Resumo
O presente trabalho tem por objetivo analisar a compatibilidade da aplicação da teoria do adimplemento substancial aos contratos de alienação fiduciária nas ações de busca e apreensão regidas pelo Decreto-Lei 911/1969, a fim de obstar a resolução do vínculo contratual em face do devedor de boa-fé que adimpliu substancialmente a sua obrigação oriunda do contrato de empréstimo, em razão do Resp. 1.622.555/MG que vedou sua aplicação nestes casos. Para construção do trabalho, levaram-se em consideração os conceitos de constitucionalização do direito civil e sua influência na matéria contratual, os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, a teoria do adimplemento substancial e a alienação fiduciária regida pelo Decreto Lei 911/1969 para, por fim, observado o Resp. 1.622.555/MG, concluir pela ausência de razoabilidade da inaplicabilidade absoluta da teoria do adimplemento substancial como óbice à resolução contratual, do devedor de boa-fé que adimpliu substancialmente a sua obrigação, advinda da execução da liminar de busca apreensão do bem objeto. Acerca da metodologia, aplicou-se a hipotético-dedutiva, por meio de pesquisa bibliográfica atinente aos conceitos que contemplam os tópicos do estudo.
Palavras-chave: Alienação fiduciária – Adimplemento substancial - contratos
INTRODUÇÃO
A origem dos contratos remonta aos primórdios da civilização humana e está intrinsecamente ligada à necessidade de estabelecer acordos e compromissos entre indivíduos ou grupos para regular as relações sociais, econômicas e comerciais.
Nesse contexto, a evolução do instituto contrato e a maneira de interpretá-lo passaram por significativas mudanças ao longo do contexto histórico em que se encontrava, desde restrições impostas pelos Estados absolutistas, assim como na intervenção mínima do Estado Liberal, até o paradigma atual, com uma visão flexível e equitativa da análise contratual, onde as partes, dentro da autonomia privada, são livres para negociar e estabelecer as escolhas que lhes convém, observados, contudo, os princípios de caráter social inerentes aos contratos, caracterizados pelo Estado Social de Direito, como o da boa fé objetiva e da função social.
Diante dessa nova perspectiva, e com ênfase nesta análise principiológica de defesa dos interesses sociais, as quais possuem o escopo de equilibrar as relações contratuais, evitando abusos, desequilíbrios e injustiças, representando um deslocamento do foco exclusivo nos interesses individuais para uma perspectiva mais ampla, que considera o impacto social e a necessidade de uma atuação ética e responsável no âmbito contratual, não parece plausível a admissão de retrocessos interpretativos que consignem medidas que vão de encontro ao objetivo destes, mas sim de meios que visem garanti-los.
E é nesse sentido que teorias como a do adimplemento substancial atuam e possuem sua finalidade, haja vista sua razão de ser estar diretamente ligada aos referidos princípios, a qual, inclusive, pode ser vista como um meio de promoção prática destes, analisado o caso concreto, prezando, em suma, pela manutenção das relações contratuais em face de meras inexecuções que, por si só, não configurem motivos para a resolução do pacto contratual.
Tal teoria, de origem no Common Law, foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro no final do século passado, mesmo que sem previsão legislativa expressa, estando presente nas jurisprudências dos Tribunais e sendo fonte de diversas decisões durante este período.
Nesse viés, o presente estudo motiva-se por uma das mais relevantes decisões que envolvem tal teoria, a decisão proferida pelo STJ no REsp.1.622.555/MG, julgado em fevereiro de 2017, na qual, por maioria dos Ministros ora julgadores, decidiu-se pela inaplicabilidade absoluta da aplicação da teoria do adimplemento substancial às ações de busca e apreensão, advindas da falha prestacional da obrigação do devedor nos contratos de alienação fiduciária de bens móveis, obstando a aplicação do instituto principiológico.
Ocorre que, conforme ensina Barroso:
O sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça do caso1
Nesse contexto, utilizando o supracitado ensinamento como uma espécie de lupa jurídica para um melhor entendimento do tema deste estudo, tem-se que a concepção de “sistema jurídico ideal” proferida pelo ministro Barroso não comporta mesmo entendimento para os Ministros do STJ que proferiram os votos no sentido de negar, de forma absoluta, a aplicação da teoria do adimplemento substancial em face do procedimento de busca e apreensão previsto no Decreto-Lei 911/69 – regra positivada -, tendo em vista a decisão do julgado provir de uma análise fria da lei especial.
