4 A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ, A DEMOCRACIA E A CIDADANIA
A Assembleia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição Federal de 1988 durou 18 meses, a “Constituição Cidadã”, como acunhou Ulysses Guimarães, presidente da constituinte, versou que a constituição “foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança” (Guimarães, 1988). Sobre a matéria da cidadania e participação popular, Fernando Henrique Cardoso, líder do PSDB, fez o relato significativo sobre a Constituição:
Pela primeira vez na História do Brasil e talvez do mundo, se faz uma Constituição com a colaboração direta da cidadania. Recebemos milhões de assinaturas em emendas populares e o povo sentiu de perto o que é consciência dos nossos direitos; entendeu, rapidamente, que, sem liberdade, não há avanço social. (Jornal do Brasil, 23 set. 1988: 4)
A Constituição de 1988 tenta, em termos teóricos e práticos, afastar-se do período ditatorial, a fim de dirigir a sociedade a uma nova forma de organização e participação, que visa reduzir a discrepância entre o ordenamento e a realidade, institucionalizando o regime político democrático no Estado brasileiro. A Carta de 88 é pautada no respeito às garantias e direitos fundamentais, e voltada a reparar a vulnerabilidade social majoritária da sociedade brasileira, propondo a promoção da cidadania, através da redução da desigualdade e estimulando liberdade e fraternidade, o comprometimento mais significativo é nortear a sociedade e outros ordenamentos, por isso é considerada uma constituição dirigente.
No preâmbulo constitucional, “certidão de origem e legitimidade do novo texto e uma proclamação de princípios, demonstrando a ruptura com o ordenamento constitucional anterior” (Moraes, 2018, p. 52), há a consagração dos fundamentos e finalidades do Estado Democrático de Direito, expressando que o dispositivo constitucional estaria:
[...] destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...] (CF, 1988)
A cidadania possui um conceito amplo, que envolve direitos sociais e de seguridade social, não apenas direitos políticos, por isso a Carta de 1988 é bem clara quando regulamenta o Brasil como um Estado Democrático de Direito, que defende e se compromete com os direitos sociais relativos à integridade, dignidade e cidadania dos brasileiros e a ampliação dos direitos individuais e coletivos.
A Constituinte trabalhou mais de um ano na redação da Constituição, fazendo amplas consultas a especialistas e setores organizados e representativos da sociedade. Finalmente, foi promulgada a Constituição em 1988, um longo e minucioso documento em que a garantia dos direitos do cidadão era preocupação central. (Carvalho, 2021, p. 155- 156)
O ordenamento inaugura estabelecendo a cidadania como fundamento do Estado Democrático de Direito no seu primeiro artigo, ou seja, transformando-a num pilar da democracia. A plenitude do Estado Democrático passa pelo reconhecimento dos cidadãos como pessoas de direitos e deveres, isso porque, “a cidadania: representa um status e apresenta-se simultaneamente como objeto e um direito fundamental das pessoas;” (Moraes, 2018, p.53), assim, falar sobre cidadania consiste em perceber que a usufruir como um direito só é possível através da capacidade de exercê-la como um dever.
Como se pode observar, a cidadania não se restringe aos direitos políticos, como em constituições anteriores, mas a ampliação da matéria que abrange estes direitos é importante à evolução teórica da cidadania política constitucional brasileira, porque, ela deixa de ser associada exclusivamente a nacionalidade, e transforma-se na aptidão para participar da vida política, o artigo 14 simboliza essa mudança, além de estabelecer a questão do voto universal, direto e secreto, indica, as formas de exercer a soberania popular: “plebiscito, referendo e iniciativa popular” (CF, 1988), criando um ambiente no qual a liberdade de participação favorece a persecução e repúdio em relação às funções e decisões do poder legislativo, detalhe que diferencia fundamentalmente a Constituição de 88 de suas anteriores.
