CONCLUSÃO
A indagação acerca da constitucionalidade do aborto sentimental enfrenta as mais variadas controvérsias.
A questão crucial, indubitavelmente, consiste em responder se a referida permissão abortiva afronta o direito constitucional à vida.
Uma parcela dos intérpretes, muitas vezes influenciada pela religião, sustenta a inconstitucionalidade do aborto sentimental. O argumento é o mais comum: a Constituição protege a vida desde o seu início. E como em qualquer área da medicina (ou até da religião) que se busque a resposta sobre o início da vida, dificilmente se negará que o feto, o embrião ou até mesmo o ovo já possuem vida, concluem tais intérpretes pela inconstitucionalidade do aborto sentimental pela violação ao direito supremo.
Reconhecem, é verdade, o direito da gestante violentada (dignidade), mas afirmam a precedência do direito à vida (do feto) sobre qualquer direito que lhe seja conflitante.
Alguns adeptos dessa corrente se valem ainda do Código Civil, para defender que a proteção constitucional à vida se inicia desde a gravidez fisiológica. O fato de o referido Código proteger os direitos do nascituro estaria a significar exatamente isso.
Essa linha de raciocínio, guarda um certo grau de coerência , afinal, a Constituição prevê a inviolabilidade do direito à vida aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. E como salientamos, para ser qualificado como brasileiro, bem como residente no país (e não no útero), pressupõe-se o nascimento. Conclusão esta que nos levará inexoravelmente a sustentar a proteção constitucional (direta) somente à vida extra-uterina. No entanto, os defensores da inconstitucionalidade do aborto sentimental, poderiam argüir que o aludido texto constitucional não deve ser interpretado literalmente, sob pena de não tutelar, igualmente, a vida dos estrangeiros residentes no exterior, que estivessem a passeio no Brasil. Assim, o fato de o legislador constitucional ter mencionado “brasileiros” e estrangeiros “residentes no país” não pode ser interpretado literalmente (restringindo o alcance da norma), devendo abranger também os estrangeiros residentes no exterior e a vida intra-uterina.
Embora discordemos dessa tese (pelos motivos que serão explicados), não negamos que os seus seguidores possuem argumentos razoáveis.
Uma segunda vertente (talvez majoritária, mas, a nosso ver, mais incoerente), igualmente, defende que o direito constitucional à vida inicia-se desde a gravidez fisiológica. A idéia é exatamente a mesma da corrente anterior: a constituição protege a vida desde o seu início, e como a vida, para os adeptos dessa corrente, se inicia com a gravidez fisiológica, é a partir desse momento que a tutela começa.
Para corroborar com essa idéia, os seguidores dessa tese citam principalmente o Código Civil (direitos do nascituro) e a proibição do aborto, pelo Código Penal.
Mas logo surgem as diferenças entre as duas correntes.
Para a primeira teoria, tendo em vista que o direito à vida se inicia com a gravidez fisiológica, desde esse momento não pode mais sofrer solução de continuidade, ainda que haja conflito com outro direito (desde que não seja a vida), porquanto, trata-se de direito supremo, que tem precedência sobre qualquer outro. Por isso, prevalece o direito à vida do feto ante o direito à dignidade da gestante (que não poderá abortar). Para a segunda corrente, mesmo reconhecendo a existência do direito à vida desde a gravidez fisiológica, o direito supremo pode sucumbir ante a outro direito (mesmo que não seja o direito à vida). Esse raciocínio leva-os a permitir o aborto (supressão da vida do feto) quando a gravidez resulta de estupro (preservando a dignidade da gestante).Neste ponto reside o ponto mais ilógico dessa vertente. Afinal, como poderia algum direito prevalecer sobre o direito à vida? Argúem tais seguidores que a Constituição não estabelece hierarquia entre o direito à vida e o direito à dignidade. Com a devida vênia, nem precisaria. O direito natural, a própria subsistência da espécie vindicam uma superioridade hierárquica do direito supremo. Caso contrário, se algum dia nós estivermos vivendo uma vida indigna por causa da superpopulação, em nome da dignidade seremos carrascos?
Ademais, o fato de a Constituição proibir a pena de morte (salvo em caso de guerra declarada) evidencia que a vida tem valor supremo, não podendo ser suprimida para que outro direito de menor equivalência seja preservado.
A tese de que o direito à vida é preponderante sobre qualquer outro direito parece difícil de ser refutada. Quiçá, possa se abrir uma exceção quando os direitos colidentes pertencerem a uma única pessoa, como é o caso das Testemunhas de Jeová, que não fazem transfusão de sangue, não obstante esteja em risco a sua vida. Neste caso, prevalecendo o direito de religião, sucumbirá o direito à vida. No entanto, ambos os direitos pertencem a uma mesma pessoa. E se para a testemunha de Jeová viver desrespeitando a sua religião é pior do que morrer, quem sabe não seja lícito respeitar a sua vontade religiosa. Vimos algumas decisões nesse sentido.
