Resumo: O presente texto jurídico tem por finalidade precípua analisar o instituto da revisão anual do salário dos servidores públicos a luz do artigo 37, X, da Carta Magna de 1988. Visa ainda analisar a possibilidade de impor ao Governador omisso a prática de crime de responsabilidade o que possibilita condições de suspender o Governador de suas funções conforme determina o art. 7º, item 9 da Lei Federal nº 1.079, de 1950.
Palavras-chave. Salário; servidor; público; revisão; anual; imposição; legal.
As leis existem para serem cumpridas. Se a lei existe e encontra-se em vigor, é claro que cabe ao cidadão o seu cumprimento, sob pena de incorrência nas sanções decorrentes. Mas é sabido que a lei deve ser cumprida não somente pelo particular, mas todos se submetem ao império da lei, inclusive o próprio Estado deve rigorosa obediência aos ditames legais.
Como é de conhecimento, a revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos é um direito fundamental impróprio previsto na Constituição Federal de 1988, especificamente no artigo 37, inciso X, art. 91, inciso VII, da Constituição Estadual mineira de 1989, combinado com o artigo 74 da Lei nº 1079, de 1950, conforme transcrevem os seguintes dispositivos:
Art. 37.A administração pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
X – A remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39. somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, sendo assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices.
Art. 91. São crimes de responsabilidade os atos do Governador do Estado que atentem contra a Constituição da República, esta Constituição e, especialmente, contra:
III – o exercício dos direitos políticos, individuais, coletivos e sociais;
V – a probidade na administração;
VI – a lei orçamentária;
VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Art. 74. Constituem crimes de responsabilidade dos governadores dos Estados ou dos seus Secretários, quando por eles praticados, os atos definidos como crimes nesta lei.
Além do direito de representação assegurado pela Constituição Federal de 1988, a Constituição Estadual, em seu artigo 91, § 2º, faculta a qualquer cidadão denunciar o Governador perante a Assembleia Legislativa por crime de responsabilidade. Nesse mesmo sentido, o artigo 75 da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, onde se consigna ser permitido a todo cidadão denunciar o Governador perante a Assembleia Legislativa, por crime de responsabilidade.
Ademais, ressalta-se que o salário é a remuneração que o trabalhador recebe em troca do serviço prestado, possuindo uma relevância que transcende a mera compensação financeira. Historicamente, o termo tem origem no latim salarium, designando tanto uma quantia em dinheiro quanto, em determinados contextos, o fornecimento de sal – bem de elevado valor na Antiguidade – o que evidencia sua importância para a subsistência e a dignidade dos trabalhadores. Na contemporaneidade, o salário desempenha funções sociais essenciais, pois não só assegura o acesso a condições mínimas de vida (como alimentação, moradia, saúde e educação), mas também representa o reconhecimento do esforço, das habilidades e da dedicação dos trabalhadores, contribuindo para o seu desenvolvimento pessoal e profissional.
Além disso, o salário é vital para a circulação de renda na economia, impulsionando o consumo, o investimento e, consequentemente, o crescimento econômico, sendo um importante instrumento para a redução das desigualdades sociais e a manutenção da estabilidade econômica, especialmente em períodos de crise. Todo trabalhador tem o direito, se não houver aumento salarial, ao menos à revisão geral de seus vencimentos, de forma a evitar que a inflação corroa seu poder aquisitivo.
Nesse contexto, a recomposição salarial dos servidores públicos revela-se um direito fundamental impróprio, garantido pelo artigo 37, inciso X, “in fine”, da Constituição Federal de 1988. Este dispositivo determina que a remuneração dos servidores e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39. somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, com a imprescindível revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices. A inobservância desse direito não só fere a dignidade dos servidores, como compromete a qualidade e a continuidade dos serviços públicos prestados à população.
Outrossim, o artigo 34, inciso VII, alínea “b”, da Constituição Federal, prevê a possibilidade de intervenção da União nos Estados diante da violação dos princípios sensíveis, dentre os quais se incluem os direitos fundamentais da pessoa humana. No mesmo sentido, o artigo 91 da Constituição Estadual de 1989 estabelece que constitui crime de responsabilidade qualquer ato do chefe do Executivo estadual que atente contra a Constituição Federal, a Constituição Estadual e o cumprimento das leis. Ademais, qualquer cidadão pode denunciar o Governador perante a Assembleia Legislativa, e, caso a acusação seja admitida por dois terços dos membros da Casa, o chefe do Executivo será submetido a processo e julgamento.
