O Aborto sentimental à luz da Constituição

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13/03/2025 às 17:49
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Capítulo 3

3.1 Aborto sentimental no caso concreto - aspectos constitucionais

O aborto somente pode ser realizado por médico, precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal.

Para que o médico realize o aborto sentimental não é necessária a sentença condenatória de estupro, nem autorização judicial. Basta a comprovação do estupro por meio de inquérito policial, processo criminal, etc.

Se formos levar ao pé da letra a lei, em caso de gravidez de menor de 14 anos ou de mulheres que, por enfermidade mental, não tenham o discernimento necessário para a prática do ato sexual, ou que, por qualquer outra causa, não possam oferecer resistência (ao ato sexual), não seria preciso nenhuma prova do estupro (como boletim de ocorrência etc.), bastando o simples consentimento do representante legal da gestante para a realização do aborto pelo médico, uma vez que nestes casos não é necessária a violência para a configuração do estupro. A simples prática de conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso já comprova o crime de estupro, e, por óbvio, a gravidez comprova (ou pelo menos é um forte indício) a prática de conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso diverso. Ora, se no estupro de pessoa capaz, onde se exige violência ou grave ameaça para a configuração do delito, provas meramente indiciárias, como boletim de ocorrência, já são suficientes para tornar o aborto lícito, muito mais motivo se teria para permitir o aborto em caso de gravidez de gestante incapaz, não obstante a única prova do estupro fosse a sua efetiva gravidez, já que neste caso há prova quase irrefutável da ocorrência de estupro, porque, em quase todos os casos, a gravidez resulta de ato sexual. E como no estupro de vulnerável não é necessária a violência para a configuração do delito, bastando para tanto a comprovação de conjunção ou qualquer ato libidinoso diverso, a simples prova da gravidez leva a um juízo de convicção quase absoluto acerca da existência do referido delito.

Não há como negar a existência de aspectos constitucionais intrigantes na realização do aborto sentimental. Porque se por um lado a continuidade da gestação inviabiliza a espera do trânsito em julgado da sentença condenatória que reconheça o estupro, para somente então ser realizado o aborto. A falta de critério ou a exigência de provas muito fracas sobre a ocorrência de estupro para se permitir o aborto faz com que a consciência da gestante seja de fato a regra preponderante da permissão abortiva. Mas, dizer que a opção pelo aborto sentimental depende exclusivamente do livre-arbítrio da gestante talvez seja um exagero, porque, embora parcos, os requisitos exigidos para a referida prática abortiva, sem dúvida, restringem a ação abortiva por parte da gestante.

O aborto sentimental permitido quando a gravidez não seja consequência de violência ou grave ameaça (quando a gestante for menor de 14 anos ou não tiver discernimento-estupro de vulnerável), bem como as poucas exigências feitas para se comprovar o estupro e seja, por conseguinte, autorizado o aborto, denotam a diferença do valor que o legislador infraconstitucional atribuiu ao direito da gestante para o direito do feto. Qual direito da gestante seria tão mais importante em relação ao direito do feto? Como já demonstrado, o direito da gestante é a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado democrático brasileiro, sem dúvida alguma um direito constitucional importantíssimo, sem o qual a vida certamente se tornaria um fardo muito pesado. Como já defendemos exaustivamente, a dignidade da pessoa humana só não tem precedência sobre o direito à vida, visto que este é pressuposto daquela.

Com efeito, a própria norma penal permissiva do aborto sentimental evidencia que o direito do feto tutelado não é o mesmo esculpido diretamente no artigo 5° do texto constitucional. Pois, se tal direito tivesse o mesmo status do direito à vida dos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil (ou seja, os já nascidos), nem se aceitaria a prática abortiva, posto que o direito à vida tem prevalência sobre a dignidade (além de consubstanciar pena de morte, prática proibida pela Constituição, salvo em caso de guerra declarada - como sustentara o Ministro Britto). Mas mesmo para aqueles que entendem a dignidade da pessoa humana como direito equivalente à própria vida, jamais se permitiria houvesse o aborto sem que antes fosse deveras averiguado, na medida do possível, a existência do estupro, tampouco seria autorizado o aborto cuja gravidez embora não fosse resultante de grave ameaça ou violência, restasse tipificado o estupro (dito estupro de vulnerável).

