O Aborto sentimental à luz da Constituição

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13/03/2025 às 17:49
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RESUMO

Na presente monografia abordou-se o aborto sentimental à luz da Constituição. O âmago do trabalho consistiu exatamente em descobrir se a norma penal que permite à vítima de estupro a opção pelo aborto é constitucional ou afronta o direito à vida do feto. Tema deveras oportuno, vez que, em um país tão eclético como o Brasil, verdadeiras batalhas são travadas nesta área.

Para responder a esta intrigante questão foi realizada uma pesquisa eminentemente teórica. Doutrinas, jurisprudências nacionais e estrangeiras e, principalmente, as lições transmitidas pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal sobre a abrangência do direito constitucional à vida, em votos proferidos no caso das células-tronco, foram o alicerce do trabalho.

As mais variadas linhas de pensamento foram apreciadas, desde vertentes que sustentavam a inconstitucionalidade da referida forma abortiva, por afronta ao direito à vida do feto, até correntes defensoras da liberação total do aborto, para que prevaleça a irrestrita liberdade de escolha da gestante.

Em meio a tantas opiniões divergentes, era crucial a escolha de ferramentas hermenêuticas apropriadas, visando obter a interpretação que tornasse o sistema jurídico mais harmônico.

Num verdadeiro quebra-cabeça, muitos conceitos isolados foram unidos, para que, ao final, se concluísse pela constitucionalidade do aborto sentimental. Não sob o fundamento, provavelmente majoritário, de que o direito à dignidade da gestante possa prevalecer sobre o direito à vida, vez que, em momento algum da monografia, duvidou-se da precedência do direito supremo sobre qualquer outro direito. Mas alicerçado no fato de que a Constituição protege a vida intra-uterina somente de forma reflexa, uma proteção derivada da proteção à vida extra-uterina e, portanto, com status inferior, podendo assim, sucumbir diante de um direito protegido diretamente pela Constituição, qual seja, a dignidade da gestante.

Palavras – chave: Aborto, Constituição, Direito à vida, Gestante.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO...CAPÍTULO 1: O ABORTO..1.1. Conceito. 1.2. Evolução Histórica..1.2.1. O aborto entre os hebreus..1.2.2. O aborto na Grécia..1.2.3. O aborto em Roma..1.2.4. O aborto na Idade Média..1.2.5. O aborto na atualidade..1.3. O aborto no Brasil..1.3.1. Evolução histórica..1.3.2. Aborto sentimental – conceito e disposição legal..1.3.3. Aborto sentimental – a extensão da tutela legal...1.3.4. Aborto sentimental – requisitos para sua concessão..CAPITULO 2: A CONSTITUIÇÃO ..2.1. Definição..2.2. A Constituição brasileira.2.3. O principio da supremacia da Constituição..2.4. A Colisão entre direitos constitucionais - aplicação do princípio da harmonização ou da cedência recíproca..2.5. Impossibilidade de garantia de todos os direitos em colisão - precedência do direito de equivalência superior..2.5.1. Equivalência dos direitos da gestante..2.5.2. Equivalência do direito à vida do feto ou embrião..2.6. Pacto de San Jose da Costa Rica - conceito e artigos relacionados com o direito à vida.CAPITULO 3...3.1. Aborto sentimental no caso concreto – aspectos constitucionais..3.2. Direito da gestante x direito do feto.CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..


INTRODUÇÃO

O Estado tem, entre outros deveres, o de assegurar o direito de seus habitantes. Se fosse possível, um único direito sequer não deveria ser preterido. Mas, na vida em sociedade, basta alguém extrapolar o limite de seu direito para ingressar desautorizadamente na esfera do direito do outro. E isso ocorre, consciente ou inconscientemente, a todo o momento. Levando-nos a seguinte indagação: havendo conflito de direitos pertencentes a pessoas diferentes, e não podendo se efetivar o direito de ambas as pessoas, qual direito deve prevalecer e, por conseguinte, qual deve ser suprimido? É evidente, a resposta dependerá dos direitos que estiverem em conflito.

O tema de nossa obra é baseado em conflito dos mais controvertidos, sobretudo porque o Brasil é um país culturalmente eclético. E a cultura neste caso, pode ter influência decisiva, especialmente se entrarem em cena aspectos religiosos, visto que perquiriremos sobre o aborto sentimental, isto é, aquele cuja gravidez resulte de estupro.