Dessa maneira, a omissão no cumprimento da recomposição salarial dos servidores configura crime de responsabilidade, não podendo ser justificada com base em dificuldades de gestão ou na teoria da reserva do possível. Ao negligenciar a revisão anual dos vencimentos, o Estado desrespeita um direito constitucional, contribuindo para o aviltamento dos salários e a consequente perda do poder de compra dos trabalhadores do serviço público.
A recomposição salarial dos servidores públicos não deve ser encarada apenas sob uma ótica fiscalista, mas como um elemento essencial para a estabilidade econômica e social do país. A remuneração dos servidores possui caráter de sobrevivência, estando diretamente vinculada à natureza essencial das funções desempenhadas por esses profissionais e à estabilidade financeira necessária para a continuidade dos serviços públicos. Diferentemente do setor privado, em que os salários podem variar conforme a lucratividade das empresas, a remuneração do funcionalismo público exerce função social fundamental, assegurando a dignidade do servidor e a eficiência da administração pública.
A manutenção do poder aquisitivo dos servidores previne a precarização de seus vencimentos, evitando que fiquem sujeitos às oscilações do mercado. Muitos desses profissionais atuam em áreas estratégicas, como saúde, segurança e educação, e a ausência de uma remuneração justa pode resultar na desmotivação, na evasão de quadros qualificados e, por conseguinte, na deterioração da qualidade dos serviços prestados à população. Ademais, o pagamento regular dos salários tem impacto direto na economia, movimentando o comércio e garantindo um fluxo financeiro contínuo, mesmo em tempos de crise.
Outro aspecto fundamental da recomposição salarial é a correção inflacionária. Sem reajustes periódicos, o poder de compra dos servidores é gradativamente reduzido, comprometendo sua capacidade de arcar com despesas básicas e de manter uma vida digna. O congelamento dos vencimentos ocasiona dificuldades financeiras, aprofundando o risco de endividamento e a precarização das condições de trabalho dos servidores públicos.
Portanto, o respeito à recomposição salarial não pode ser tratado como mera liberalidade do gestor público, mas sim como uma obrigação constitucional. Valorizar os servidores por meio da manutenção do poder de compra de seus vencimentos é um investimento na continuidade e na qualidade dos serviços essenciais, garantindo que o Estado cumpra seu papel de promotor do bem-estar social e de justiça econômica.
No tocante ao argumento de que o Estado careceria de fluxo de caixa para realizar a revisão geral dos salários dos servidores, cumpre destacar que é de conhecimento público há Governos que aumentam seus próprios salários. Além disso, sabe-se que há governos que autorizam inúmeros concursos públicos. Se o Estado não dispõe dos recursos necessários para cumprir as leis vigentes e realizar a revisão geral dos salários dos servidores, não há justificativa para o aumento dos próprios salários do Governo e a autorização para abertura de concursos.
Nesse sentido, o Governador do Estado que age dessa forma viola o artigo 7º, item 9 da Lei Federal nº 1.079, de 1950, eis que se omitindo na recomposição geral dos salários dos servidores públicos, artigo 37, X, da CF/88, viola patentemente dos direitos e garantias individuais, bem assim os direitos sociais dos servidores públicos, hoje assegurados nos artigos 5º e 7º da Constituição da República de 1988.
Destarte, o direito fundamental ao salário se insere no contexto da proteção à dignidade da pessoa humana e à valorização do trabalho, pilares essenciais de uma sociedade justa e igualitária. Em sua essência, o salário é a contraprestação que o trabalhador recebe pela prestação de serviços, representando não apenas uma remuneração, mas também um meio de garantir a subsistência e o acesso a condições mínimas de vida, como alimentação, moradia, saúde e educação.
A Constituição Federal de 1988 menciona expressamente o “direito fundamental ao salário”, artigo 7º e seguintes, o conjunto de normas trabalhistas e os princípios que regem a dignidade humana e o valor social do trabalho asseguram, de forma indireta, que a remuneração dos trabalhadores seja justa e compatível com as necessidades básicas para a manutenção de uma vida digna. Essa garantia está diretamente relacionada ao reconhecimento do trabalho como um direito fundamental, o que implica que toda pessoa que desempenha uma atividade laborativa deve receber uma compensação que lhe permita exercer seus direitos e cumprir seus deveres na sociedade.
