Capítulo 2 - A CONSTITUIÇÃO
2.1 Definição
O termo constituição apresenta abordagem plúrima e sob diversos ângulos, de modo que não é nossa intenção exaurir o tema, mas somente posicionar o leitor acerca de aspectos básicos da Lei Maior, entendimento necessário para a compreensão da nossa obra.
Proveniente do verbo constituir, constituição traz a ideia de estrutura, parte essencial. Assim, nos referimos à constituição de uma cadeira, à constituição de uma mesa, à constituição de um Estado. Esta última definida pelo ilustre constitucionalista José Afonso da Silva como:
“Considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as suas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado” 9
Na verdade, este trecho define constituição em seu sentido material, ou seja, quais são os elementos indispensáveis à estrutura do Estado. Porém, há muitas normas colocadas no texto constitucional, sem, contudo, fazer parte dessa estrutura mínima, sendo por isso, classificadas de normas formalmente constitucionais. Este grupo, juntamente às normas materialmente constitucionais, formará a constituição em seu sentido formal, cuja posição hierárquica é superior a das demais normas. Com efeito, uma vez insertas no texto constitucional, a distinção entre normas formalmente e materialmente constitucionais é irrelevante para a apuração de seu patamar hierárquico, posto que ambas as espécies devam ser igualmente respeitadas como Lei Maior, condicionando todo ordenamento jurídico infraconstitucional.
2.2 A constituição brasileira - características
Embora não haja consenso entre os doutrinadores no que se refere à classificação das diversas formas de constituição, traremos à baila as características mais importantes da constituição brasileira, com o intuito tão-somente de preparar o leitor para melhor compreensão dos textos subsequentes, sem, contudo, ter a pretensão de adentrar o mérito das referidas classificações, uma vez que tal discussão não interessa à elucidação do tema por nós proposto.
Podemos classificar a constituição brasileira da seguinte forma:
Quanto à origem, nossa constituição é promulgada ou votada, ou seja, é fruto de um processo democrático e elaborada por um Poder Constituinte exercido por uma Assembléia Nacional Constituinte. Diferentemente da constituição outorgada, que é decorrente de um ato autoritário, imposto pelo governante.
Quanto à mutabilidade - é rígida - para a modificação de nossa constituição é necessário um processo mais solene e rígido do que o processo exigido para a lei ordinária. Isso é notado pelo fato de que, para esta última espécie normativa, a iniciativa é geral e a aprovação depende de maioria simples, enquanto que, para a modificação da constituição através de emendas, há um grupo restrito de pessoas legitimadas para dar início ao processo e a sua aprovação depende de maioria qualificada de três quintos. Percebe-se, portanto, a maior dificuldade de se modificar a constituição do que uma lei ordinária. Motivo este que compeliu os doutrinadores a classificar a nossa constituição, quanto à sua mutabilidade, como constituição rígida.
Quanto à forma - é escrita ou dogmática - como predominante na maioria dos países, a constituição brasileira é assim classificada por ter um texto completo e organizado, diferentemente das constituições costumeiras ou históricas, formadas por textos esparsos, alicerçadas em costumes derivados de decisões anteriores.
Quanto à sistemática – reduzida - porque a nossa constituição é compilada em um único código, sistematizado e não em textos espalhados.
Quanto à ideologia – eclética - porque baseada em diversas ideologias. Diferentemente da constituição soviética, que encontra alicerce no comunismo.
A elaboração do texto constitucional é obra do Poder Constituinte. Este, em um Estado democrático, como o Brasil, é composto por representantes do povo, nos levando à conclusão lógica de que a titularidade do Poder Constituinte, dito originário, pertence ao próprio povo. Em outras palavras, os cidadãos elegem seus representantes para que eles formalizem a estrutura estatal, isto é, promulguem a constituição. Sendo, portanto, a nossa Lei Maior, em última análise, fruto da vontade do povo.
2.3 O princípio da supremacia da Constituição
Significa que a Constituição situa-se no mais elevado patamar hierárquico de nosso sistema normativo, é fonte legitimadora de todo ordenamento jurídico. Disso decorrem algumas consequências inarredáveis: a) revogação de todas as normas anteriores com ela incompatíveis; b) nulidade de todas as normas introduzidas que desrespeitarem os seus preceitos; c) imposição ao intérprete que, dentre as diversas formas de interpretação possíveis, escolha aquela que se adapte ao texto constitucional.
O entendimento desse princípio é de suma importância para iniciarmos a interpretação dos textos que interessam à elucidação do nosso trabalho ,principalmente porque o objeto principal da monografia é o artigo 128, II do Código Penal, uma norma infraconstitucional, não podendo, portanto, ser aplicada, em caso de incompatibilidade com a Constituição.
2.4 A Colisão entre direitos constitucionais - aplicação do princípio da harmonização ou da cedência recíproca
Como dito, qualquer norma infraconstitucional antagônica à Constituição não deve ser aplicada, como consequência lógica de que a norma superior deve prevalecer sobre a inferior. Esta questão não suscita grandes questionamentos. Talvez a maior dificuldade resida em constatar que de fato a norma infraconstitucional está em desacordo com a Constituição, porque, em alguns casos, a incompatibilidade não é tão notória. No entanto, uma vez identificada a inconstitucionalidade de tal norma, não resta dúvida de que ela deve ser revogada.
Questão mais complexa ocorre quando ambas as normas em conflito estão esculpidas no texto constitucional, ou seja, há uma colisão de direitos que, em princípio, se encontram no mesmo patamar hierárquico. Como resolver esta questão? Qual deles deve prevalecer?
O princípio da harmonização ou da cedência recíproca deve ser invocado justamente nestas situações. Preconiza que o intérprete deve harmonizar os direitos em conflito, evitando, destarte, que a aplicação de um implique na supressão de outro. Para tanto, deve haver uma cedência recíproca de cada um destes direitos em colisão. Prefere-se a aplicação parcial de cada direito à aplicação integral de apenas um deles.
Portanto, ao se deparar com uma hipótese de colisão de direitos constitucionais, o primeiro exercício a ser realizado pelo hermeneuta é a tentativa de compatibilizá-los, ainda que para isso somente seja possível a aplicação parcial de cada um dos direitos em conflito.
2.5 Impossibilidade de garantia de todos os direitos em colisão - precedência do direito de equivalência superior.
É evidente que todos os direitos previstos na Constituição devem ser preservados. No entanto, não muito raramente, como dissemos, é impossível o exercício integral desses direitos, porquanto colidentes. É muito comum escutarmos o jargão: “O seu direito termina quando começa o meu”. Ocorre que, na vida em comunidade, invariavelmente, se verá este conflito de direitos, muitas vezes com linhas limítrofes de difícil identificação, mas que devem ser reconhecidas para a conservação de ambos os direitos. Citamos como exemplo o artigo 220 da Constituição, que garante o direito de informação jornalística, pressuposto para a real democracia, mas que, no entanto, também encontra limites. Neste sentido, a decisão do Tribunal do Rio de Janeiro: “Dano moral – Indenização - órgão da imprensa que, publicando notícia verdadeira, o faz de forma insidiosa e abusiva, dando-lhe entornos de escândalo – Inadmissibilidade - Verba devida”. Observe-se que o direito de informação jornalística, em alguns casos, inevitavelmente, atinge outros direitos, prevalecendo contra muitos deles, haja vista a sua importância para a democracia, o que não importa dizer, porém, que ele não encontra limite. Na decisão acima exposta era permitida a notícia sobre determinada pessoa, não obstante esta afetasse a sua honra, mas extrapolou-se o limite do direito de informação jornalística a partir do momento em que tal informação foi transmitida de forma insidiosa, abusiva.
Infelizmente, em casos específicos, não é possível garantir nem ao menos parcialmente a aplicação de um dos direitos em colisão, uma vez que a proteção a um direito implicará necessariamente na supressão do outro. Neste caso, qual deles deve prevalecer? A resposta é óbvia: o direito mais forte. Neste sentido, o pronunciamento do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo: “No cotejo entre o direito à honra e o direito de informar, temos que, este último prepondera sobre o primeiro...”