Convém ressaltar a conquista de ampliação da dimensão do voto e alistamento eleitoral aos analfabetos que obtiveram a possibilitar de exercer, de forma facultativa, estes direitos, o que “pôs fim a uma discriminação injustificável” (Carvalho, 2021, p. 156), mais uma medida que mostra a predisposição do ordenamento em relação à efetivação da participação. O artigo 5º da Constituição, o mais importante do ordenamento, expressa que, em respeito a pluralidade, todas pessoas são iguais perante a lei, e firma um rol de direitos, deveres e garantias, individuais e coletivos, que se comprometem com a defesa dos princípios democráticos e da humanidade da nação, concedendo “mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;” (art. 5º, § LXXI, CF, 1988).
O Mandato de Injunção é um remédio constitucional inovador, importante à materialização de direitos fundamentais que antagoniza a improdutividade das normas constitucionais, e, com isso, incentiva a cidadania, representando “uma ação constitucional de caráter civil e de procedimento especial, que visa suprir uma omissão do Poder Público, no intuito de viabilizar o exercício de um direito, uma liberdade ou uma prerrogativa prevista na Constituição Federal” (Moraes, 2018, p. 252), e que “transitada em julgado a decisão, será possível estender seus efeitos a casos análogos.” (Moraes, 2018, p. 264).
No entanto, como afirma José Murilo de Carvalho (2021, p. 161), o empecilho a cidadania brasileira é a “persistência das grandes desigualdades sociais que caracterizam o país desde a independência, para não mencionar o período colonial”, essa concentração da riqueza durante séculos, aprofundou a pobreza e a miséria no país, problemas que, segundo o autor, são essencialmente de “ordem regional e racial”.
A naturalização da violência como remédio contra grupos marginalizados, a desconfiança em relação as instituições políticas e públicas, a limitação do acesso à justiça, tanto pelo desconhecimento, quanto pela incapacidade de arcar com custos processuais, a dificuldade de acessar justiça gratuita devido à alta demanda processual, a morosidade processual decorrente da enorme quantidade de litígios, e a construção de uma sociedade hierarquizada que na definição de Carvalho (2021, p.167-168), divide a sociedade brasileira em classes de “doutores, cidadãos simples e elementos”, que possuem entre si profundas disparidades no acesso ao direito de justiça e cidadania, e denotam a grave cicatriz da subcidadania no tecido social brasileiro.
A subcidadania brasileira é naturalizada na formação histórica do país e se desenvolve com a negligência histórica constitucional, no que se refere a matéria de possuir e concretizar direitos fundamentais e sociais, por isso, tratar sobre subcidadania brasileira é também falar sobre a dificuldade de implementar o Estado Democrático de Direito, que se vê numa encruzilhada em que a efetividade da democracia depende da concretização de direitos sociais. O cidadão brasileiro excluído não se enxerga como um sujeito de direitos, e esse autodesprezo decorre da naturalização da negligência, marginalização e preconceito.
Uma dessas formas de feridas profundas parece-me a aceitação da situação de precariedade como legítima e até merecida e justa, fechando o círculo do que gostaria de chamar de naturalização da desigualdade, mesmo de uma desigualdade abissal como a da sociedade brasileira. (Souza, 2018, p. 221)
Os avanços promovidos pela Constituição de 88 são importantes e condizem com um Estado compromissado, a nível teórico, com a efetivação de um Estado de Direito, mas a desigualdade, que define quem é cidadão, e quem pode exercer cidadania, revelam a trágica construção de uma democracia frágil que possui uma sociedade afável ao autoritarismo, hierárquica, cheia de preconceitos de cor e gênero, que escolheu ignorar e perseguir escravos libertos e seus descendentes, através de políticas eugenistas, normas constitucionais e dispositivos penais discriminatórios. Transformando o país num Estado marcado pela dominação oligárquica política que exerce poder através dos séculos, e que não só inventou a desigualdade no Brasil, mas a agravou.