Ademais, segundo Tartuce2, pensamento o qual me filio, tal decisão importa tamanho retrocesso, haja vista a denegação da aplicabilidade dos princípios basilares da teoria na referida norma, com base em fundamentos arrazoados, bem como justificando não caracterizar incentivo ao inadimplemento das obrigações, considerando a análise subjetiva do caso a caso e, por fim, pondo em cheque o real benefício da medida em relação aos credores.
Nesse contexto, portanto, surge a necessidade de uma (re)análise do julgado no REsp.1.622.555/MG, a fim de fazer o seguinte questionamento: a desconsideração da possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial nas ações de busca e apreensão, como óbice à resolução de contratos substancialmente adimplidos, se coaduna com os princípios da boa fé objetiva e da função social dos contratos ou vai de encontro destes?
Para tanto, utilizou-se do método hipotético-dedutivo, por meio de pesquisa bibliográfica atinente aos conceitos que contemplam os tópicos do estudo, a fim de buscar responder o problema acima descrito.
Dessa forma, haja vista a relevância do tema, considerando, no contexto fático, a virtuosa adesão dos indivíduos a tais contratos e, portanto, importando a defesa de uma análise justa na relação contratual, onde, na grande maioria das vezes, o devedor é parte vulnerável frente a grandes instituições financeiras, tem-se este como maior fator motivacional da realização da presente pesquisa, a fim de buscar colaborar para uma reanálise acerca da questão temática, importando uma tentativa de contribuição acadêmica para o tema e, inclusive, de formação de juízo de valor ao leitor sobre a qual tese entenda melhor se estabelecer.
CONTRATOS NA PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL
A compreensão do Direito como um fenômeno social nos permite visualiza-lo de forma mais abrangente, pelo qual se tem a mais nítida concepção do que ele de fato é, uma Ciência Social, a qual apresenta-se como um conjunto de regras em constante desenvolvimento, à medida que se desenvolve a sociedade em que está submetido, a fim de “satisfazer necessidades em sua existência coletiva de acordo com determinados valores mais ou menos compartilhados, como justiça, liberdade, respeito aos direitos humanos, etc”3.
Partindo dessa premissa, o advento do Estado liberal em face dos Estados absolutistas, como “reação da sociedade moderna aos constantes atos de intervenção e restrição impostos pelos Estados absolutos”4, prezando, essencialmente, pela liberdade e igualdade, é um exemplo perceptível do conceito de fenômeno social em aplicação. Tal mudança de concepção esta – baseada no ideal de direitos de liberdade e igualdade – promoveu uma alteração no paradigma normativo. Em nosso ordenamento não foi diferente, servindo de profunda inspiração para o Código Civil de 1916, moldado a tal ideologia vigente na sociedade brasileira no séc. XIX5, fundado em uma visão individualista e patrimonialista.
Nessa perspectiva, o direito contratual sofreu forte influência do modelo adotado pelo Código brasileiro à época, constituindo o que a doutrina denomina como teoria tradicional do contrato, a qual “estava assentada na livre e consciente manifestação de vontade dos figurantes, de modo mais amplo possível, com interferência mínima do legislador ou do juiz”6, tendo como princípios basilares a autonomia da vontade e o pacta sunt servanda, ou seja, formado o vínculo jurídico, este passava a ser lei entre as partes.
Contudo, retomando a ideia evolutiva do Direito, o qual se desenvolve em consonância com as concepções sociais contemporâneas, o modelo ideológico liberal também experimentou de tal fenômeno, pelo qual a tão cobiçada liberdade e igualdade individual passaram a serem revistas, haja vista as consequências de desigualdade social – no plano material - ocasionadas por seu uso desmedido, reclamando o que viria a ser o Estado Social.