Vale destacar que, nesta árdua tarefa de se resguardar o direito mais forte, nem sempre é fácil aquilatar o grau de importância dos direitos conflitantes, podendo haver, no caso concreto, divergência acerca de qual direito deve prevalecer. Afinal, o que é mais importante, o direito de informação jornalística ou o direito de privacidade? A liberdade de crença religiosa ou o princípio da isonomia? No mais das vezes, a solução sempre será controvertida, visto que, de uma forma geral, há certa equivalência entre os direitos constitucionais, exceto quando estiver em análise o direito supremo à vida, pressuposto necessário para a existência dos demais direitos. O acórdão a seguir foi reflexo da colisão entre o direito à liberdade de religião e do direito à vida.
“A restrição à liberdade de crença religiosa encontra amparo no princípio da proporcionalidade, porquanto ela é adequada a preservar a saúde da autora: é necessária porque em face do risco de vida, a transfusão de sangue torna-se exigível e, por fim ponderando-se entre vida e liberdade de crença, pesa mais o direito à vida...”10
O direito à vida é tão abrangente que o legislador constitucional proibiu a pena de morte, salvo no caso de guerra declarada, (Constituição Federal artigo 5°, XLVII), não obstante, em alguns casos, isto venha a consubstanciar a prevalência de um direito individual (à vida) sobre um direito coletivo (à segurança). Basta nos atentarmos para as orientações psiquiátricas afirmando a incurabilidade de um psicopata, o que o levará, indubitavelmente, a praticar novos crimes quando estiver livre. Mesmo assim, não se permite seja a sua vida abreviada pela pena de morte, o que, em tese, seria de interesse coletivo. A única permissão de pena de morte ocorre em caso de guerra declarada. Aqui sim se atentou para o interesse da coletividade, pois se imaginou que um crime dessa natureza poderia colocar em risco a soberania da nossa nação, a vida do povo brasileiro.
É necessário, contudo, fazer uma observação. Segundo o ilustre constitucionalista José Afonso da Silva, a vida: “no conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência”. É exatamente do direito à existência a que nos referimos como sendo preferencial a todos os outros direitos. Não é preciso muito esforço de raciocínio para se chegar a essa conclusão. Imaginemos que o Brasil viesse a ter uma população incompatível com a sua capacidade territorial, afetando, dessa forma, uma vida digna. Não poderíamos, a pretexto de garantir uma vida digna para alguns, suprimir a vida de outros. No conflito vida digna x vida-existência, ninguém está autorizado a preferir a primeira. Na verdade, tal assertiva é percebida no comportamento das pessoas. Quantos presos não vivem em condições subumanas, sem que isso cause grande clamor por parte da população? Agora, imagine se em vez de não terem uma vida digna, os enclausurados não tivessem uma vida-existência, ou seja, tivessem as suas vidas ceifadas. É claro que por todos os cantos do país haveria brados de indignação, além, é claro, de inúmeras ações arguindo a inconstitucionalidade da medida letal.
Precisamos, ainda, trazer a lume questões que parecem sugerir interpretação diversa da expendida, podendo atormentar os estudiosos do direito.
Há inúmeras decisões permitindo que o enfermo, por opção religiosa, não seja obrigado a submeter-se a transfusão de sangue, não obstante tal recusa implique na sua morte.
O juiz Renato Luís Dresch, da 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte/MG, nos autos do processo 024.08.997938-9, indeferiu um pedido de alvará feito pelo Hospital Odilon Behrens, que pediu autorização para fazer uma transfusão de sangue em uma paciente que pertencia à religião Testemunhas de Jeová. A paciente, por motivos religiosos, não aceitava a transfusão, mesmo ciente do risco de vida que corria. Após passar por uma cirurgia, a paciente apresentava queda progressiva dos níveis de hemoglobina.
O magistrado assinalou que as autoridades públicas e o médico têm o poder e o dever de salvar a vida do paciente, desde que ela autorize ou não tenha condições de manifestar oposição. ‘Entretanto’, salientou, ‘estando a paciente consciente, e apresentando de forma lúcida a recusa, não pode o Estado impor-lhe obediência, já que isso poderia violar o seu estado de consciência e a própria dignidade da pessoa humana’11
Até mesmo em outros países encontramos decisões semelhantes.
ESTADOS UNIDOS
“Caso Brooks - Devido a uma úlcera, paciente Testemunha de Jeová solicitou atendimento médico. Por repetidas vezes, alertou aomédico de sua negativa em receber tratamento com sangue, inclusive firmando um documento de exoneração da responsabilidade do profissional. O médico, sem informar previamente à paciente, transfundiu sangue. Levado o caso à via judicial, o Tribunal de Apelação do Estado de Ilinois afirmou que a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos protege o direito de cada indivíduo à liberdade de sua crença religiosa e seu respectivo exercício. Aduziu-se que a ação governamental só poderia embaraçar tal direito quando estivesse em perigo, clara e atualmente, a saúde, o bem-estar ou a moral pública.
Esta foi a primeira decisão de uma corte de apelação nos Estados Unidos em que se reconheceu o direito de um paciente da religião Testemunhas de Jeová a recusar transfusões de sangue não desejadas.”1
Constata-se que o médico americano tinha o entendimento de que o direito à vida ou à integridade física deveria prevalecer ante ao direito de religião. Por isso, transfundiu o sangue do paciente mesmo contra a sua vontade. No entanto, o Tribunal de Apelação, em sentido oposto, não aderiu a esse entendimento. Segundo os magistrados da Corte Americana, a Constituição garante o direito de religião a cada pessoa, direito este que somente poderia ser obstado se estivesse em jogo um interesse coletivo. Com efeito, poderia o paciente optar entre o seu direito de religião ou o direito à vida ou à integridade física.
CANADÀ
“Caso Mallete v. Schulman (Ontario Court of Appeal, 72 O.R 2d 417, 1989) – Em consequência de um acidente automobilístico, uma Testemunha de Jeová sofreu graves ferimentos. Na sala de emergência do hospital foi encontrada uma diretriz médica, por ela firmada, de que não aceitaria tratamento médico à base de sangue, mesmo que em situação de emergência. O médico do turno, de forma deliberada, ignorou tal manifestação de vontade, transfundindo sangue no paciente. A filha adulta da paciente havia objetado energicamente a tal transfusão de sangue, mas mesmo assim o médico não se furtou de fazê-la. Quando a paciente se recuperou, demandou o médico por administrar-lhe sangue sem o seu consentimento. A Corte resolveu o caso em favor da paciente, condenando-lhe ao pagamento de vinte mil dólares canadenses pelos danos ocasionados.
O médico apelou da decisão, mas o Tribunal de Apelação de Ontário rechaçou seus argumentos, reafirmando o direito de o paciente decidir a respeito do seu próprio corpo: ‘Um adulto capaz geralmente tem o direito de recusar um tratamento específico ou qualquer tratamento, ou de selecionar uma forma alternativa de tratamento, ainda que essa decisão possa acarretar consigo riscos tão sérios como a morte ou possa parecer equivocada aos olhos da profissão médica ou da comunidade. Independentemente da opinião do médico, é o paciente quem tem a palavra final quanto a submeter-se a tratamento”.12
Nesta decisão, igualmente, o médico contrariou a opção religiosa do paciente para proteger a sua vida (vida do paciente). No entanto, foi condenado a pagar indenização, uma vez que, segundo os magistrados canadenses, competia ao próprio paciente decidir sobre o seu corpo. Sendo esta liberdade de escolha ou de autodeterminação direito supremo, não obstante estivesse em risco a sua própria vida.
Chile
“No ano de 1996, foi rejeitado o ‘Recurso de Protección Rol n.º 805-96’ na Corte de Apelações de Santiago. Com o recurso, o Hospital San José pretendia transfundir sangue contra a vontade do paciente, com o argumento que a vida era um bem superior. Ficou decidido de maneira sucinta, mas profunda, que ‘ninguém pode ser forçado a defender seu próprio direito’”13
Com teor semelhante ao das decisões anteriores, a Corte chilena repudiou a atitude do médico em desrespeitar a liberdade de escolha do paciente, ainda que o intuito fosse de proteger a sua vida (vida do paciente).