Portanto, a legislação penal não deixa qualquer dúvida de que o legislador infraconstitucional atribuiu ao direito do feto um valor muito inferior ao da gestante. Por isso, como o direito à vida, mesmo para aqueles tendentes a supervalorizar a dignidade, tem valor a ela (dignidade) equiparado, resta evidente que o bem tutelado na norma penal incriminadora não é o mesmo previsto diretamente no artigo 5° da Constituição, antes porém, trata-se de um direito reflexo do direito previsto aos já nascidos e, portanto, não prescrito diretamente na Lei maior, mas que pela sua excelência transbordou para o plano infraconstitucional, recebendo a tutela que merece. Sem dúvida alguma, um direito incontestável, como também é incontestável a sua inferioridade em relação ao direito que lhe originou.

3.2 Direito da gestante x Direito do feto

O ponto nuclear do trabalho consiste na zona de conflito entre o direito da gestante e o do feto, uma vez que se ao realizar o aborto cuja gravidez seja resultante de estupro, protege-se dessa forma a dignidade da gestante, é também neste preciso momento que o direito à vida do feto é preterido.

O ideal em situação de colidência entre direitos seria aplicar o princípio da cedência recíproca, cuja finalidade é resguardar ambos os direitos em conflito, ainda que não integralmente. Prefere-se a aplicação parcial de cada direito em conflito à aplicação integral de apenas um destes direitos.

No entanto, em situações especialíssimas, como a estabelecida quando a gestante é vítima de estupro, a aplicação do referido princípio constitucional (cedência recíproca) é prejudicada, porquanto a aplicação de um direito implicará na supressão do outro (embora, talvez, se não houvesse a permissão do aborto sentimental, restasse um resquício de dignidade à gestante que teve tolhido o seu direito de autodeterminação).

Neste caso, se indaga: segundo a Constituição, deve prevalecer o direito à dignidade da gestante ou o direito à vida do feto? Palpiteiros de plantão surgem aos montes, cujas respostas embora às vezes pareçam interessantes ao primeiro contato, demonstram a sua contradição diante de um exame um pouco mais minucioso.

Se fizéssemos uma pesquisa, certamente a maior parte da população aprovaria a permissão abortiva quando a gravidez decorresse de estupro. Porém, se indagássemos estes mesmos entrevistados sobre qual direito é mais importante, se o direito à vida ou o direito à dignidade, provavelmente apontariam o primeiro. Ora, se o direito à vida é mais importante do que o direito à dignidade, por qual razão aprovam o aborto sentimental? A resposta é no sentido de que a mulher deve ter o direito de escolher se quer ter o filho; ou ela não tem a obrigação de educar um filho fruto de um ato indesejado; a gestante vai ficar com problemas psicológicos; a criança vai sofrer, já que a mãe biológica não irá criá-lo, e por aí em diante. Em quase todas as respostas, o direito da gestante apontado pelos entrevistados, na verdade, por contraditório que se nos afigure, é a própria dignidade (pois fala-se em escolha da gestante, problemas psicológicos). E se estes mesmos entrevistados responderam anteriormente no sentido de o direito à vida ser mais importante do que o direito à dignidade, suas respostas estão, pois, eivadas de contradição. Ora, a única forma de o direito à dignidade da gestante prevalecer ante ao direito à vida do feto sem que houvesse inconstitucionalidade, seria atribuindo um valor inferior à vida do feto em relação à dignidade da gestante, o que só seria possível, obviamente, se o referido direito do feto não fosse o mesmo previsto no artigo 5° da Constituição, qual seja, o direito à vida, mas dele derivasse, situando-se dessa forma em um patamar inferior justamente por se tratar de uma proteção reflexa da conferida aos já nascidos. Questão esta a ser analisada adiante.

A última resposta, então, chega a beirar o absurdo. O argumento de que a criança não iria ter uma vida digna porque não teria o amor da mãe biológica, sendo encaminhada para adoção, etc., sendo por isso melhor não nascer, ou seja, ser realizado o aborto, não tem fundamento algum. Primeiro, se o aumento da probabilidade de a pessoa vir a ter uma vida indigna fosse o suficiente para não deixá-la nascer, o aborto seria praticamente liberado a pessoas faveladas ou que vivam em condição de miséria. Segundo, como o aquilatamento de direitos se restringe a uma mesma forma de vida (direito à vida ou à dignidade do feto), não é difícil constatar que o direito à vida deve preponderar sobre a dignidade (porque se fosse a dignidade da gestante x a vida do feto, discutir-se-ia o status que a Constituição dispensa a cada ente). Só fazemos uma observação para não parecermos contraditórios. Vimos algumas decisões permitindo que pacientes que corriam o risco de morte recusassem a transfusão de sangue por motivos religiosos. O direito à vida, no caso, foi preterido ante outro direito. Vale ressaltar, no entanto, que a opção foi feita pela própria pessoa detentora dos direitos. No caso do aborto, seria a gestante que estaria fazendo a opção, o que tornaria ilícita a escolha da dignidade do feto em detrimento do seu direito à vida.