5 PERSPECTIVAS PARA EVOLUÇÃO DA CIDADANIA BRASILEIRA NO SÉCULO XXI
É quase impossível desvincular a crise da cidadania da democrática, suas imperfeições conversam entre si, e o desafio das democracias atuais é se manterem saudáveis, para criarem espaços de liberdade, fraternidade e igualdade em que seja possível exercer a cidadania, e consequentemente possibilite a criação de direitos, especialmente os sociais. Essa associação entre cidadania e direitos humanos é resultado da efervescência dos movimentos sociais por redemocratização e por direitos civis da segunda metade do século XX, impactados pela criação das Nações Unidas e Declaração Universal dos Direitos Humanos.
As crescentes pressões sociais por justiça material levaram à percepção de novos direitos individuais e, consequentemente, à ampliação dos significados e sentidos da cidadania, por meio das lutas por direito à moradia, à saúde e à educação básica, por exemplo. A grande inovação ficou por conta da emergência das lutas por novos direitos, que não mais se referem exclusivamente a indivíduos, abrangendo grupos, etnias, nações e a própria humanidade, por exemplo, em seu direito a um meio ambiente equilibrado, à paz ou à transmissão do patrimônio ecológico e/ou cultural às gerações futuras. (Botelho; Schwarcz, 2012, p. 16-17)
A Constituição de 1988 nasce nesse contexto de absorção dos direitos de quarta geração, em que o compromisso essencial é a reinvindicação de um constitucionalismo fundamentado na garantia de princípios e valores que valorizam a liberdade, pluralidade, justiça, equidade, solidariedade e cidadania, mas sofre com a incapacidade de adequar a realidade da histórica desigualdade e autoritarismo brasileiro com as promessas constitucionais, deixando o país numa posição delicada em que efetivar direitos sociais depende do Poder Judiciário.
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como “cultura senhorial”, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. (Chauí, 2001, p. 56)
Marilena Chauí defende que o autoritarismo histórico político se reflete nas relações sociais, e a sociedade brasileira naturaliza a dinâmica da hierarquia e arbitrariedade, transformando-se num povo que deseja mais o domínio uns sobre os outros do que a própria alforria, que relacionado à desinformação e ao pânico moral, que no entendimento de Stanley Cohen (2002, p. 46), é associado à algum medo coletivo de um suposto inimigo que “emerge para se tornar definido como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade; sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotipada pelos meios de comunicação de massa”, criam empecilhos à implementação de novos direitos sociais que aprofundam a crise de identidade e cidadania no país, que delimita a discussão atual à maniqueísmos.
O “empecilho” diz respeito à omissão dos outros poderes frente às garantias constitucionais de efetivar direitos sociais fundamentais, ocasionado por projetos políticos moralistas e fundamentalistas que “travam” o processo legislativo na matéria da criação de direitos, fazendo o Poder Judiciário assumir a responsabilidade, através do controle repressivo de constitucionalidade, de acossar as premissas constitucionais relativas à promoção de direitos fundamentais, o que acaba instaurando uma crise de identidade e cidadania na sociedade brasileira. Fomentadas pelo excesso de demanda judicial, que estagna o avanço real de direitos sociais, e que, no contexto de polarização social, cria uma expectativa negativa sobre a conquista de direitos de cidadania e confiança na democracia.
Segundo Canotilho, a omissão:
em sentido jurídico-constitucional, significa não fazer aquilo a que se estava constitucionalmente obrigado. A omissão legislativa, para ganhar significado autónomo e relevante, deve conexionar-se com uma exigência constitucional de acção, não bastando o simples dever geral de legislar para dar fundamento a uma omissão inconstitucional. (Canotilho, 2003, p. 1033)
Ao STF, “Guardião da Constituição”, cabe o controle de constitucionalidade, e poder de ajuizar “Ação Indireta de Inconstitucionalidade por Omissão” (ADO), “quando o poder público se abstém de um dever que a Constituição lhe atribuiu” (Moraes, 2028, p. 1040), seja essa omissão legislativa ou administrativa em relação à matéria dos direitos fundamentais, predisposição que está disciplinada no artigo 103, § 2º, da Constituição Federal de 1988, e regulamentada na Lei nº 9.868 que dispõe “sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.” (1999), que incorpora a Lei nº 12.063, Capítulo II-A, que “estabelece a disciplina processual da ação direta de inconstitucionalidade por omissão” (2009).