Seus primórdios deram-se na segunda década do século XX, sendo impulsionado, segundo Paulo Lôbo, “por exigências de justiça social, que postularam muito mais que a liberdade e a igualdade formais”7. Passava-se, assim, a uma nova concepção ética de justiça, em caráter social e não mais voltado ao indivíduo como fim em si mesmo, característico do modelo liberal.
Em nosso ordenamento, o constitucionalismo social dá-se a partir da Constituição de 1934, contudo, em relação ao objeto de estudo do presente trabalho, é a Constituição Federal de 1988 que proporciona a mudança de paradigma, em razão de sua importância na modificação da realidade jurídica brasileira8 e os avanços promovidos no campo do direito privado, como a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) - ante a previsão de defesa do consumidor como direito fundamental (art. 5º, XXXII, CF/88) e de princípio orientador da atividade econômica (art. 170, V, CF/88) - e a necessária posterior nova codificação civil brasileira (Lei 10.406/2002), à luz da constitucionalização do direito civil, a qual “realça a necessária releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição, redefinindo as categorias jurídicas civilistas a partir dos fundamentos principiológicos constitucionais da nova tábua axiológica fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), na solidariedade social (art. 3º, III) e na igualdade substancial (arts. 3º e 5º)”9.
Nesse diapasão, cumpre mencionar o ensinamento que Paulo Lôbo nos proporciona acerca da constitucionalização do direito civil e sua repercussão nos contratos.
A constitucionalização do direito civil salienta a centralidade da pessoa e dos valores a ela imanentes, que a CF/88 elevou como fundamento da organização social e do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III), ao lado da solidariedade social, o que conduz a uma concepção do contrato que não se exaure na autorregulação dos interesses privados.10
Denota-se, portanto, a relevância que a Constituição dá a proteção do indivíduo, de modo a considera-lo como fonte central de todo ordenamento constitucional, em face do princípio vetor da dignidade da pessoa humana que, ao lado do princípio da solidariedade (art.3º, I da CF), atua como meio de promovê-lo, com escopo de preponderar os fins da justiça social, de modo que, em matéria contratual, passa-se a caracterizar o contrato em perspectiva abrangente, considerando, assim, além da proteção dos direitos dos contratantes, também os de terceiros que não fazem parte da relação contratual, de modo a compreendê-lo em relação ao todo que se insere, e não somente sobre as partes que dele fazem parte.
Nesse sentido, a fim de fazer preponderar a tutela dos direitos imanentes à pessoa, atua o Estado, pelo que denomina-se dirigismo contratual11, estatuindo “limitação da manifestação de vontade dos contratantes, imposta por normas de ordem pública”12, a fim de mitigar abusos e excessos decorrentes da liberdade contratual, tanto em perspectiva dos pactuantes, em eventuais desequilíbrios que destoem dos vetores emanados pela Carta Magna, quanto em relação a terceiros que possam ser afetados pelos efeitos do negócio jurídico.
Assim, diante desse viés constitucional, tais efeitos emanam sobre os contratos em geral, de modo que tanto os oriundos de leis especiais, como os pactuados em relações de consumo (CDC), quanto nas relações puramente civis, albergados pelo Código Civil – lei geral -, devem observar a principiologia axiológica constitucional incidente às leis, permitindo com que, inclusive, diante da nova face “despatrimonializada” do Código Civil, decorrente dos princípios sociais nele presentes, seja possível aplicá-lo, também, aos contratos incidentes do Código de Defesa do Consumidor, desde que isso não prejudique o consumidor vulnerável13 (teoria do diálogo das fontes).
Nesse contexto, pois, a doutrina concebe o contrato sob o conceito denominado contemporâneo, conforme menciona-se o ensinamento de Stolze e Filho, sendo este:
[...] negócio jurídico bilateral, por meio do qual as partes, visando a atingir determinados interesses patrimoniais, convergem as suas vontades, criando um dever jurídico principal (de dar, fazer ou não fazer), e, bem assim, deveres jurídicos anexos, decorrentes da boa-fé objetiva e do superior princípio da função social. 14 (grifo do autor)
Atenta-se aos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, os quais, presentes na codificação civilista, inserem-se como princípios positivados, admitindo a natureza jurídica também de cláusulas gerais15, as quais, conforme leciona Tartuce, mencionando o Min. Gilmar Mendes, atuam como “porta de entrada dos valores constitucionais nas relações privadas”16.