Em todas decisões demonstradas permitiu-se a escolha do paciente em não querer submeter-se à transfusão de sangue, não obstante esta opção pudesse lhe custar a própria vida. Quais os direitos do enfermo invocados para sustentar que a sua escolha prevalecesse ante ao direito à vida? Na decisão da Corte norte-americana observa-se a menção feita ao direito de religião. Já na Corte canadense, a condenação à indenização por danos morais do médico que submeteu o paciente à transfusão de sangue contra a sua vontade, fundamentou-se na liberdade de escolha do enfermo, no seu direito à autodeterminação, que, na verdade, é gênero, do qual o direito de religião é espécie. Em decisão semelhante, os magistrados chilenos disseram que “ninguém pode ser obrigado a defender o seu próprio direito”. E a decisão que de fato nos interessa - a do douto juiz de Belo Horizonte - alicerçou a sua sentença na dignidade da pessoa humana.
Indubitavelmente, nestas decisões supracitadas, o direito à dignidade ou liberdade (autodeterminação), que inclui o direito de religião, preponderou sobre o direito à vida. E, como veremos adiante, o conteúdo da dignidade da pessoa humana de alguma forma se identifica com a liberdade (autodeterminação).
Vejamos o status conferido por alguns juristas à dignidade da pessoa humana:
“Mesmo o direito fundamental à vida não é absoluto, encontrando limites no princípio da dignidade da pessoa humana, que, afinal, é o alicerce de todo e qualquer direito. Note-se que é a dignidade da pessoa humana – e não a vida - um dos fundamentos da República (CF/88, art. 1º, inciso III”).14
Pelos textos transcritos pode-se ter a impressão de que o direito à vida não tem importância suprema, que, em tese, parece tão óbvia, por ser o direito do qual derivam todos os demais. Deveras não é bem assim, senão vejamos. Primeiramente, como já demonstramos, há decisões em sentido contrário, entendendo que o direito à vida deve prevalecer ante ao direito de religião, autodeterminação, etc. Um exemplo já foi por nós citado quando o magistrado conferiu ao médico a possibilidade da transfusão sanguínea contra a vontade do paciente, afrontado a sua crença religiosa, porque entendeu que o direito à vida é preponderante sobre o direito de religião. Poder-se-ia encontrar incontáveis decisões com semelhante teor. Da mesma forma que demonstramos interpretações divergentes. No entanto, não modificaria o raciocínio subsequente.
Ocorre que em todas as hipóteses onde se defendeu a prevalência do direito à dignidade, à autodeterminação, à liberdade de religião sobre o direito à vida, o conflito entre tais direitos se restringia a um único sujeito, ou seja, estava em questão qual dos direitos a que fazia jus determinado sujeito deveria preponderar, se o direito à dignidade, à autodeterminação, à liberdade de religião ou o direito à vida. Nesta hipótese, embora haja grande dissídio jurisprudencial, poder-se-á entender o motivo que compele o intérprete a preterir o direito à vida. Afinal, não se pode olvidar da importância da religião para algumas pessoas:
“Enfim, a religião, e notadamente as grandes religiões monoteístas, como as seitas que delas derivam, exercem sobre o crente uma possessão (emprise) total. Na medida em que elas lhe fornecem uma explicação global do seu destino, elas ditam seus comportamentos individuais e sociais, modelam o seu pensamento e sua ação. Porque afirmam a prioridade da ordem sobrenatural sobre toda ordem humana, conduzem cada crente consequente consigo mesmo a preferir, em caso de conflito entre o poder do Estado e os imperativos de sua fé, a obediência à regra mais alta.”1
Se questões concernentes à mente da pessoa são até hoje objeto de grande discussão científica, havendo dificuldade em se definir, no caso concreto, se uma pessoa é inimputável, semi-imputável etc., imagine questões que estão acima da ciência, como as crenças religiosas. De fato seria muita pretensão alguém querer aquilatar a importância da religião para determinada pessoa. Com muita propriedade a indagação a seguir:
“A pergunta que se faz é a seguinte: adianta viver sem dignidade ou com a dignidade profundamente ultrajada? Se a própria pessoa prefere a morte é porque o desrespeito às suas convicções espirituais configura uma morte pior: a morte de seu espírito, de sua moral.”15
Diante das inúmeras consequências sofridas pela pessoa que tem o seu direito de religião lesado, surgem inexoravelmente as seguintes indagações: Se Deus é a vida da pessoa, restringir a possibilidade de obedecer a Sua vontade (vontade de Deus), não seria pior do que tirar-lhe a própria vida (uma vez que o divino se relaciona com a vida eterna)? Não pode o sujeito tomar decisões que lhe ache benéficas (ainda que no plano espiritual), se tais decisões não prejudicarem a terceiros?
Neste sentido pugnam os doutrinadores que acabam por preterir o direito à vida. E, diga-se de passagem, não se pode negar a coerência de tal raciocínio. Por que não permitir que o sujeito se prive de receber sangue, se mal nenhum causará à sociedade? Poder-se-ia arguir que o direito à vida, esculpido no texto constitucional, não permite a recusa de sangue diante do iminente risco de morte. Mas como salientamos, há inúmeros doutrinadores que colocam no mesmo patamar hierárquico a vida e a dignidade da pessoa humana. Aliás, o conteúdo do direito à vida, para tais doutrinadores, inclui a dignidade. E esta, por sua vez, se identifica com a autodeterminação. Assim sendo, não poderia a pessoa preferir a sua dignidade (escolha do caminho religioso a seguir) à sua vida? A não permissão à referida escolha não seria o mesmo que matar espiritualmente o religioso? Seria muita pretensão outra pessoa que não a própria envolvida dimensionar o valor da religião que ela professa.
Pelos motivos expostos, não há dúvidas de que o conflito entre direitos, ainda que um deles seja o direito à vida, está longe de encontrar solução pacífica, porquanto há argumentos sólidos para a defesa de qualquer corrente.
Porém, neste instante, se faz necessário laborioso esforço de raciocínio para não confundir as conclusões alcançadas até então. Como destacamos, no conflito entre a dignidade da pessoa humana (que engloba o direito à autodeterminação, direito de religião) e o direito à vida, quiçá, poder-se-á dar prevalência ao primeiro, dependendo da interpretação acolhida. No entanto, tal possibilidade só poderá ser cogitada quando o conflito de direitos se restringir a uma única pessoa, ou seja, um único sujeito tem o direito, por exemplo, de escolher entre a sua crença ou a sua vida. Tal raciocínio é, como enfatizamos, perfeitamente compreensível, mas pode levar a um erro crasso se estendido aos casos em que o conflito extrapola a esfera individual, isto é, quando aplicado na hipótese de colisão de direitos de duas ou mais pessoas. Nas próprias decisões que asseguraram o direito do paciente em recusar a transfusão de sangue, não obstante houvesse risco para a sua vida, podemos notar as ressalvas. A Corte americana preconiza que o direito à liberdade de religião somente poderia ser restringido se tivesse em risco a saúde, o bem- estar ou a moral pública, evidenciando a possibilidade de escolha entre os direitos colidentes (escolhendo aquele que, em tese é o de menor equivalência) somente quando tais direitos pertencessem ao mesmo indivíduo. É que se por um lado pode-se quem sabe admitir um certo grau de subjetivismo quando os direitos colidentes pertencem ao mesmo sujeito, conferindo ao possuidor do direito dimensionar o que é mais importante para ele; quando os direitos colidentes pertencem a pessoas distintas, deve-se ter mais objetividade na aferição dos valores em conflito, não podendo tal aferição ficar ao alvedrio dos sujeitos envolvidos, porque, evidentemente, cada um valorizará mais o seu interesse.
Portanto, neste caso, saímos daquilo que é conceito individual ou de um grupo pequeno de pessoas para prestigiar um conceito mais abrangente, que se aproxime de uma lógica universal. Em um país laico como o Brasil (cuja Constituição é eclética, como vimos), não há como se estabelecer precedência de conceitos religiosos, por exemplo, porquanto direitos desta natureza são muito pessoais. Com efeito, não se nega que a um religioso a sua crença possa ser mais importante do que a sua própria vida, mas quando contraposto ao direito de outrem, o direito à vida deve sempre preponderar, uma vez que é consagrado pela razão natural, irreligiosa, como o mais importante.