Verificamos, portanto, uma série de opiniões carregadas de empirismo, porém escassas de raciocínio jurídico. Neste mesmo caminho trilham os defensores da liberação geral do aborto, com vistas a diminuir o índice de abortos clandestinos, geradores de número considerável de óbitos de gestantes.

“...Ministro da Saúde José Gomes temporão e da Secretária de Política para as mulheres Nilcéia Freire, que defenderam a legalização do aborto por se tratar de saúde pública devido ao crescente número de abortos clandestinos no Brasil.” 42

Ora, os defensores da legalização do aborto certamente não estão usando como instrumento de trabalho a Constituição, porque, como vimos, a vida intra-uterina é protegida constitucionalmente. Para uma corrente, uma previsão direta, esculpida no artigo 5° da Lei Maior e, portanto, com hierarquia equivalente à vida extra-uterina. E para outra corrente, trata-se de uma proteção reflexa dos direitos previstos para os nacionais ou os estrangeiros residentes no país (ou seja, os já nascidos), por conseguinte, a vida intra-uterina goza de proteção inferior à estendida à vida intra-uterina. No entanto, independentemente do status atribuído à vida intra-uterina, não se pode negar a sua tutela constitucional, seja de forma direta ou reflexa, de modo que uma decisão simplista de abolir o crime aborto para diminuir o número de abortos clandestinos carece de fundamento jurídico, ferindo de morte o artigo 5° da Constituição.

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A idéia do Ministro da Saúde e da Secretária de Política para mulheres simplesmente ignora o bem jurídico constitucional, qual seja, a vida do feto. Porque se considerasse a sua existência, saberia da necessidade de a lei penal tutelá-lo, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. E como é cediço, ao infrator da lei penal impõe-se uma sanção, e não se lhe oferece um prêmio. Dessa forma, se não há dúvida de que a Constituição assegura o direito à vida do feto (seja de forma direta ou reflexa), igual certeza há de que a lei penal incriminadora do aborto está a consubstanciar este direito. Assim sendo, a sua descriminalização somente seria possível se houvesse algum direito da gestante em conflito que devesse prevalecer sobre o direito do feto. Por isso, quando há risco de morte para a mãe, torna-se lícita a prática abortiva. Entretanto, neste caso, a vida da gestante está em risco por motivo de força maior, alheio à sua vontade. Enquanto o risco decorrente de abortos clandestinos existe por causa da escolha ilícita da gestante. É deveras conhecido o jargão de que ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza, sobretudo quando é preterido um direito assegurado constitucionalmente, como o é o direito do feto à vida.

Como se percebe, a liberação total do aborto não supera sequer o primeiro obstáculo, mas, para ensejar o devaneio, vamos ignorar o argumento supracitado.

Imaginemos, pois, a existência de um conflito entre o direito à vida da gestante (porque teria a chance de morte aumentada se fizesse o aborto clandestino) e o direito à vida do feto. Evidentemente, exagerando, já que o índice de mortalidade em abortos clandestinos não é tão elevado assim (não há um risco de morte iminente como no aborto necessário, em que a vida da gestante está sofrendo uma ameaça real). Mas prossigamos. Havendo o conflito da vida da gestante com o direito à vida do feto, para alcançar uma solução ponderada, deveríamos nos valer do princípio da proporcionalidade, que é dividido em três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Somente se superadas as três etapas podemos entender como razoável a tese posta à prova. Passemos, então, a aplicação dos três princípios referidos.

Quanto ao princípio da adequação - a pergunta a ser respondida é: o meio escolhido contribui para a obtenção do resultado pretendido? Caso a resposta seja negativa, a aplicação de tal meio configura inconstitucionalidade.