Sabidamente, o artigo 128;II do Código Penal permite o aborto quando a gravidez seja resultante de estupro, preservando a liberdade de escolha da gestante, que pode optar em não conceber, suprimindo por conseguinte a vida do feto.

Quem (estudante de direito ou não), ao se deparar com esse conflito, não se vê num dilema? Afinal, está longe de ser tarefa simples apontar se deve prevalecer a opção da gestante - covardemente estuprada - pelo aborto, ou a vida do feto, que culpa nenhuma teve na prática do violento ato sexual.

As vítimas de estupro certamente pugnam pela permissão do aborto; os religiosos, em regra, defendem o direito supremo, porque verdadeiramente só Deus pode tirar a vida de uma pessoa. Há outros tantos grupos com as mais variadas opiniões. Mas o que para nós interessa, é descobrir o que a Constituição Federal tem a dizer sobre o aborto sentimental.

Para tanto, faremos um breve relato histórico sobre o aborto até chegar ao dispositivo do Código Penal que trata do aborto sentimental. Momento em que serão feitos alguns esclarecimentos necessários, para que, enfim, possamos ingressar bem guarnecidos em sede constitucional.

Não são muito fartos os materiais relacionados com a questão. Os doutrinadores, muitas vezes, não afirmam categoricamente qual a dimensão da tutela constitucional ao direito à vida, apenas trazendo sugestões sobre o tema. Ou, quando o fazem, não se aprofundam acerca das consequências de sua assertiva.

Material precioso, contudo, foi colhido dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no caso das células-tronco. Jamais o direito à vida fora tratado com tanta profundidade, concomitantemente, por um grupo tão seleto de juristas. Motivo pelo qual este substancioso material tornou-se o principal alicerce desse trabalho de conclusão de curso.

Mas como os votos não se referiam diretamente ao aborto sentimental e, além disso, mesmo no tocante ao direito à vida, havia divergências entre os Ministros, foi necessário organizar as ideias, de forma a tornar coerente o sistema jurídico, conforme a boa hermenêutica.

Ao final, quiçá, como quase toda matéria em direito, poder-se-á não se chegar a um juízo de convicção absoluta, porém, ao menos pistas sobre o melhor direito serão deixadas pela harmonia do sistema jurídico.


Capítulo 1 - O ABORTO

Conceito

Na sintética definição de Damásio “aborto é a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto (produto da concepção). No sentido etimológico, aborto quer dizer a privação de nascimento. Advém de ab, que significa privação, e ortus, nascimento”.

Em uma definição um pouco mais complexa, Mirabete diz que, “aborto é a interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses), ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes de sua expulsão. Não deixará de haver, no caso, aborto.”.

Toda a cautela é necessária para a definição do conceito de aborto, pois a partir de tal definição é que se incriminará ou não determinada conduta, de modo que se torna ainda mais imperiosa a adoção de critérios seguros para a delimitação da abrangência do termo constante do artigo 124 e subsequentes do Código Penal (aborto). Um erro no conceito do que seja aborto pode induzir o julgador a resultados desastrosos, invertendo completamente a lógica jurídica, seja porque condenará um inocente ou porque inocentará um culpado. Para cometer tal deslize, basta acolher a tese de que aborto é a expulsão prematura e violentamente provocada do produto da concepção, como sustentava Tardieu. Tal entendimento poderia nos levar a absolver um criminoso, não obstante ele fosse o responsável pela morte do produto da concepção, porque, como adverte Mirabete, é possível ocorrer, principalmente nos primeiros meses de gravidez, de um embrião ser dissolvido e reabsorvido pelo próprio organismo da gestante, ou mesmo sofrer um processo de mumificação ou maceração, permanecendo dentro do útero como um corpo estranho. Como se vê, em nenhum dos casos mencionados haveria a expulsão do produto da concepção de dentro do útero. Destarte, a considerar como requisito para a configuração do aborto a expulsão do embrião de dentro do ventre, ter-se-ia inexoravelmente de se considerar a hipótese supracitada como uma prática não criminosa.

Em sentido oposto, poderia ocorrer de o feto ser expulso do útero, mas, ainda assim, vir a nascer com vida, o que deveria evidentemente descaracterizar o crime de aborto, mas que, no entanto, seria impossível caso se admitisse o aborto como a simples expulsão do produto da concepção para fora do útero.

Por isso, se faz necessário grande esforço hermenêutico para que situações contingenciais como estas sejam repelidas do nosso ordenamento jurídico. Para tanto, parece-nos que as definições de Damásio e Mirabette sobre o aborto nos indicam um caminho coerente. Afinal, ambos os doutrinadores discordam da teoria acima exposta. Neste mesmo sentido Fernando Capez.