Na verdade, aqueles que não admitem a precedência do direito à vida sobre os demais direitos, ainda que, inconscientemente negam de alguma forma, o espírito do princípio da harmonização ou da cedência recíproca, segundo o qual, como já explicado, deve o intérprete “buscar uma função útil a cada um dos direitos em conflito, sem que a aplicação de um implique na supressão do outro”. Ora, imaginemos um conflito entre o direito à dignidade de um e o direito à vida de outro, sendo impossível preservar parcialmente os referidos direitos. Dando prevalência ao direito à vida de um sujeito, suprimi-se, é verdade, o direito à dignidade do outro, mas resta-lhe, ainda (ao que perdeu a dignidade) a vida (para não dizer que a proibição do aborto embora devaste a sua dignidade, certamente ainda lhe deixa um resquício). Por outro lado, prevalecendo o direito à dignidade de um, suprimi-se o direito à vida do outro, que, por óbvio, engloba o direito à dignidade. De se notar que o direito à vida, por ser pressuposto para todos os demais, quando suprimido, desce ao túmulo com todos os outros direitos. Já a dignidade - segundo direito mais abrangente - quando suprimida, ainda permite a continuação da vida. Destarte, não se deve admitir a supressão de uma vida a pretexto de se preservar a dignidade de outra pessoa, mesmo sendo este direito fundamento do Estado democrático brasileiro, abrangedor de uma série de direitos (liberdade de escolha de uma forma em geral), mas que, no entanto, não é mais abrangente do que o direito supremo à vida, não obstante aflore a sua dimensão poética.
Não cansamos de reafirmar que as decisões que preferiram o direito à dignidade ou direito de religião ao direito à vida se referiam a direitos de uma única pessoa e nunca à colisão de direitos de pessoas diferentes. Por isso, há que se ter a máxima cautela para não estender a interpretação de tais decisões a casos que não lhe sejam análogos. Um exemplo pode facilitar o entendimento. Como exaustivamente abordado, não parece incoerente que uma pessoa possa optar pela não transfusão de sangue, conquanto a sua vida esteja em risco, se para tal pessoa, o amor ao seu Deus é mais importante do que a própria vida (conflito entre o seu direito à vida e o direito à escolha de religião). Não nos compete avaliar a dimensão que a religião assume na vida do crente, posto que, se trata de uma questão muito pessoal e impossível de ser avaliada por terceiros. Agora, no caso de conflito de direitos entre duas ou mais pessoas a opção será pelo direito mais forte: “No cotejo entre o direito à honra e o direito de informar, temos que, este último prepondera sobre o primeiro...”16. Neste caso, o direito de informar é mais importante do que a honra da pessoa, já que é direito coletivo pressuposto para a real democracia. E como já demonstrado, o direito à vida prevalece até mesmo contra direitos coletivos, salvo em caso de guerra declarada, quando toda a nação corre risco, caso haja traição. Nos demais casos não se permitem que sejam extirpadas a vida de uma pessoa mesmo que o meliante possa oferecer risco à integridade física de muitas pessoas, como é o caso do psicopata, reconhecidamente pela psiquiatria um ser incurável, que voltará a delinquir quando for libertado, mas, a despeito disso, não se lhe aplica a pena de morte justamente pela precedência do direito à vida sobre todo e qualquer direito.
Portanto, não obstante alguns juristas sustentem a possibilidade de se escolher outro direito quando em conflito com o direito à vida, tal assertiva somente poderá ser observada, se muito, quando o conflito de direitos se limitar a uma única pessoa. De outra forma, não se pode suprimir aquele que se não é um dos fundamentos do Estado democrático brasileiro (que é a dignidade da pessoa humana), é, antes de tudo, o pressuposto para a sua existência.
“Nesse escorço, Seyès sustentou que a formação da sociedade política pode ser separada em três estágios distintos. O primeiro caracterizado pela existência de indivíduos isolados, aos quais, entretanto, somente pela vontade de desejarem reunir-se, deveriam ser atribuídos os direitos de uma nação”17
Diante do exposto, sinteticamente, sustentamos que havendo colisão de direitos pertencentes a pessoas diversas e não sendo possível a garantia de ambos, da forma mais objetiva possível, deve-se apurar qual é o direito mais forte, pois é este que deve prevalecer. E como o direito à vida é pressuposto para os demais direitos, por dedução lógica, deve ser considerado o mais importante de todos os direitos, por isso, em caso de colidência e impossibilidade de se conservar os direitos conflitantes, preserva-se a vida e suprime-se qualquer outro direito que com ela conflite.
2.5.1 Equivalência dos direitos da gestante.
Na hipótese em que o legislador permite seja o aborto realizado quando a gravidez resulta de estupro, qual é o bem jurídico que ele quis tutelar? Por óbvio, a proteção se estende à gestante e não ao produto da concepção, uma vez que abortar significa interromper a gravidez com a consequente morte do feto. Mas qual seria esse direito? Analisemos primeiramente o direito constitucional à honra:
“... podemos perceber que o direito à honra pode ser colocado dentro de duas situações: a proteção da honra objetiva e a da honra subjetiva. A honra subjetiva pode ser sintetizada no sentimento de auto-estima do indivíduo, vale dizer, o sentimento que possui a respeito de si próprio, de seus atributos físicos, morais e intelectuais. A honra objetiva parte do parâmetro do conceito social que o indivíduo possui.”18
Parece que o fato de a gestante ser obrigada a dar continuidade a uma gravidez, fruto de um ato violento e indesejado lhe atinge frontalmente a sua auto-estima, ou seja, a sua honra subjetiva ou, quem sabe, até mesmo a sua honra objetiva. Comungam com a ideia de que a proibição do aborto em caso de gravidez resultante de estupro fere a honra da gestante Aníbal Bruno, Nelson Hungria e Heleno Cláudio Fragoso.
Além disso, deve-se ressaltar que a dignidade da pessoa humana - um dos fundamentos do Estado brasileiro - é um conceito bastante amplo, incluindo o direito à honra. Nas palavras de José Afonso da Silva: “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”1. O conceito é de difícil delimitação e precisa de um norte para que seja identificado mais facilmente no caso concreto.
“È a característica da liberdade, da possibilidade de escolha que dá ao homem sua dignidade, entendida como especificidade: A dignidade da pessoa encontra-se centralizada na sua liberdade, que a independentiza e diferencia em relação aos demais comportamentos”.19
Portanto, quando se restringe a liberdade do homem, se afeta, por conseguinte, a sua dignidade. Assim, não há como se dizer que proibir a mulher da opção pelo aborto, notadamente quando a sua gravidez é resultante de estupro, não é um duro golpe à sua dignidade.
Com efeito, seja pela ofensa à honra da gestante, seja pela restrição de sua liberdade (autodeterminação), a dignidade da pessoa humana é, sem dúvida alguma, derribada.
A proteção à dignidade da pessoa humana é prevista no artigo 1° da Constituição, portanto, não somente tem status de Lei Maior, mas é também um dos fundamentos do Estado democrático brasileiro.
Vale a pena, ainda, fazermos breve alusão a uma tendência que indiretamente afeta o tema da nossa obra.
“...Ministro da Saúde José Gomes temporão e da Secretária de Política para as mulheres Nilcéia Freire, que defenderam a legalização do aborto por se tratar de saúde pública devido ao crescente número de abortos clandestinos no Brasil.”20
O aborto clandestino é aquele maculado de ilegalidade, seja porque não se enquadra nas duas hipóteses permitidas em lei (aborto necessário e sentimental), seja porque embora haja permissão legal para a sua realização, é feito por pessoa sem habilitação ou em estabelecimento não autorizado, etc.
No caso abordado, o aborto clandestino a que o Ministro da Saúde se refere é aquele realizado sem o cumprimento das exigências exigidas para que haja maior segurança ao paciente, como o realizado por estabelecimentos não autorizados, médicos não habilitados, etc.