2.1. Boa-fé Objetiva
Conforme extrai-se do supracitado conceito, o princípio da boa-fé objetiva pressupõe o cumprimento de deveres anexos à obrigação principal, tidos como “deveres de conduta a ser observado pelos contratantes”17, os quais fundam-se “na honestidade, na retidão de propósitos, na lealdade, na prestação de informações e, fundamentalmente, na consideração para com os interesses da outra parte”18, recaindo, salienta-se, “não apenas sobre o devedor, mas, também, sobre o credor”19.
Conforme preceitua Tartuce, citando enunciado proferido na IV Jornada de Direito Civil, o princípio eleva-se à supremacia do interesse público, assinalando que a “boa-fé objetiva é, portanto, um preceito de ordem pública, como reconhecido pelo Enunciado n. 363. do CJF/STJ” 20. Logo, extrai-se do referido enunciado que: “os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, sendo obrigação da parte lesada apenas demonstrar a existência da violação”.
Nesse mesmo sentido, também assinala Galindo tratar-se a boa-fé objetiva de um preceito de ordem pública, a qual, ensina, fundamenta-se no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF)21. Diante da referida fundamentação constitucional, interessante mencionar ensinamento de Lêdo e Marquesi, os quais apontam que:
[...] a boa-fé densifica a dignidade do sujeito nas relações negociais, porque, mantendo o homem no centro da relação jurídica, com a efetiva consideração das atitudes éticas, probas e leais entre os contratantes, possibilita a realização do homem nas dimensões nas quais a dignidade da pessoa humana se manifesta, como a liberdade, igualdade, solidariedade e o seu valor intrínseco.22
Quanto sua previsão, a boa-fé encontra-se positivada nos artigos 11323; 18724 e 42225 do Código Civil, assim como nos artigos 4º, III26 e 51, IV27 do Código de Defesa do Consumidor.
Em referência aos dispositivos elencados no Código Civil, Venosa28 imputa “três funções nítidas no conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (art. 113); função de controle dos limites do exercício de um direito (art. 187); e função de integração do negócio jurídico (art. 422)”.
Gomes29 também atribui funções ao princípio que, porém, denomina função interpretativa, supletiva e corretiva. Acerca de tais funções, ressalte-se, contudo, a função corretiva, a qual Gomes estabelece como um dos fundamentos de aplicação da teoria do adimplemento substancial, a qual analisaremos a seguir, em hipótese de abuso de direito, conforme leciona:
[...] a função corretiva do princípio da boa-fé.[...] atua principalmente no controle das cláusulas abusivas e como parâmetro para o exercício das posições jurídicas. Sob esse aspecto, destaca-se o adimplemento substancial (substantial performance), hipótese em que o contratante executa grande parte de suas obrigações e somente deixa de executar parte insignificante perante o todo, cuja consequência principal é impedir a resolução do contrato sob alegação de inadimplemento, além de outras figuras ligadas ao abuso do direito [...] O Código Civil de 2002 traz a boa-fé em função corretiva no art. 187, ao erigi-la em critério de determinação do abuso do direito[...]30 (grifo do autor)
Extrai-se, pois, conforme preceitua o autor, a clara função limitadora que o princípio exerce, proveniente do já mencionado dirigismo contratual, de modo que diante de tais critérios, serve a boa-fé objetiva como parâmetro à tomada de decisões em litígio, inserindo-se como cláusula geral que possibilita a intervenção do magistrado para o fim de melhor equilibrar o vínculo jurídico.
Menciona-se, ainda, de forma mais sucinta, como insere Neto, mencionando Cláudia Lima Marques, que na “nova teoria contratual, explica a autora, a boa-fé objetiva tem dupla função como fonte de deveres de conduta e como causa limitadora do exercício dos direitos subjetivos”31.
Denota-se, portanto, em síntese, acerca do princípio, como sendo um padrão ético-social de conduta a ser seguida, em ambos os pólos da relação contratual, de modo a orientar os pactuantes para o melhor cumprimento da avença, bem como servindo de paradigma a decisões judiciais, em hipótese de litígio, de modo que, ir de encontro a tal preceito, encontra uma das hipóteses de cometimento de abuso de direito.