No caso em tela, indagamos: a liberação do aborto reduzirá o índice de morte de gestantes que se submetem ao aborto (já que não o farão de forma clandestina)? Conquanto a diminuição da mortalidade possa, quem sabe, não ser tão expressiva, parece coerente crer que de fato ela deva ocorrer. Dessa forma superamos o subprincípio da proporcionalidade.

Quanto ao princípio da necessidade - a pergunta a se fazer é: A medida é indispensável para a conservação do direito da gestante ou tem outro meio igualmente eficaz e menos gravoso ao feto? Ora, é difícil de acreditar não haja outra alternativa para impedir abortos clandestinos que não seja a descriminalização de todas as formas abortivas. Fiscalizar seria, talvez, a melhor medida a ser tomada. Porém, todos sabem que o Estado brasileiro não é eficiente nesta área, haja vista ser o Brasil um dos países mais corruptos do mundo. Entretanto, não se pode negar a eficiência de tal medida com base na improficiência do Estado. Sem dúvida alguma, para se impedir que se faça algo de errado, fiscalizar é preciso. Ademais, esta medida seria muito menos gravosa ao feto, cuja vida seria preservada. O Estado serve, dentre outras coisas, para proteger, logo, não pode ser a causa da morte de milhares de fetos. Destarte, não vislumbramos possibilidade de a descriminalização abortiva superar esta fase.

Princípio da proporcionalidade em sentido estrito - se fossem superadas as duas primeiras etapas, seria este o princípio a ser aplicado. Aqui se pergunta: O meio utilizado encontra-se em razoável proporção ao fim perseguido? A descriminalização do aborto (e a consequente desproteção ao feto) é justificada pela quantidade de vidas poupadas pela diminuição de abortos clandestinos? Ninguém é capaz de dar uma resposta segura, porquanto só o tempo é capaz de determinar quantas gestantes terão a sua vida poupada pela redução de abortos clandestinos e quantos fetos (ou embriões, etc.) perderão a sua vida por causa da descriminalização do aborto. Mas, por dedução lógica, se por um lado a liberação total do aborto certamente diminuirá a quantidade de abortos clandestinos e, consequentemente o índice de óbito entre as gestantes, por outro lado, também aumentará a quantidade de abortos, ou seja, óbito intra-uterino. Motivo pelo qual nos parece por demais gravosa ao feto a liberação total do aborto.

Percebe-se, com efeito, a inconsistência jurídica da descriminalização total do aborto.

Foi necessário discorrer sobre esta nova tendência, porquanto ao se pretender a descriminalização total do aborto, com argumento, em última análise, na preservação da vida da gestante, uma vez que, em tese, diminuiria drasticamente a quantidade de abortos clandestinos (como consequência da descriminalização), atingiu-se de forma indireta o tema de nossa obra. É evidente que tal pleito não atinge o aborto sentimental, pois ele já é permitido pelo Código Penal. No entanto, como o argumento é direcionado a todas as formas abortivas, ou seja, pretende-se a descriminalização total, o motivo descriminante se estende a toda e qualquer forma de aborto. Razão pela qual se é sustentado que deve ser permitido o aborto em caso de gravidez espontânea, caso contrário, a vida da gestante estaria em risco, uma vez que certamente procuraria fazer o aborto clandestino, este mesmo argumento serve para o aborto sentimental, ou seja, se na gravidez espontânea, ao permitir o aborto, entende-se está tutelando a vida da gestante, no aborto sentimental, embora já haja uma nítida tutela à dignidade da gestante, haveria, também uma tutela à sua vida, até mesmo porque se não lhe fosse lícito o aborto, muito mais razão teria a gestante para se submeter a práticas abortivas clandestinas.

Mas este pensamento não se sustenta pelos motivos já explicados. Destarte, basta suprimirmos o fato de a gravidez ser resultante de estupro, para macular a permissão abortiva de inconstitucionalidade, pois seria preterido o direito do feto sem que isso fosse necessário para resguardar qualquer direito da gestante, porque, como explicado, a vida da gestante somente estaria em risco por ato ilícito de sua parte, e ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Mesmo se ignorássemos este fato (de a vida da gestante estar em risco por causa de sua conduta ilícita de fazer o aborto clandestino), haveria outras formas de se resguardar a vida da gestante, impedindo-a de realizar o aborto clandestino, sem que se impusesse ônus máximo (morte) ao feto. Motivo este que torna a tese descriminalizadora do aborto vencida pelo princípio da proporcionalidade.