É evidente o aborto realizado sob estas condições aumenta muito o índice de mortalidade da gestante. E, via de regra, a gestante que se sujeita aos riscos oferecidos por estes locais e pessoas, o faz justamente porque os estabelecimentos autorizados não prestam os serviços por ela desejados, isto é, não realizam o aborto fora das duas hipóteses previstas na lei penal. Queremos dizer que a pretensão do Ministro com a liberação do aborto é incitar as gestantes a procurar somente estabelecimentos e profissionais que atendam aos requisitos exigidos para se preservar a integridade física do paciente, diminuindo, por dedução lógica, o índice de mortalidade das gestantes que se sujeitam ao aborto: “Alega-se habitualmente que a despenalização do aborto é necessária para acabar com as mortes que o aborto clandestino provoca.”21
Tal assertiva poderia nos levar a concluir que a liberação total da prática abortiva visa à tutela do direito à vida da gestante, incluindo, evidentemente, o aborto em caso de gravidez decorrente de estupro. Assim, poder-se-ia alegar que o bem jurídico a ser tutelado quando permite seja realizado o aborto em caso de gravidez resultante de estupro é a própria vida da gestante, e não somente a sua dignidade. Tal tese, no entanto, não resiste sequer a parcos argumentos. Primeiro, a referida forma abortiva é classificada na doutrina de aborto sentimental, humanitário ou ético, como já demonstramos, porém nunca de aborto necessário, que, como o nome sugere, é próprio daquele tendente a salvar a vida da gestante. Até mesmo porque se fosse a vida da gestante que o legislador visasse tutelar, a permissão de aborto se estenderia a todas as hipóteses, não se restringiria a uma situação em que a gravidez fosse resultante de estupro (atingindo a dignidade da gestante), ou quando a gravidez em si oferecesse risco à vida gestante (aborto necessário).
Não é nossa intenção adentrar o mérito dessa corrente. Mas não podemos deixar de ao menos ressaltar a sua incoerência. Ora, se a lei comina pena para quem pratica o aborto, é porque visa tutelar a um bem jurídico, que, no caso, é a vida do feto. Se algumas gestantes, desrespeitando a norma penal, realizam o aborto clandestino, vindo a perder a sua vida, ela (a gestante) é a infratora e o feto vítima. Logo, a menos que se entendesse a vida intra-uterina como não digna de tutela, jamais se poderia despenalizar o aborto, punindo um inocente (o feto) e premiando um culpado (gestante). Quantos assaltantes não são mortos em tiroteio com a polícia? Deveríamos, então, legalizar o roubo, para que houvesse menos mortes? Se chegássemos à conclusão de que os ofendículos (cercas elétricas, por exemplo) estão ferindo gravemente e até levando à morte alguns ladrões, seríamos obrigados a retirá-los?
Na verdade, tal elucubração refoge ao âmbito de nosso trabalho e chega a beirar o absurdo. O que de fato nos interessa é não deixar dúvidas sobre o bem tutelado pela lei penal, qual seja, a dignidade da gestante.
Equivalência do direito à vida do feto ou embrião
Analisamos, no tópico anterior, a equivalência do direito da gestante. Após intenso esforço de raciocínio concluímos que é a dignidade da gestante o direito constitucional protegido quando se permite seja realizado o aborto sentimental, aquele cuja gravidez resulta de estupro. Vimos que a dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado democrático brasileiro, previsto no artigo 1° da nossa Lei Maior. Por outro lado, cumpre-nos definir qual o direito do feto é preterido no exato momento em que se permite o aborto na situação mencionada, ou seja, quando a gravidez decorre de estupro, bem como a equivalência do referido direito (direito do feto), isto é, em que patamar hierárquico ele se situa.
Para tanto, precisamos trazer a lume a opinião de alguns doutrinadores sobre o direito à vida:
”Veja-se, por outro lado, que o aborto também se vê alcançado pelo espectro regrativo da norma constitucional em comento. È que a vida, iniciada com a concepção, não pode sofrer solução de continuidade não espontânea, fazendo com que o direito a ela se estenda também ao nascituro”. 22
“Vida, no texto constitucional, não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder a sua própria identidade. É mais um processo, que se instaura com a concepção...” 23
Estes dois textos transcritos tentam demonstrar a proteção constitucional ao direito à vida desde a concepção. (pois sendo a Constituição silente acerca do início da vida, inferem tais doutrinadores, iniciar-se-ia desde o momento da concepção, mas, como veremos, não é necessário descobrir quando a vida começa para aferir a dimensão da tutela constitucional.).
Há muitos outros estudiosos seguidores dessa mesma tese. Alguns, inclusive, se valem de leis infraconstitucionais com intuito de comprovar o seu ponto de vista. Citam o artigo 2° do Código Civil para sustentar a proteção ao nascituro ou a incriminação do aborto, prevista no artigo 124 e subsequentes do Código Penal, para demonstrar que a tutela ao direito à vida se inicia no momento da concepção. A grande preocupação para os adeptos dessa corrente é descobrir o exato momento em que a vida principia, pois a partir de então, segundo eles, começa a tutela constitucional.
Portanto, a se acolher a tese supracitada, evidencia-se o entendimento de que a vida do feto ou do embrião tem status de direito constitucional, previsto diretamente na Lei Maior, ou seja, o mesmo direito à vida garantido aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País se estenderia à vida intra-uterina.
No entanto, inglória tarefa é definir o momento inicial da vida, haja vista que tal tema não é suscetível de resposta com caráter minimamente objetivo. Uns sustentam que a vida começa no momento de implantação do embrião no útero materno, ou seja, depois do 6° ou 7° dia da concepção; outros entendem que após o 14° dia, já que antes desse período há possibilidade de um indivíduo se converter em dois, ou de dois se converter em um. Há, ainda, um grupo defensor da tese de que o embrião só adquire subjetividade quando é formado o sistema nervoso central, permitindo a percepção do prazer e da dor.24 Uma pesquisa acurada, com certeza, revelaria outras teorias acerca do momento inaugural da vida. Mas certamente um mergulho nesse tema nos levaria a um labirinto sem saída. Motivo pelo qual tentaremos, a despeito de toda divergência doutrinária existente, na medida do possível, nos ater somente aos argumentos carregados do mínimo de subjetividade.
A discussão ocorre justamente porque o texto constitucional prevê a inviolabilidade do direito supremo sem, contudo, estabelecer quando inicia a vida (repetimos, para tais doutrinadores é necessário descobrir o início da vida para se dimensionar a sua tutela). Destarte, inferindo-se que a Lei Maior protege o referido direito desde o seu início, tenta-se definir o exato momento em que isto ocorre, ou seja, quando a vida tem o seu princípio. E, como vimos, seja por qual caminho nos enveredarmos na busca incessante sobre o momento em que se inicia a vida humana, sempre haverá enorme dissídio, porquanto a resposta dependerá de uma série de fatores que variam de pessoa para pessoa (como religião, por exemplo), de modo que nunca se chegaria a um resultado minimamente desprovido de aspectos subjetivos. Por isso, é mister se indagar sobre a existência de dados mais objetivos para se esclarecer precisamente no que constitui o direito constitucional à vida. Ou será que o legislador constitucional não deixou qualquer pista sobre os limites do direito à vida, transferindo toda a responsabilidade para o legislador infraconstitucional? Cremos somente estarmos autorizados a pensar dessa forma se de fato constatarmos que a Constituição não nos aponta um caminho a seguir, isso pelo simples fato dela ser a nossa Lei Maior, devendo, portanto, lançar luz sobre todo ordenamento jurídico infraconstitucional, que necessita ser interpretado a partir dela (da Constituição).
O interessante nesta árdua tarefa de desvendar os exatos limites do direito supremo é o grande número de hermeneutas que tenta interpretar a Constituição a partir de normas infraconstitucionais. Citam, principalmente, o artigo 2° do Código Civil, seja para defender que a proteção à vida se inicia com o nascimento, seja para sustentar que a proteção ocorre desde a concepção. Na verdade, a leitura do supracitado artigo até pode de alguma forma nos auxiliar. Isso porque ao elaborar tal artigo (o artigo 2° do Código Civil), o legislador infraconstitucional teve que observar os contornos estabelecidos pelo legislador constitucional, de modo que, o simples ato de criar a lei pressupõe o exercício de interpretação da Lei Maior, ou seja, o artigo 2° do Código Civil foi criado a partir da interpretação do artigo 5° da Constituição, notadamente no tocante ao direito à vida. Assim, quando nos referimos ao artigo 2° do Código Civil, podemos arguir que quem o elaborou pensa, por exemplo, se iniciar a proteção constitucional à vida desde a concepção, já que tal artigo estatui a proteção desde esse momento (quando assegura os direitos do nascituro),ou que a proteção constitucional ocorre apenas quando há o nascimento com vida, porque é quando começa a personalidade civil da pessoa.