2.2. Função Social dos Contratos
O princípio da função social dos contratos é fruto do advento do já referenciado Estado Social, organização de estado caracterizada pelo “marco da viragem da concepção individualista para a concepção solidária do direito privado”32.
Tal princípio não possui positivação expressa na Carta Magna, sendo, porém, conforme doutrina majoritária, sua concepção extraída do princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF) que, conforme o artigo 170 da Constituição Federal, é um dos princípios que condicionam o exercício da atividade econômica, sendo o contrato, por sua vez, instrumento que materializa os negócios jurídicos decorrentes de tal atividade, devendo, consequentemente, observar o exercício da devida função social.
Nesse sentido, é como leciona Lobo:
Com exceção da justiça social, a Constituição não se refere explicitamente à função social do contrato e das demais obrigações. Fê-lo em relação à propriedade, em várias passagens, como no art. 170, quando condicionou o exercício da atividade econômica à observância do princípio da função social da propriedade. A função social da propriedade afeta necessariamente os negócios jurídicos, como instrumentos próprios que a fazem circular.33
Contudo, sua positivação veio posteriormente com o advento do Código Civil, que, segundo Tartuce, “em matéria de contratos, o Código Civil de 2002 foi o primeiro entre todos – e continua sendo, em todo o planeta –, a afirmar a função social do contrato como limite à autonomia privada, pelo que está previsto nos seus artigos 421 e 2.035, parágrafo único” 34.
Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.
Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
Trata-se, portanto, aliado aos dispositivos supracitados, conforme leciona Gomes35, de evidente norma de ordem pública, servindo como paradigma e meio de intervenção aos contratos que violem preceitos que revestem a supremacia do interesse público, diante do ideal que sobrepõe o interesse coletivo sobre o individual, de modo que a locução “função social” caracteriza a ideia de que o contrato visa a atingir objetivos que, além de individuais, são também sociais.
Infere-se do referido princípio, pois, uma concepção de integração social, de modo que os contratos passam a ser vislumbrados em vista do contexto em que se inserem, e não conforme a perspectiva liberal já comentada, de forma fechada entre os pactuantes.
Nesse sentido de justiça social, menciona-se nova passagem do mestre Tartuce, o qual leciona que:
[...]os contratos devem ser interpretados de acordo com a concepção do meio social onde estão inseridos, não trazendo onerosidade excessiva às partes contratantes, garantindo que a igualdade entre elas seja respeitada, mantendo a justiça contratual e equilibrando a relação onde houver a preponderância da situação de um dos contratantes sobre a do outro.36
Desse modo, de suma relevância demonstra-se o referido princípio, conforme se extrai, ao passo que atua como fonte de limitação a fins indesejados advindos da relação contratual, servindo como meio à aplicação das medidas necessárias ao restabelecimento da devida “função” a que se propunha e espera do contrato.
Nesse contexto, Miragem esclarece que:
[...] a função social poderá informar o juiz, tanto na identificação da necessidade de conservação do contrato – e a partir disto determinar aos esforços de integração do juiz a finalidade de mantê-lo -, quanto na possibilidade de, em certos casos, promover a revisão dos termos do contrato. 37
Interessante mencionar, aliado ao disposto por Miragem, conforme preceitua Tartuce, que o princípio da função social dos contratos possui “íntima relação” com o princípio da manutenção dos contratos, “pois revela a importância dos pactos perante o meio social”38.
Nesse mesmo sentido, menciona-se o enunciado nº 22 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil, em 2004, o qual, além de reiterar sua correlação com o princípio da conservação dos contratos, também o caracteriza como uma cláusula geral.
Enunciado nº 22: A função social do contrato, prevista no art. 421. do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio da conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.
Resta claro, pois, da análise do princípio em questão, quanto à relevância dos pactos contratuais para o meio social, de modo a servir como paradigma às obrigações que não estejam de acordo com os valores sociais a que se inserem, assim como, prezando pela manutenção dos vínculos, possibilitando alterações necessárias a fim de ajustá-lo aos ideais de justiça.