Abandonamos os aspectos empíricos para retomar a acirrada discussão doutrinária que envolve o tema.

Primeiramente nos reportamos às correntes defensoras de que o direito à vida, disposto no artigo 5° da Constituição, se identifica com o exato momento inicial da vida. Segundo os defensores dessa corrente, o legislador constitucional assegurou o direito à vida, mas silenciou sobre o seu início, por isso é mister se descobrir quando isto ocorre, porque essencial para dimensionar a tutela. Para tanto, se valem de meio diversos, tais como a medicina e leis infraconstitucionais. O Código Civil, por exemplo, é muito citado para indicar a proteção ao nascituro, como a exprimir a proteção constitucional desde a concepção. O problema desta corrente é que inicia a interpretação do conceito de vida a partir de leis infraconstitucionais ou mesmo ciências médicas e, não, tendo como fonte originária a Constituição, um erro, segundo o Ministro Cézar Peluso:

“Tampouco têm peso aqui recursos hermenêuticos tendentes a interpretar a Constituição da República à luz de normas subalternas. Os conceitos de vida e de pessoa, enquanto constituam dados necessários da quaestio iuris da causa, devem ser reconstruídos, senão que construídos, nos supremos limites materiais do ordenamento constitucional” 43

Outra dificuldade para os defensores desta vertente reside em defender a constitucionalidade do aborto sentimental, porque se de fato o direito à vida, previsto diretamente no artigo 5° da Constituição, se estende à vida intra-uterina, como permitir o aborto para preservar a dignidade da gestante, visto que este direito lhe é inferior? Na verdade, tais defensores, em regra, nem vislumbram precedência do direito à vida sobre o direito à dignidade, sobretudo porque a Constituição não faz esta distinção. Ademais, incluem no conceito de vida a dignidade.

Não negamos que a vida deva ter dignidade, porém, é necessário fazer a separação para efeito de aquilatamento.

O Ministro Britto não concebe a possibilidade de a proteção constitucional (diretamente prevista no artigo 5°) ao direito à vida se iniciar ainda dentro do útero:

“Não que a vedação do aborto signifique o reconhecimento legal de que em toda a gravidez humana já esteja pressuposta a presença de duas pessoas: a da mulher grávida e a do ser em gestação. Se a interpretação fosse essa, então as duas exceções dos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal seriam inconstitucionais, sabido que a alínea a do inciso XLVII do artigo 5° da Magna Carta Federal proíbe a pena de morte (salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX)” 44

Para sustentar a tese de que a Constituição protege diretamente o direito à vida desde a concepção, portanto, teríamos de reconhecer a inconstitucionalidade dos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal, porque a Constituição não permite a pena de morte neste caso, ainda mais se considerarmos que o feto não cometera crime algum.

Ademais, como dissemos, para defender esta tese, faz-se necessário apurar quando a vida inicia, pois, a partir de então começa a tutela constitucional. No entanto, como já salientara o Ministro Marco Aurélio, não há critério objetivo para tanto. Qualquer critério que se adote não passará de uma simples perspectiva opinativa.

Dessa forma, a se adotar o entendimento de que a tutela constitucional se inicia com a concepção, além de ter de declarar a inconstitucionalidade das permissões abortivas constantes do Código Penal, nos alicerçaríamos em argumentos deveras subjetivos. Motivo pelo qual visualizamos maior coerência na tese a seguir exposta.

A idéia de que a proteção constitucional se estende diretamente somente aos já nascidos torna o sistema normativo mais harmônico. Primeiro, porque retiraríamos o conceito de pessoa a partir da própria Constituição (os estrangeiros residentes no país e os brasileiros), não invertendo o exercício hermenêutico, nos valendo de leis infraconstitucionais para tanto (como o Código Civil, por exemplo). Segundo, pisaríamos em solo mais firme, escapando da incerteza científica de se descobrir quando a vida se inicia, pois em vez de descobrir quando a vida começa, buscaríamos descobrir quando começa a tutela constitucional, que é justamente a partir do nascimento (o artigo 5° da Constituição se refere aos estrangeiros residentes no país e aos brasileiros-sempre pressupondo o nascimento).