Portanto, ao apreciar o artigo 2° do Código Civil, é como se estivéssemos a ler um comentário acerca do direito constitucional à vida. Nada mais do que isso. Destarte, queremos deixar clara a impossibilidade de o texto constitucional ser interpretado tendo como ponto de partida normas infraconstitucionais, pois tal forma de interpretação inverteria completamente a hierarquia das normas, visto que, evidentemente, é a norma superior que condiciona a inferior, e não o contrário.
“Tampouco têm peso aqui recursos hermenêuticos tendentes a interpretar a Constituição da República à luz de normas subalternas. Os conceitos de vida e de pessoa, enquanto constituam dados necessários da quaestio iuris da causa, devem ser reconstruídos, senão que construídos, nos supremos limites materiais do ordenamento constitucional”.25
O enunciado, é verdade, não obsta que nos valhamos de leis infraconstitucionais (como o citado artigo 2° do Código Civil) para fortalecer a defesa de alguma tese acerca do direito constitucional à vida, sobretudo no tocante à sua extensão, mas repudia a interpretação do texto constitucional a partir de norma infraconstitucional. Pois, devem-se buscar elementos interpretativos, inicialmente, dentro da própria Constituição.
Aplicando, pois, algumas ferramentas hermenêuticas (princípio da supremacia da Constituição, da cedência recíproca, da proporcionalidade; a intenção do legislador etc.) em sede constitucional, tentaremos descobrir se há alguma forma mais objetiva de se perquirir sobre o direito supremo.
Primeiramente avaliemos o texto que prevê o direito à vida, qual seja, o artigo 5° da Constituição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida...”. Como se percebe, o texto constitucional conquanto preveja a inviolabilidade do direito à vida, se cala em relação ao momento em que ela (a vida) se inicia (na verdade não cabe ao direito definir quando e como ocorre o fenômeno da natureza). Assim sendo, será que estamos fadados a tatear no escuro em busca da resposta sobre o início da vida? Na verdade, muito já se especulou (e ainda se especula) nesta área. Improvável, porém, algum dia se chegue a uma resposta com autoridade persuasiva, porquanto;
“no tocante à questão do início da vida, não existe balizamento que escape da perspectiva simplesmente opinativa. É possível adotar vários enfoques, a saber:
a) o da concepção;
b) o da ligação do feto à parede do útero;
c) o da formação das características individuais do feto;
d) o da percepção pela mãe dos primeiros movimentos;
e) o da viabilidade em temos de persistência da gravidez;
f) o do nascimento”.26
Para tentar escapar a esta interminável discussão sobre o início da vida, precisamos avaliar criteriosamente se os elementos contidos na Constituição não apontam algum caminho mais objetivo a seguir, ou seja, se não há outra forma de se elucidar a questão que não seja através da indagação acerca do início da vida (já que esta questão é demasiadamente subjetiva). Assim, a pergunta pertinente é a seguinte: não há como se delimitar a proteção constitucional ao direito à vida sem que seja necessário esclarecer quando ela (a vida) se inicia? O Ministro Carlos Britto responde afirmativamente:
“E como se trata de uma Constituição que sobre o início da vida humana é de um silêncio de morte, a questão não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo sapiens, mas em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo direito infraconstitucional e em que medida”27.
O Ministro fala de proteção “infraconstitucional” ao embrião justamente porque entende que a Constituição assegura (de forma direta) o direito à vida somente aos nacionais e aos residentes no país, a pressupor a aplicação da aludida norma somente ao ser humano já nascido.
“Tanto é assim que ela mesma, a Constituição, faz expresso uso do adjetivo “residentes” no país (não em útero materno...) além de complementar a referência do seu artigo 5° “aos brasileiros” para dizer que eles alocam em duas categorias: a) a dos brasileiros natos (na explícita acepção de “nascidos”, conforme as alíneas a, b e c do inciso I do artigo 12) e brasileiros naturalizados (a pressupor formal manifestação de vontade, a teor das alíneas a e b do inciso II do mesmo artigo 12”28
Outro fator importante a corroborar com a interpretação acima expendida são as notícias dos anais da Assembléia Nacional Constituinte. Segundo Sérgio da Silva Mendes, houve tentativa de se embutir na Lei Maior da República a proteção ao ser humano desde a sua concepção (Carlos Britto no voto sobre as células-tronco). E a vontade do legislador se não tem força vinculante, ao menos nos conduz a caminhos objetiváveis, sendo mais um fator a se agregar à tese de que a Constituição prevê a inviolabilidade da vida (de forma direta) somente aos já nascidos e não daqueles que ainda estão no útero. Não significando isto que a vida intra-uterina não mereça proteção, antes, porém, que tal proteção não está prevista diretamente na Constituição. Mas
“a dignidade da pessoa humana é princípio tão relevante para a nossa Constituição que admite transbordamento. Transcendência ou irradiação para alcançar, já no plano das leis infraconstitucionais, a proteção de um processo que deságue, justamente no indivíduo-pessoa”29
Embora não haja dispositivo constitucional prevendo diretamente a garantia do direito à vida intra-uterina, o simples fato de o feto ser potencialmente capaz de se transformar em uma pessoa humana já é o bastante para lhe garantir uma proteção infraconstitucional, decorrente do direito constitucional à pessoa humana, porém, com status inferior ao direito à vida extra-uterina, prevista diretamente na Lei Maior.
Somente se seguirmos a interpretação acima podemos entender a permissão do Código Penal para o aborto quando a gravidez decorre de estupro. Porque se a vida do feto fosse objeto da mesma proteção do que a vida da gestante, não se poderia permitir o aborto a pretexto de se preservar a dignidade da gestante, uma vez que o direito à vida é mais forte do que o direito à dignidade.
“Não que a vedação do aborto signifique o reconhecimento legal de que em toda a gravidez humana já esteja pressuposta a presença de duas pessoas: a da mulher grávida e a do ser em gestação. Se a interpretação fosse essa, então as duas exceções dos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal seriam inconstitucionais, sabido que a alínea a do inciso XLVII do artigo 5° da Magna Carta Federal proíbe a pena de morte (salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX).”1
O Ministro quis salientar que se na fase gestacional já existisse uma pessoa (e não um feto ou embrião), a proteção estendida à esta pessoa teria tutela constitucional direta tal qual a proteção à vida da gestante, tornando ilícita a permissão abortiva prevista no Código Penal, diante da afronta ao direito à vida. Mas como ilustre Ministro entende que a proteção à vida do feto não tem o status do direito à vida previsto no texto constitucional(somente sendo protegido de forma indireta ou reflexa), pode ceder ante a um direito previsto diretamente na Lei Maior, no caso em tela, a dignidade da gestante.
