Imagine um país onde qualquer cidadão pudesse, com um clique, acessar registros societários e fiscais de figuras públicas, revelando suas movimentações financeiras e participações empresariais. Agora, visualize o extremo oposto, onde tais informações fossem completamente opacas, impossibilitando qualquer forma de fiscalização social. Nenhum desses cenários é sustentável.
A transparência irrestrita pode expor dados sensíveis, gerar perseguições políticas e comprometer a segurança jurídica, enquanto o sigilo absoluto favorece esquemas ilícitos e mina a confiança pública. O Brasil se encontra exatamente nesse dilema: como regulamentar o acesso a informações fiscais e societárias de políticos sem comprometer direitos fundamentais e a governança pública?
Esse embate se manifesta de forma concreta na disputa entre dois órgãos centrais da administração pública: Controladoria-Geral da União (CGU) e Receita Federal do Brasil (RFB). De um lado, a CGU defende que a publicidade dos dados é essencial para o controle social e o combate à corrupção. Do outro, a RFB sustenta que a privacidade fiscal deve prevalecer, protegida por preceitos constitucionais e pelo art. 198. do Código Tributário Nacional (CTN).
A controvérsia não é meramente técnica, mas envolve um dilema filosófico profundo. Michel Foucault, em sua teoria do biopoder e da governamentalidade, alertava que a transparência irrestrita pode se tornar um mecanismo de controle e vigilância social, transformando a democracia em um grande panóptico, onde os cidadãos são constantemente expostos e monitorados. Se o acesso à informação for mal regulamentado, corremos o risco de criar uma sociedade disciplinada pela exposição excessiva, onde dados podem ser usados como ferramenta política ou para perseguições pessoais.
Por outro lado, Norberto Bobbio sustentava que a democracia moderna só pode se sustentar quando há máxima publicidade dos atos dos governantes, sendo o sigilo uma exceção e não a regra. Para ele, um governo democrático se distingue de regimes autoritários pela capacidade de prestar contas à população, o que inclui a transparência sobre os interesses empresariais e financeiros de políticos.
O tema tem sido cada vez mais debatido em diversas instâncias da administração pública e do Judiciário, levantando questões sobre os limites da publicidade de dados empresariais de agentes públicos. A tensão entre transparência e sigilo se reflete na necessidade de estabelecer critérios claros sobre quais informações devem ser acessíveis ao público e quais devem permanecer protegidas.
Esse debate não ocorre apenas no Brasil, mas reflete uma preocupação global: até onde a publicidade de informações pode ir sem violar direitos individuais? Como os governos podem garantir fiscalização de patrimônios sem comprometer a segurança jurídica dos cidadãos? O que fazer quando um dado é, ao mesmo tempo, de interesse público e de caráter privado?
O Princípio da Publicidade: O que os Clássicos Dizem?
A necessidade de transparência no poder público não é uma ideia recente. Jeremy Bentham já afirmava que “o segredo é um instrumento de conluio e opressão”. Sua visão reforça a tese de que, ao menos no que se refere a figuras públicas, a transparência empresarial pode ser um mecanismo essencial para prevenir o uso indevido de cargos políticos em benefício próprio.
No entanto, há um contraponto importante. Hannah Arendt ressalta que a privacidade é um dos pilares da liberdade política. Se não houver uma regulamentação clara sobre os limites da transparência, dados podem ser usados indevidamente para perseguições políticas e ataques direcionados, comprometendo a segurança de indivíduos e minando a estabilidade democrática.
Se de um lado a transparência é necessária para evitar abusos, de outro, sua má aplicação pode criar um ambiente de instabilidade política e judicial. Esse equilíbrio entre publicidade e privacidade precisa ser bem calibrado.
Pensadores Contemporâneos: Transparência na Era Digital
Frank Pasquale – O Risco do "Black Box Fiscal"
Frank Pasquale, professor de Direito na Universidade de Maryland e autor de The Black Box Society: The Secret Algorithms That Control Money and Information, alerta que a transparência não deve ser apenas sobre divulgar informações, mas também sobre garantir que algoritmos e sistemas fiscais sejam compreensíveis e auditáveis. Na era digital, a opacidade não está apenas na ausência de dados acessíveis, mas também no fato de que sistemas automatizados podem manipular informações de maneira invisível à sociedade.
Johann Graf Lambsdorff – Transparência como Ferramenta Anticorrupção
Johann Graf Lambsdorff, economista alemão criador do Índice de Percepção da Corrupção, argumenta que a transparência fiscal é essencial para reduzir a corrupção e fortalecer a confiança nas instituições públicas. Para ele, a publicidade de dados empresariais de agentes públicos pode servir como um mecanismo preventivo contra o desvio de recursos, pois evita que práticas ilícitas prosperem à sombra do sigilo.
OCDE e o BEPS – O Modelo de Transparência Mitigada
O projeto Base Erosion and Profit Shifting (BEPS), da OCDE, defende um modelo híbrido de transparência, onde dados fiscais relevantes sejam compartilhados entre governos e órgãos reguladores, mas sem exposição irrestrita ao público. A lógica desse modelo é permitir que órgãos de controle acessem as informações essenciais para fiscalizar ilícitos fiscais e financeiros, sem comprometer o sigilo fiscal de forma generalizada.
Modelos Internacionais: Como Outros Países Lidam com o Dilema?
O Brasil não é o único a enfrentar esse problema. Modelos internacionais demonstram que há diferentes formas de equilibrar transparência e sigilo fiscal:
Estados Unidos – O sigilo fiscal é extremamente rígido, mas há mecanismos robustos de auditoria pública e fiscalização parlamentar. O Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) impõe deveres de compliance rígidos a políticos e empresas.
Alemanha – O acesso a dados fiscais é permitido apenas a órgãos reguladores e mediante forte justificativa legal, com sigilo garantido a indivíduos.
Reino Unido – A transparência empresarial é maior, mas as informações fiscais seguem protegidas, exceto em investigações criminais e casos de interesse público.
Conclusão: O Caminho do Meio
O presente estudo propõe uma resposta inovadora a essa questão, articulando um modelo híbrido de transparência mitigada, que busca equilibrar os princípios da publicidade e do sigilo fiscal sem comprometer a eficiência estatal e a proteção dos direitos individuais. Essa proposta parte de três eixos fundamentais:
A interoperabilidade dos cadastros finalitários e multifinalitários na governança pública, garantindo que órgãos de controle e fiscalização possam acessar informações relevantes sem expô-las ao público geral de maneira indiscriminada.
O uso de inteligência artificial e automação regulatória, permitindo a identificação de padrões de risco fiscal sem necessidade de abertura irrestrita de dados sigilosos.
A implementação de uma estrutura normativa e regulatória mais refinada, que estabeleça diferentes níveis de acesso a informações fiscais, balanceando transparência e segurança institucional.
Em um mundo onde a informação se tornou um ativo estratégico, e onde as democracias precisam constantemente redefinir seus limites éticos e regulatórios, esta pesquisa não busca apenas analisar um problema, mas apresentar uma solução realista e aplicável para o Brasil do século XXI.
A transparência, portanto, não pode ser apenas um princípio abstrato, mas um mecanismo calibrado para maximizar a integridade pública sem gerar novos riscos políticos e jurídicos.