Mas continuamos reafirmando que quando os direitos colidentes pertencerem a pessoas diferentes (como é o caso do direito à vida do feto X direito à dignidade da gestante), sempre deve prevalecer o direito que é pressuposto para a existência do Estado brasileiro - à vida.
A terceira corrente se demonstra mais atenta aos princípios e normas que cercam o tema.
Primeiramente, inicia a interpretação a partir do topo da pirâmide normativa (Constituição).
Em sede constitucional verifica se o legislador delimitou a extensão do direito à vida. Analisando o seu artigo 5° (Direito à vida aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, ou seja, os já nascidos) inclina-se a sustentar que a tutela constitucional direta começa apenas com o nascimento com vida.
A intenção do legislador constitucional respalda a sua tese, vez que, segundo os anais da Assembléia Nacional Constituinte, cogitou-se inserir no texto constitucional a proteção à vida intra-uterina (logo, se não foi inserto é porque não quis proteger diretamente).
Mas como a vida humana é algo tão digno, qualquer processo (feto, embrião ou ovo) que deságue no ser humano (já nascido) deve ser protegido pelo legislador infraconstitucional, porque se por um lado não pretendeu o legislador constitucional proteger diretamente a vida intra-uterina, igualmente, foi cogitado, sem sucesso, ela ser de inteira responsabilidade da gestante, que poderia dispor do feto como se fosse parte do seu próprio corpo.
Assim, o legislador constitucional ao não permitir que a gestante tivesse inteiro controle sobre a vida intra-uterina nem proteger diretamente a vida desde a concepção, deixou uma diretriz ao legislador infraconstitucional, estabelecendo implicitamente que há um bem jurídico a ser tutelado, embora em equivalência inferior ao direito à vida extra-uterina, posto que desta é derivado.
Sendo um direito de equivalência inferior ao direito constitucional à vida, compreende-se seja permitido o aborto sentimental (suprime-se um direito constitucional reflexo - qual seja - vida do feto, para resguardar um direito constitucional - dignidade da gestante). Não havendo, portanto, qualquer inconstitucionalidade.
A prevalecer o entendimento de que a proteção constitucional se inicia a partir da gravidez fisiológica, inevitavelmente, o aborto sentimental deveria ser declarado inconstitucional, pois, como bem asseverou o Ministro Carlos Britto, consubstanciar-se-ia pena de morte.
Contudo, tema capaz de dar novo rumo à questão é o Pacto de San José da Costa Rica, vez que em seu corpo possuem artigos que igualam a proteção à vida intra-uterina à extra-uterina.
Mas como interpretamos a Constituição a partir de seu próprio texto (e não a partir de normas subalternas), asseveramos que a proteção à vida intra-uterina somente ganhará novo status caso o referido Pacto seja considerado pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal como equivalente à emenda constitucional ,e não como norma supralegal. Tal tese já tem defensores na Suprema Corte (Ministro Celso de Melo), mas ainda não é majoritária.
Em síntese, conquanto todas as correntes possam ser questionadas, esta última nos parece mais fortalecida após as indagações que foram levantadas.
Com efeito, sustentamos que o aborto sentimental não é inconstitucional, não afronta o direito à vida previsto no artigo 5° da Constituição. Mas diferentemente da outra doutrina que também defende a constitucionalidade do aborto sentimental com base na possibilidade de o direito à dignidade poder prevalecer sobre o direito à vida, fundamentamos o nosso entendimento no fato de a Constituição prever somente uma proteção reflexa à vida intra-uterina, portanto, com status inferior ao da vida extra-uterina, o que permite sucumba ela (vida intra-uterina) diante de um direito assegurado diretamente pela constituição (dignidade da gestante).
Há, ainda, outras correntes acerca do tema. Mas, em regra, não passam de variações das correntes já abordadas.
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Ministro Ricardo Lewandowski: Voto sobre as células – tronco.
Ministro Cezar Peluzo: Voto sobre as células – tronco.
Marco Aurélio de Melo: Voto sobre as células - tronco;
Ministro Carlos Britto: Voto sobre as células – tronco;
Ministro Carlos Britto: Voto sobre as células – tronco.
Ministro Carlos Britto: Voto sobre as células-tronco;
Ministro Carlos Britto: Voto sobre as células - tronco
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Ministro Cezar Peluzo: Voto sobre as células –tronco.
Ministro Carlos Britto: Voto sobre as células – tronco.
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Artigo 4°, 1°, do Pacto de San Jose da Costa Rica;
Artigo 1°, 2°.
Ministro Ricardo Lewandowski: Voto sobre as células – tronco.