Algumas observações, porém, se fazem necessárias. Todo ordenamento jurídico infraconstitucional tem como escopo implementar algum preceito da Constituição, não obstante às vezes não seja fácil identificar exatamente qual seja este preceito. Destarte, quando se proíbe a escuta telefônica (salvo as exceções legais), tem-se por mira a garantia constitucional da privacidade. Ao não se admitir que alguém seja preso sem a observância dos meios de defesa previstos em lei, resguarda-se o princípio constitucional do devido processo legal. A licença maternidade, igualmente, é uma das formas de assegurar a proteção ao direito constitucional à maternidade. Em todos esses exemplos, ao elaborar a lei, o legislador infraconstitucional está dando especificidade ao direito constitucional, que deveras é muito genérico. Afinal como proteger o direito à privacidade? Ao proibir a escuta telefônica ou a violação de correspondência se está efetivando (e especificando a forma de proteção) o direito constitucional à privacidade. Da mesma forma, quando se cria a licença-maternidade, se está especificando a forma de proteção ao direito constitucional de proteção à maternidade. Nestes dois exemplos, a lei infraconstitucional está efetivando os direitos previstos diretamente na Constituição. Assim, ao violar uma correspondência se está infringindo o próprio direito constitucional à privacidade. Do mesmo modo, ao não conceder a licença-maternidade se desrespeita o direito constitucional de proteção à maternidade. No entanto, o raciocínio a ser aplicado ao direito constitucional à vida necessariamente não segue este caminho, guardando certas peculiaridades. Se déssemos continuidade ao pensamento até então desenvolvido, concluiríamos que ao incriminar o aborto, o legislador infraconstitucional nada mais estaria fazendo a não ser efetivar a proteção ao direito constitucional à vida, pressupondo que a Constituição assegura explicitamente o referido direito desde o início da gravidez fisiológica, o que nivelaria a proteção à vida do feto à da vida extra-uterina. Mas, como vimos, a Lei Maior só faz menção à proteção da vida dos brasileiros ou estrangeiros residentes no país (ou seja, aqueles que já nasceram), não se referindo à vida intra-uterina. Assim, se não há previsão constitucional de tutela à vida intra-uterina, por que o Código Penal prevê tal proteção, mormente quando proíbe o aborto?
“a dignidade da pessoa humana é princípio tão relevante para a nossa Constituição que admite transbordamento. Transcendência ou irradiação para alcançar, já no plano das leis infraconstitucionais, a proteção de um processo que deságue, justamente no indivíduo-pessoa” 30
De se notar que simples “potencialidade de o feto se tornar uma pessoa humana já é o suficiente para acobertá-lo, infraconstitucionalmente, contra tentativas esdrúxulas, levianas ou frívolas de obstar a sua natural continuidade fisiológica.” 1
O que se percebe é, que conquanto o texto constitucional não faça alusão a nenhuma proteção à vida intra-uterina, esta é digna de tutela, uma proteção reflexa da prevista no texto constitucional à pessoa humana.
“Houve três tendências no seio da Constituinte. Uma queria assegurar o direito à vida desde a concepção, o que importava em proibir o aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com vida, sendo que a vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o que possibilitava o aborto. A terceira, entendia que a Constituição não deveria tomar partido na disputa, nem vedando nem admitindo o aborto”31
Destas informações podemos concluir: a) Ao não estatuir em seu texto a proteção desde a concepção, o legislador constitucional quis proteger diretamente somente a vida após o nascimento; b) se não foi colocado no texto constitucional que a condição de sujeito de direito se adquiria somente pelo nascimento com vida, e, por conseguinte, que a vida intra-uterina é inseparável do corpo da mulher e de sua inteira responsabilidade, é porque deveria haver alguma proteção infraconstitucional à vida intra-uterina (como há, por exemplo, quando se incrimina o aborto); c) Portanto, ao não prever a inteira responsabilidade da gestante pela vida do feto (o que significaria a permissão do aborto), nem proteger a vida desde a concepção (tornando qualquer ilícita, o legislador constitucional impôs uma diretriz ao legislador infraconstitucional, para que resguardasse a vida intra-uterina.
“...apesar de nenhuma realidade ou forma de vida pré-natal ser uma pessoa física ou natural, ainda assim, faz-se portadora de uma dignidade que importa reconhecer e proteger. Reconhecer e proteger, aclare-se, nas condições e limites da legislação ordinária mesma, devido ao mutismo da Constituição quanto ao início da vida humana. Mas um mutismo hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária ou usual...”32
Portanto, embora a Constituição não preveja diretamente nenhuma tutela à vida intra-uterina, esta deve ser protegida pelo legislador infraconstitucional, uma vez que a dignidade da pessoa humana é princípio tão relevante que admite transbordamento (se assim não o fosse, repetimos, a Constituição preveria a responsabilidade total da gestante pela vida do feto, dependendo exclusivamente de sua vontade a prática abortiva - esta uma das tendências no seio da Constituinte). Todavia, não se pode atribuir a uma proteção reflexa (do direito à vida assegurada à pessoa humana) o mesmo status do direito supremo previsto na Lei Maior (porque, nesta hipótese, o feto seria considerado uma pessoa e, como tal, não poderia ter a sua vida suprimida - permitindo-se o aborto - porque a Constituição não permite a pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, como bem asseverou o Ministro Britto.
2.6. Pacto de San Jose da Costa Rica - conceito e artigos relacionados com o direito à vida.
“Por tratado entende-se o ato jurídico por meio do qual se manifesta o acordo de vontades entre dois ou mais sujeitos do direito internacional”.33
“Tratado” é a expressão genérica da qual convenção, protocolo, convênio, declaração, ajuste etc. são espécies.
Seja qual for a espécie de tratado, o que nos importa são os seus efeitos no direito interno do país assinante, porque o tratado nada mais é do que um contrato entre sujeitos do direito internacional, e, como tal, obriga as partes envolvidas. Ocorre que cada país contratante tem o seu sistema normativo interno. Alguns Estados, como o Brasil, têm um incontável número de leis, de modo que se torna impossível analisar a compatibilidade entre todas as leis internas e o tratado que está sendo assinado. Assim sendo, não raramente se verá um choque entre o direito interno e o pacto firmado. Neste caso, qual norma deve prevalecer? A Convenção de Viena sobre direitos dos tratados, de 1969, em seu artigo 27 estatui que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno, para justificar o inadimplemento de um tratado”.34 Parece coerente que, assumindo o país um compromisso, seja ele obrigado a respeitá-lo, não podendo invocar disposições de direito interno para eximir-se do cumprimento do tratado, pois se assim não o fosse, não haveria segurança entre os contratantes, já que a simples elaboração de uma lei interna, incompatível com o tratado, conferiria ao Estado contratante a possibilidade de descumprimento do acordo firmado. Dessa forma, o Estado, antes de assinar o tratado, deve analisar cuidadosamente a compatibilidade do seu conteúdo (do tratado) com o direito interno, pois em caso de conflito de normas, em tese, prevalecerá a norma internacional.
Ocorre que a questão não é tão simples quanto parece, abarcando aspectos de difícil solução. Porque se por um lado não é difícil aceitar a possibilidade de um tratado revogar uma lei infraconstitucional com ele incompatível, por outro lado, não é tão fácil admitir que um tratado possa revogar um dispositivo da Constituição. O parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição preconiza a equivalência a emendas constitucionais dos tratados internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros. Assim, tais tratados revogam artigos da Constituição, desde que, é claro, não se trate de cláusula pétrea. Por dedução lógica, portanto, os tratados não referentes a direitos humanos ou que não forem aprovados nos moldes de uma emenda constitucional, não serão equivalentes a emendas constitucionais, por conseguinte, não terão força para revogar dispositivo constitucional com ele (tratado) incompatível. Por isso, essa zona de conflito entre o dispositivo da Convenção de Viena sobre direito dos tratados, de 1969, prevendo a impossibilidade de a parte invocar disposições de direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado, e o artigo 5°, parágrafo 3° da Constituição, estabelecendo que somente os tratados referentes a direitos humanos e aprovados nos moldes de uma emenda à Constituição terão status de emenda constitucional e, portanto, com o condão de revogar dispositivos constitucionais incompatíveis com o tratado assinado.
Em relação ao patamar hierárquico dos tratados internacionais, podemos antecipar que o tema é objeto de grandes controvérsias, não havendo ainda uma posição uniforme na doutrina e tampouco na jurisprudência. Vejamos algumas opiniões:
“Pacto de San José da Costa Rica (art. 7°, 7), ratificados, sem reserva, pelo Brasil, no ano de 1992. A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.” 35
“Entendimento do Relator, Min. CELSO DE MELLO, que atribui hierarquia constitucional às convenções internacionais em matéria de direitos humanos.” 36
“Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante.” 37
Esses votos confirmam a controvérsia existente sobre a hierarquia dos tratados internacionais. A Ministra Helen Grace e o Ministro Carlos Britto sustentando a hierarquia supralegal do Pacto de San José da Costa Rica, ou seja, uma posição superior à da legislação interna, mas inferior à da Constituição. Enquanto o Ministro Celso de Melo defende o status constitucional do mesmo pacto.