As notícias dos anais da Assembléia Nacional Constituinte corroboram com este raciocínio, uma vez que fora cogitada sem sucesso a inserção da proteção à vida desde a concepção. Este fato, além de indicar que a intenção do legislador constitucional não foi proteger diretamente a vida desde a concepção, impôs ao legislador infraconstitucional tal tarefa, pois o simples fato de cogitar-se figurar no texto constitucional a proteção à vida intra - uterina, já demonstra a importância de sua tutela. Como dissera o Ministro Britto, o princípio da dignidade da pessoa humana é princípio tão relevante que admite transbordamento, para que a vida intra-uterina seja resguardada no plano infraconstitucional. Porém, o simples fato de não figurar diretamente no texto constitucional, mas como direito reflexo do direito dos já nascidos, denota a sua inferioridade hierárquica, de modo que se justifica a permissão abortiva do Código penal em caso de gravidez resultante de estupro, pois há uma colidência do direito à dignidade da gestante x direito à vida do feto- direito reflexo do direito dos já nascidos- com menor equivalência, o que o torna lícito. Porque, se a proteção estendida à vida intra-uterina fosse a mesma da vida extra-uterina, o aborto não seria lícito, uma vez que consubstanciar-se-ia pena de morte.

A forma como é tratada a questão no caso concreto sugere, igualmente, a inferioridade do direito à vida do feto em relação ao direito à vida dos já nascidos. Pois para a realização do aborto sentimental não é preciso provas tão robustas, bastando boletim de ocorrência, início de processo, etc. Ora, imagine se em vez de tirar a vida do feto, fôssemos tirar a vida de uma pessoa, será que nos seriam exigidas provas tão superficiais?

Não desconsideramos o fato de a continuidade da gestação impossibilitar a espera do trânsito em julgado da sentença condenatória de estupro, o que tornaria letra morta o aborto sentimental, no entanto, se de fato o direito do feto preterido fosse rigorosamente o mesmo direito à vida previsto no artigo 5° da Constituição, certamente haveria um maior rigor na exigência dos requisitos para a sua permissão.

Queremos ressaltar que a análise de leis infraconstitucionais, como o Código Penal, bem como o estudo do aborto sentimental no caso concreto, não pode nos induzir ao erro de inverter o exercício hermenêutico, interpretando o texto constitucional a partir de normas subalternas. Muito pelo contrário, tais normas devem servir para complementá-lo. Assim, a menção ao Código Penal, notadamente no tocante às permissões abortivas, bem como o modo como se desenvolve o aborto sentimental no caso concreto servem somente para demonstrar o pensamento das pessoas envolvidas (o legislador infraconstitucional; a doutrina, a jurisprudência, que entendem como suficiente simples boletim de ocorrência para a realização do aborto sentimental), de modo que de nada adiantaria fazer menção a estes temas se eles não tivessem em consonância com a Constituição. Pois, repetimos, tais argumentos servem tão-somente para complementar, nunca para modificar o sentido do texto constitucional.

Tema capaz tanto de aumentar quanto de dirimir de uma vez por todas a enorme controvérsia existente sobre a proteção à vida intra-uterina é o patamar hierárquico do Pacto de San Jose da Costa Rica no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo, porque assim estatui: “Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.” 45 E define: “Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.” 46

Em relação ao referido Pacto, tem prevalecido, na Suprema Corte, a atribuição de hierarquia supralegal, isto é, nível superior ao das leis ordinárias e inferiores ao da Constituição. Mesmo assim, já há opiniões expressivas defendendo a proteção constitucional à vida desde a concepção. Porque, para tal corrente, sendo a Constituição silente quanto ao início da vida, é preciso buscar subsídios em outras searas para se determinar o exato momento em que se inicia a tutela constitucional. Alguns procuram a resposta na medicina, mas o resultado normalmente é deveras controverso, podendo ser indicado o início da vida no momento da concepção, da ligação do feto à parede do útero, etc. Por isso, ingressam em sede infraconstitucional, se valendo, principalmente, do Código Civil, analisando a não menos controvertida redação do artigo 2° (“A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”) para, então, concluir quando começa a proteção constitucional ao direito à vida. Muitos, é verdade, antes mesmo da adesão do Brasil ao Pacto de São Jose da Costa Rica, já sustentavam que a proteção se dava desde a concepção, Justamente porque a redação do Código Civil (naquela época vigia o Código Civil de 1916, mas a redação era a mesma da do Código atual) dizia que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Para esta corrente, portanto, a adesão do Brasil ao Pacto de San Jose da Costa Rica, bem como hierarquia com que ingressou no ordenamento jurídico brasileiro, não alteraram em nada o seu posicionamento- direito à vida desde a concepção.

