso eletrônico). Porto Alegre: Editora Fi, 2018, p. 377-404.
7 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1976; Qué es Justicia? Barcelona: Ariel, 1991.
8 NOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Apresentação Tércio Sampaio Ferraz Junior. Brasília: Editora Polis e UnB, 1989. Tradução de: Cláudio de Cicco e Maria Celeste dos Santos.
9 HART, Herbert. O Conceito de Direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005. Tradução de: Armindo Ribeiro Mendes; Law, Liberty, and Morality. Stanford: Stanford University Press, 1963.
10 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradução de: Nelson Boeira; Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001; Justiça para ouriços. Coimbra: Almedina, 2012.
11 A Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, também conhecida como Lei de Responsabilidade das Empresas Estatais, originária do Projeto de Lei nº 555/2015 (Senado Federal) e do Projeto de Lei nº 4.918/2016 (Câmara dos Deputados), regulamentou o artigo 173, § 1º da Constituição Federal, com redação determinada pela Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, que, por sua vez, foi regulamentada em nível federal pelo Decreto nº 8.945, de 27 de dezembro de 2016.