Com efeito, podemos sintetizar o conceito de aborto como a interrupção da gravidez fisiológica, com a consequente morte do produto da concepção, sendo indiferente que este seja ou não expulso do útero.

1.2 Evolução histórica

1.2.1 O aborto entre os hebreus

A prática do aborto sempre existiu entre os povos, mas nem sempre foi objeto de incriminação. Entre o povo hebreu, somente muitos anos após a lei mosaica é que a interrupção da gravidez foi considerada de fato uma prática ilícita. Até então, só era incriminado o aborto se houvesse violência à gestante, ainda que involuntária. É o que se pode concluir da leitura de Êxodo, cap.21, vers. 22. da Bíblia:

“Se homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de que aborte, porém, sem maior dano, aquele que feriu será obrigado a indenizar o que lhe exigir o marido da mulher; e pagará como os juízes lhe determinarem. Mas, se houver dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe” 1

Uma simples leitura do texto bíblico não nos deixa dúvidas de que a proteção dispensada à vida da gestante era muito maior do que a proteção conferida à vida do feto. Aquele, pois, que ferisse gravemente a gestante seria punido de acordo com o grau de gravidade de seu ato (olho por olho, dente por dente...). Embora haja opiniões em sentido contrário:

“Não há razão para limitar o dano à mãe, mas se não houver dano permanente para a mãe ou para a criança, a compensação deve ser paga ao marido, fixada por terceira pessoa. De outro modo, a penalidade é proporcional ao dano sofrido pela mulher ou pela criança, chegando a atingir a proporção de vida por vida”.2

Tal interpretação, no entanto, não encontra arrimo no texto bíblico, que diz “Se dois homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de que aborte, porém sem maior dano, aquele que feriu será obrigado a indenizar segundo o que lhe exigir o marido da mulher...”3

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De se notar que o dano a que se refere o texto bíblico, por dedução lógica, é aquele causado à gestante e não ao feto, uma vez que o texto, primeiramente, faz menção ao aborto, para, logo a seguir, dizer “porém, sem maior dano”. Ora, se já ocorreu o aborto, sendo este, sinteticamente, descrito como a interrupção da gravidez com a consequente morte do feto, nenhum dano mais é possível de acometê-lo (pois o feto já é morto), nos levando a concluir, indubitavelmente, que a Bíblia Sagrada, nesta época, protegia somente a vida da gestante, restando ao feto apenas uma proteção reflexa, resultante da proteção conferida à sua mãe.

O aborto na Grécia

A prática do aborto era muito comum na Grécia, embora contasse com o repúdio de importantes pensadores da época, como Licurgo, Sólon e Hipócrates, e algumas restrições por parte de outros filósofos, dentre os quais destacamos Aristóteles e Platão. O primeiro preconizava o aborto para manter o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência, desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma. O segundo o aconselhava a mulheres com mais de 40 anos.

Não obstante o repúdio ou a restrição da prática abortiva por pequena parcela dos grandes pensadores da Grécia, a referida prática difundiu-se por todas as camadas sociais, fazendo parte do cotidiano do povo greco daquela época.

O aborto em Roma

Inicialmente, o aborto era frequente em Roma, uma vez que o produto da concepção era considerado como extensão do corpo da gestante e não como ser autônomo. Assim, quando a mulher abortava, nada mais fazia do que dispor do próprio corpo, uma faculdade conferida pelo direito.

Posteriormente, no entanto, o aborto foi considerado uma lesão ao direito do marido à prole. Significava a destruição da esperança do pai de garantir a memória de um nome, o herdeiro de uma família e um cidadão destinado ao Estado.

Mas foi com o advento do cristianismo que se consolidou a reprovação social do aborto. Sob a sua influência, os imperadores Adriano, Constantino e Teodósio equipararam o aborto criminoso ao homicídio.