Há, porém, uma expressiva corrente defensora de que o Código Civil reconhece como pessoa somente os já nascidos (porque estatui “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida”), logo, somente a estes se estende o direito à vida previsto diretamente no artigo 5° da Constituição. É precisamente para os adeptos desta corrente que o Pacto de San Jose da Costa Rica trará grandes mudanças conceituais, ainda que a ele se atribua status de norma supralegal, como tem prevalecido no Supremo Tribunal Federal. Porque, sendo o aludido Pacto superior hierarquicamente ao Código Civil (pois este tem status de lei ordinária), contra ele prevalece, em caso de incompatibilidade. Assim, ainda que se entendesse o Código Civil definindo como pessoa somente quem já nasceu e, por conseguinte, só a eles se estendesse a tutela constitucional prevista no artigo 5°, a norma superior (Pacto de San Jose da Costa Rica) estendeu, indubitavelmente, esta tutela à vida intra-uterina. “Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”47 E define: “Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.”48

Vemos, nos Tribunais, decisões neste sentido. Até mesmo entre os membros da Suprema Corte, há opiniões que parecem sugerir este entendimento.

“No plano puramente jurídico-positivo, há fortes razões para adotar-se a tese de que a vida tem início a partir da concepção. Dentre outras, porque a Convenção Americana de Direitos Humanos, denominada Pacto de San Jose da Costa Rica, aprovado em 22 de novembro de 1969, e ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, ingressou no ordenamento legal pátrio não como simples lei ordinária, mas como regra de caráter supralegal ou, até mesmo, como norma dotada de dignidade constitucional, segundo recente entendimento expressado por magistrados desta Corte Suprema”49

No entanto, seguindo a nossa linha de raciocínio, qual seja, de que a Constituição deve ser interpretada a partir de seu próprio texto e não de normas subalternas (como já afirmada o Ministro Peluso), entendemos não ser suficiente a atribuição de status supralegal ao Pacto de San Jose da Costa Rica, para que haja mudança na extensão da tutela constitucional ao direito à vida. Porque assim como o Código Civil não tem o condão de modificar a tutela constitucional, outrossim, o referido Pacto não o tem, não obstante tenha status superior a uma simples lei ordinária (como o Código Civil), pois, ainda assim, seu status é inferior ao da Constituição. Como já sustentamos, independentemente do que estabelece o Código Civil, ele só terá validade se estiver em perfeita consonância com a Constituição. Destarte, se concluímos que pessoa na Constituição se refere aos já nascidos e, por conseguinte, a estes se estende a tutela à vida, dessa forma deve ser interpretado o Código Civil, sob pena de inconstitucionalidade. Ora, se uma lei ordinária (Código Civil) não pode contrariar a Constituição, uma lei supralegal (Pacto de San Jose da Costa Rica), embora em patamar acima da lei ordinária, igualmente, não tem o condão de mudar a Lei Maior.

Diante do exposto, mantendo a coerência do nosso raciocínio, entendemos que somente se atribuído status constitucional ao Pacto de San Jose da Costa Rica teríamos validamente a extensão da tutela à vida intra-uterina, digo o mesmo nível de proteção. Neste caso, a mudança ocorreria dentro do próprio texto constitucional, ou seja, a idéia que houve no seio da Constituinte de se proteger a vida desde a concepção estaria tardiamente sendo implementada.

A consequência inarredável seria a inconstitucionalidade das permissões abortivas previstas no Código Penal, quais sejam, em caso de risco de morte à gestante, e em gravidez resultante de estupro, porque, segundo o Ministro Carlos Britto, a Constituição proíbe pena de morte.

Só uma observação em relação a esta afirmação do Ministro. No caso de gravidez resultante de estupro, concordamos plenamente com ele. Entretanto, quando há risco iminente de morte à gestante, como os direitos em colidência teriam o mesmo peso (vida do feto e a vida da gestante), pensamos que o direito infraconstitucional poderia continuar tutelando esta situação, sem que, para tanto, incorresse em inconstitucionalidade. Quem sabe poder-se-ia arguir estado de necessidade para discriminar o aborto em caso de risco de morte à gestante. Mas esta é uma questão que refoge ao ponto central da nossa obra.

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