A definição da posição hierárquica dos tratados internacionais, especialmente o Pacto de San Jose da Costa Rica, tem importância singular ao desenvolvimento da nossa obra, uma vez que o referido pacto faz menção à proteção da vida intra-uterina: “Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” 38 E define: “Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.” 39
De se notar que o Brasil aderiu ao Pacto de San Jose da Costa Rica desde 1992 e, em 1998, seus efeitos já eram percebidos pelos nossos tribunais:
"Em boa hora se vem invocando nos Pretórios o Pacto de São José de Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que se fez direito interno brasileiro, e que, pois, já não se configura, entre nós, simples meta ou ideal de lege ferenda. É mesmo reclamável seu cumprimento integral, porque essa Convenção foi acolhida sem reservas pelo Estado brasileiro. Parece que ainda não se compreendeu inteiramente o vultoso significado da adoção do Pacto entre nós: bastaria lembrar, a propósito, pela vistosidade de suas conseqüências, que seu art. 2º modificou até mesmo o conceito de pessoa versado no art. 4º do Código Civil, já que, atualmente, pessoa, para o direito posto brasileiro, é todo ser humano, sem distinção de sua vida extra ou intra-uterina. Projetos, pois, destinados a viabilizar a prática de aborto direto ou a excluir antijuridicidade para a prática de certos abortamentos voluntários conflitam com a referida Convenção" 40
Ressalta-se que nesta época (1998) o código civil vigente era o de 1916, cuja definição de pessoa corresponde à atual redação do artigo 2° do Código Civil (“A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”). Com efeito, os desembargadores, prolatores do acórdão acima alicerçados no Código Civil de 1916, tinham o entendimento de que o conceito de pessoa abrangia somente quem já havia nascido, isto é, a vida extra-uterina, no entanto, com a adesão posterior do Brasil ao Pacto de San Jose da Costa Rica, o conceito de pessoa teria se modificado, tornado-se mais abrangente, incluindo em seu conteúdo a vida intra-uterina. Ocorre que, em 2002, houve a promulgação do novo Código Civil, cuja redação definidora do conceito de pessoa era rigorosamente idêntica a do Código Civil anterior, e como se atribuía ao referido pacto status de lei ordinária, acabou se dando mais crédito ao direito interno (até por que lhe era posterior), representado neste caso pelo Código Civil de 2002, do que ao direito internacional - representado pelo Pacto de San Jose da Costa Rica.
Atualmente, como já demonstramos, a situação tem tomado rumo diverso, não mais se atribuindo ao aludido pacto hierarquia de lei ordinária. Os guardiões da nossa Constituição, em decisões recentes, têm lhe conferido, em regra, status supralegal, em alguns casos chegando a equipará-lo à própria Constituição. Motivo que vem criando um novo celeuma no ordenamento pátrio. De fato, para quem interpreta o conceito de vida e de pessoa partindo da norma infraconstitucional para a Constituição, doravante valer-se-ão do Pacto de San Jose da Costa Rica, visto que, uma vez posicionado em patamar hierarquicamente superior ao do Código Civil, teria redimensionado o conceito de pessoa:
“No plano puramente jurídico-positivo, há fortes razões para adotar-se a tese de que a vida tem início a partir da concepção. Dentre outras, porque a Convenção Americana de Direitos Humanos, denominada Pacto de San Jose da Costa Rica, aprovado em 22 de novembro de 1969, e ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 2002, ingressou no ordenamento legal pátrio não como simples lei ordinária, mas como regra de caráter supralegal ou, até mesmo, como norma dotada de dignidade constitucional, segundo recente entendimento expressado por magistrados desta Corte Suprema”41
Entretanto, mantendo a nossa linha de raciocínio, qual seja, de que a Constituição deve ser interpretada a partir de seu próprio texto, uma norma supralegal, isto é, com status acima da lei ordinária, porém abaixo da Constituição, não tem o condão de modificar o conceito de pessoa contido na Lei Maior. A mudança do conceito constitucional somente ocorreria se fosse atribuído ao Pacto de San Jose da Costa Rica peso de emenda à Constituição, como já fora reconhecido, inclusive, pelo Ministro Celso de Melo. Neste caso, o conceito de pessoa seria reformulado a partir do próprio texto constitucional, tornando-se extenso ao ponto de atingir a vida intra-uterina.
Enfim, devemos ficar atentos às mudanças de ótica que vêm sofrendo os tratados internacionais no ordenamento pátrio, sobretudo aqueles que versam sobre direitos humanos, como é o caso do Pacto de San Jose da Costa Rica, haja vista a brusca mudança que tal tema pode desencadear nas questões referentes à proteção constitucional à vida.
Embora reconheçamos o progresso hierárquico do Pacto de San Jose da Costa Rica, passando de simples lei ordinária a um nível supralegal, entendemos ser este status ainda insuficiente para alcançar (de forma direta e não reflexa) à vida intra-uterina, porquanto se a nossa Constituição garante a inviolabilidade do direito à vida aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, dessa forma já definiu como destinatários da proteção constitucional os já nascidos, visto que somente pode ser considerado brasileiro quem já nasceu, e, igualmente, só pode residir no país quem já não está mais no útero (já nasceu). Assim, se a Constituição já nos oferece a exata dimensão da proteção ao direito à vida, não pode uma norma supralegal (Pacto de San Jose da Costa Rica) redimensionar tal conceito, abrangendo também a vida intra-uterina. Observe-se não dissemos ser impossível uma norma infraconstitucional proteger a vida nos seus mais variados estágios (como a vida intra-uterina), muito pelo contrário, como afirmou o Ministro Carlos Britto, a proteção à vida do feto foi cogitada de ser inserta, inclusive, no texto constitucional, mas chegou-se à conclusão de que tal direito deveria ser regrado por leis infraconstitucionais, de modo que o Pacto em tela está em pleno vigor. Aliás, o próprio Código Civil já protege os direitos do nascituro. Como já ressaltamos, porém, tal proteção infraconstitucional é uma proteção reflexa do direito à vida (de quem já nasceu), previsto na Constituição, não tendo, portanto, o mesmo status desta, embora não seja assim o entendimento de muitos.
Aqueles que interpretam a Constituição a partir de leis infraconstitucionais certamente chegarão a conceitos diferentes. Tais pessoas pecam por não exaurir o texto constitucional antes de se aventurar em outras searas. Assim, entendem que o legislador constitucional não se pronunciando sobre o início da vida, a abrangência da proteção a este direito seria definida pelo legislador infraconstitucional (por exemplo, Código Civil, em seu artigo 2°; artigo 124 e subsequentes do Código Penal etc., e, atualmente, pelo Pacto de San Jose da Costa Rica, já que este foi considerado hierarquicamente superior àqueles). No entanto, repetimos, uma vez que a Constituição contém elementos suficientes para interpretarmos a exata dimensão do direito à vida, leis inferiores não podem de forma alguma modificar o conteúdo da Lei Maior, de modo que somente os brasileiros e os estrangeiros residentes no país (ou seja, quem já nasceu) têm o seu direito à vida assegurados de forma direta pela Constituição. A vida intra-uterina não obstante deva ser protegida, consoante dispõe o Código Civil e, sobretudo, o Pacto de San Jose da Costa Rica, não goza do mesmo nível hierárquico de proteção constitucional.
Tais especificações ganham importância em caso de colidência de direitos. Assim, no confronto entre a vida extra-uterina (protegida diretamente pela Constituição) e intra-uterina (protegida de forma reflexa pela Constituição), deve prevalecer o mais forte, qual seja, o primeiro.
Rumo oposto, seria tomado se preponderasse a tese de que o Pacto de San Jose da Costa Rica tem hierarquia constitucional, como asseverou Celso de Melo. Com efeito, haveria uma remodelação na proteção constitucional à vida, passando a ser protegida diretamente (pela Lei Maior) desde a concepção. Por isso, nos atentemos às próximas decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, pois o entendimento do Ministro Celso de Melo pode ganhar novos adeptos dentro da Suprema Corte, vindo a se tornar majoritário, ampliando de uma vez por todas a proteção constitucional à vida.