1.2.4 O aborto na Idade Média

No início da Idade Média, os teólogos discutiam sobre os exatos limites da incriminação do aborto. Santo Agostinho, fundamentado na doutrina aristotélica, sustentava ser o aborto considerado crime somente se cometido quando o feto já tivesse adquirido a alma, que julgava ocorrer 40 (para homem) e 80 dias (para mulher) após a concepção. São Basílio, diferentemente, entendia que a Vulgata (versão da Bíblia) não fazia distinção alguma, incriminando qualquer forma de aborto provocado, independentemente da idade do produto da concepção. De uma forma em geral, o aborto era incriminado desde o início da gravidez, porém a pena variava de acordo com o estágio em que se encontrava o produto da concepção. Destarte, se o feto era inanimado (não tinha adquirido alma), aplicava-se a quem cometesse o aborto a pena extraordinária, ao contrário, se o feto era animado (já tinha adquirido alma) a pena seria a de extremo suplício. Como se pode notar, para o direito canônico o que importava era a perda da alma do feto, que morria sem batismo. Por isso, caso a mulher fosse violentada e o feto ainda não tivesse adquirido alma, lhe era permitida, inclusive, a prática abortiva. Tratava-se de uma discriminante.

Na prática, os juristas repetiam, sem muitas divergências, o ensinamento dos teólogos, porém, logo, deixaram de fazer a distinção entre o feto animado e o feto inanimado, punindo o aborto em qualquer das hipóteses.

O aborto na atualidade

Se nos primórdios o aborto só era incriminado quando acarretasse algum dano à gestante, com o advento do cristianismo a criminalização do aborto adquiriu uma dimensão jamais vista, chegando a punir com morte quem interrompesse a gravidez dolosamente, ainda que se preservasse a integridade física da gestante. No século XX, a influência do pensamento cristão atingiu praticamente toda a população mundial.

Hodiernamente, a questão volta a tomar rumo diverso. Trinta e sete países já admitem livremente o aborto, sem nenhuma restrição; outros trinta e sete países impõem restrições não muito significativas à prática abortiva; e trinta e três países tratam o aborto com mais rigor, só o admitindo, em regra, quando a vida da mãe está em risco.

É notório que o número de países adeptos de uma legislação liberal sobre o aborto é crescente. Mesmo no Brasil, o rol de permissões tende a ampliar, estando na iminência de permitir o aborto em caso de feto anencefálico. Não tivesse o Brasil população evangélica e católica tão expressiva, provavelmente, já estaria engrossando a lista dos países liberais.

1.3 Aborto no Brasil

1.3.1 Evolução histórica

No Brasil, o aborto encontrou previsão legal pela primeira vez em 1830, no Código Penal do Império. Sendo que o auto - aborto e o aborto consentido pela gestante não eram incriminados.

O Código Penal da República, de 1890, ampliou a abrangência do crime de aborto, passando a incriminar o auto - aborto, embora houvesse atenuante quando a gestante praticasse o crime para esconder a própria desonra. Introduziu também a permissão ao aborto necessário, aquele praticado para salvar a vida da gestante

O Código Penal vigente pune o aborto provocado em qualquer hipótese, apenas descriminalizando o aborto necessário - quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e o aborto sentimental ou ético - quando a gravidez resulta de estupro.

1.3.2 Aborto sentimental - conceito e disposição legal

Como visto, ao longo da história, o aborto teve diversas conotações. Nos primórdios era quase irrestrita a sua prática. Sendo que, por um longo período, tal entendimento não sofreu alterações significativas. Situação que foi completamente modificada a partir da era cristã, quando se chegou ao extremo de se punir com morte quem praticasse determinadas formas abortivas. Porém, até mesmo sob os influxos da rigorosa doutrina católica era permitido o aborto quando a gravidez resultasse de estupro, desde que o feto ainda não tivesse adquirido alma. Atualmente, pouco mais de 30 países não permitem o aborto cuja gravidez resulte de violência sexual, só o admitindo em caso de risco de morte para a gestante

E são exatamente estas duas hipóteses que encontramos no texto atual do Código Penal Brasileiro: “Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.4 A primeira espécie é denominada pela doutrina de aborto necessário, uma vez que é a única forma de salvar a vida da gestante. Já sobre a segunda hipótese, não há uma classificação consensual, sendo denominada de aborto sentimental ou humanitário por Damásio. Enquanto Mirabete adota, além dessas duas classificações, a expressão aborto ético. E Cézar Roberto Bitencourt classifica de aborto humanitário ou ético.

Esta última modalidade de permissão abortiva, é que será objeto de estudo mais acurado. A qual passaremos a denominar, doravante, simplesmente, de aborto sentimental.