Dada a configuração geopolítica atual de avanços dos projetos autoritários que defendem restrição e retrocesso de direitos, acentuados especialmente pela “era da desinformação”, que embrutece uma sociedade que, em grande parte, já havia naturalizado parte desses discursos, pautados no medo e aversão ao outro como sujeito de direitos, existem, para além disso, muitas invertidas contra atos que simbolizam a atuação do STF como “guarda constitucional”, utilizando-se sempre do “pano de fundo” do pânico moral que revela a dicotomia entre o bem e o mal que se estabelece na discussão sobre política, democracia e cidadania na sociedade brasileira. Lógica que torna a expectativa para o desenvolvimento da cidadania no século XXI, voltada a necessidade de regulação do espaço digital, reafirmação de direitos já conquistados e busca por novos direitos.
Toda intolerância estética é reveladora de um autoritarismo do olhar, princípio de outras formas de intolerância. O autoritarismo não somente se manifesta de diversas formas, como se revela pela exigência de submissão do gosto do outro. A definição do gosto do outro como um não gosto, ou seja, a construção da opacidade de uma outra estética, é reveladora do espírito autoritário, o gérmen de um processo de castração libidinal da expressão do outro como forma de negação da própria diversidade. (Bittar, 2009, 806)
Para Clarissa Tassinari, a ascensão do Poder Judiciário remonta as memórias de cisão com o regime ditatorial, e se desenvolve num “ambiente de tensão com os demais Poderes do Estado e, por consequência, em uma crise da democracia” (2013, p. 30), em que a atuação dos outros poderes estatais entram em desacordo que:
como afirma Bolzan de Morais, tenta conjugar “uma política de inclusão (democracia social) e uma economia de exclusão (capitalismo)”. O resultado disso é a existência de uma sensação de desconforto, que, elevada à condição de insatisfação popular, causada pela ausência do cumprimento (especialmente pelo Executivo) das promessas insculpidas no texto constitucional, produz um apelo à jurisdição, que acaba por assumir ares de “sacralização”. (Tassanari, 2013, p. 30)
Apesar da previsão constitucional e ética na atuação do Judiciário, essa cultura legislativa por sua parte, possui um terrível indício a respeito da ordem democrática e do acesso a cidadania, verificando-se um caminho não natural no acesso à direitos. Isso porque, o Poder Legislativo, por exemplo, passa pela manifestação da vontade popular que configura a sua vontade o Congresso Nacional, responsável pela criação de leis a serem promulgadas, ou não, o que significa dizer que àqueles que “travam” a criação de direitos sociais, ou de alguma forma tentam retrocedê-los, tendem a manifestar a “vontade” de parte majoritária do povo.
No entanto, é possível perceber que, apesar da perspectiva de dificuldades para se estabelecer o acesso à cidadania, os avanços são perceptíveis, a existência de instituições democráticas, nacionais e internacionais, composta por membros, procedimentos e normas, comprometidos a evitar retrocessos relacionados aos direitos fundamentais, representam uma ruptura com a tradição histórica de omissão institucional e sufocamento de movimentos sociais que permitiam a flexibilização e supressão dos direitos fundamentais e, consequentemente, o fim definitivo da cidadania e democracia. Apesar da árdua realidade, existe uma estrutura rumo a uma alvorada de exercício da justiça e solidariedade que consolida a cidadania mundial.