1.3.3 Aborto sentimental - a extensão da tutela legal

A tutela legal se estende à gestante cuja gravidez resulte de estupro. Mas, o que é estupro? Segundo a nova redação dada ao artigo 213 do Código Penal, estupro é o ato de “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou a permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Com efeito, a lei protege a mulher que foi constrangida a ter relação carnal. Termo este que pode ser definido como a relação sexual entre homem e mulher. É, assim, sinônimo de coito5. Em outras palavras, é a relação sexual, quando há penetração do pênis na vagina.

Portanto, toda mulher que for constrangida, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal, receberá a proteção legal, sendo-lhe facultado o aborto.

Outrossim, a lei protege a gestante que sofreu violência sexual diversa da conjunção carnal, permitindo a realização do aborto quando a mulher é vítima de qualquer outro ato libidinoso resultante em gravidez. Ato libidinoso é ato que visa o prazer sexual, que serve de desafogo à concupiscência, como, por exemplo, o coito anal, o coito inter femora, o sexo oral, dentre outros, a serem avaliados no caso concreto.

Há, ainda, casos em que a violência ou a grave ameaça não são requisitos para a concretização do estupro. O chamado estupro de vulnerável tem a seguinte redação: “Ter conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos. Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.6

Com efeito, se o sujeito passivo do estupro for menor de 14 anos ou pessoa que, por enfermidade mental, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, ou por qualquer outra causa não possa oferecer resistência, é irrelevante que o referido ato seja praticado mediante violência ou grave ameaça, para a tipificação do crime de estupro. Levando-nos a concluir que, basta tais pessoas serem vítimas de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, para que lhes seja facultado o aborto dito sentimental. Vale dizer, ainda que a atividade sexual tenha ocorrido com o consentimento da mulher que engravidou.

Diante do exposto, concluímos pela permissão legal do aborto sentimental às seguintes pessoas:

a) As mulheres, de 14 anos ou mais, não acometidas de enfermidade mental capaz de subtrair-lhes o discernimento, ou que não tenham sido acometidas por qualquer outra causa que lhes impeça de oferecer resistência, que, mediante violência ou grave ameaça, foram vítimas de conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal, resultando-lhe gravidez.

b) As adolescentes e crianças, menores de 14 anos, que tiveram conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso, resultando em gravidez, independentemente de as práticas sexuais terem sido realizadas mediante violência ou grave ameaça.

c) As mulheres que, por enfermidade mental, não tenham o discernimento necessário para a prática do ato, ou que por qualquer outra causa, não possam oferecer resistência, que tiveram conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, resultando em gravidez, independentemente de as práticas sexuais terem sido realizadas mediante violência ou grave ameaça.

1.3.4 Aborto sentimental- requisitos para a sua concessão

O artigo 128 do Código Penal prescreve: “não se pune o aborto praticado por médico: II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

Primeiramente cabe destacar que o aborto sentimental não punível é aquele praticado por médico. Qualquer outra pessoa que realizar o referido aborto, ainda que a gravidez seja resultante de estupro, deverá sofrer a pena correspondente a este crime, uma vez que a lei é taxativa em prever a excludente de ilicitude somente para quem está habilitado a exercer a medicina.

Além disso, é requisito para a impunibilidade do aborto o consentimento da gestante, ou, quando incapaz, do seu representante legal. Não é permitido ao próprio médico decidir sobre a continuidade ou não da gestação. Tal faculdade é exercida única e exclusivamente pela gestante ou por seu representante legal, em caso de incapacidade.

Para que o médico realize o aborto sentimental não é necessária a sentença condenatória de estupro, nem autorização judicial. Basta a comprovação do estupro por meio de inquérito policial, processo criminal, etc.

Assim, é de se notar que o médico tem ampla liberdade para formar o seu juízo de convicção acerca da existência do crime capaz de autorizar a prática abortiva.

Convém ressalvar que a natureza jurídica do aborto sentimental é objeto de discussões doutrinárias. “São causas excludentes de criminalidade, embora a redação do dispositivo pareça indicar causas de ausência de culpabilidade ou punibilidade”7. “É uma forma diferente e especial de o legislador excluir a ilicitude de uma infração penal sem dizer que não há crime... Em outros termos, o Código Penal, quando diz que não se pune o aborto, está afirmando que o aborto é lícito”8. Embora ambos os autores sustentem a inexistência de crime na hipótese de aborto sentimental, há outros doutrinadores que defendam a existência de crime, havendo exclusão apenas da punibilidade. No entanto, para avaliarmos o ponto nuclear da nossa obra, a referida distinção não é necessária, uma vez que tanto a excludente de crime quanto a excludente de punibilidade configuram uma não tutela penal no que concerne à vida do feto.

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