Além do aspecto individual, o salário exerce uma função social relevante. Ao garantir o poder aquisitivo do trabalhador, o salário impulsiona a economia, pois os recursos recebidos são destinados ao consumo, à poupança e ao investimento. Esse fluxo de renda contribui para a circulação de recursos e para a redução das desigualdades sociais, fortalecendo a economia e promovendo a justiça social. Dessa forma, políticas de reajuste e recomposição salarial se tornam instrumentos indispensáveis para preservar não apenas o direito individual de cada trabalhador, mas também a estabilidade econômica e social do país.
A proteção do direito ao salário, portanto, vai além de uma mera relação contratual entre empregador e empregado; ela é um elemento central do contrato social, cuja observância é indispensável para a construção de um ambiente de trabalho digno e para o desenvolvimento sustentável de toda a sociedade. Em síntese, o direito fundamental ao salário assegura que o trabalho seja remunerado de forma justa, garantindo o acesso dos trabalhadores aos meios necessários para uma existência digna e contribuindo para o bem-estar coletivo.
Nesta toada, o artigo 77 da Lei Federal nº 1.079, de 1950, determina que apresentada a denúncia e julgada objeto de deliberação, se a Assembleia Legislativa por maioria absoluta, decretar a procedência da acusação, será o Governador imediatamente suspenso de suas funções.
De frisar que é pacífico na doutrina que a revisão geral anual, tal qual descrita na Carta Política, trata-se de direito subjetivo dos servidores e obrigação imposta (por norma cogente preceptiva) ao gestor. Como exemplo, pede-se vênia para trazer trecho da lição de HELY LOPES MEIRELLES (in Direito Administrativo Brasileiro. 35ª ed. Editora Malheiros. São Paulo: 2009. p. 490), o qual, citando o julgado pelo STF na ADI nº 2.061, defende a ligação entre o comando constitucional relativo à revisão geral e a irredutibilidade real das remunerações:
(...). A revisão já era prevista pela mesma norma na sua antiga redação, que, todavia, não a assegurava. Agora, no entanto, na medida em que o dispositivo diz que a revisão é “assegurada”, trata-se de verdadeiro direito subjetivo do servidor e do agente político, a ser anualmente respeitado e atendido pelo emprego do índice que for adotado, o qual, à evidência, sob pena de fraude à Constituição e imoralidade, não pode deixar de assegurar a revisão. Tais considerações é que nos levam a entender que, agora, a Constituição assegura a irredutibilidade real, e não apenas nominal, da remuneração. Este aumento não obsta, (...), ao aumento impróprio. 1
O festejado autor finaliza com extrema autoridade:
A revisão geral anual é um mecanismo constitucional essencial para a preservação do poder aquisitivo dos servidores públicos. A exigência de lei específica, a observância da generalidade e da isonomia, e o respeito aos princípios da legalidade e da reserva legal são fundamentais para a sua implementação. A análise do caso da AMR destaca a importância de uma gestão transparente e conforme a lei, ilustrando as complexidades da aplicação prática desses princípios constitucionais. O futuro da revisão geral anual depende de uma contínua adequação das práticas administrativas aos preceitos legais, promovendo justiça e eficiência na administração pública.2
Reflexões finais
Governar para atender aos interesses de ricos e abastados é muito fácil; difícil é resgatar o pobre da miséria e devolver-lhe dignidade humana.
Assim, frise-se que a revisão geral dos salários dos servidores públicos é um direito fundamental, expressamente previsto no artigo 37, inciso X, da Constituição da República de 1988. O seu descumprimento configura crime de responsabilidade por parte do gestor omisso e rebelde, cabendo à Assembleia Legislativa exercer sua função fiscalizatória para garantir o cumprimento das leis. A violação desse direito pode levar o Governador do Estado a responder a um processo de impeachment, nos termos do artigo 7º, item 9, da Lei Federal nº 1.079, de 1950.
Quem desrespeita normas legais não pode ser reconhecido como exemplo de um Estado eficiente. Na verdade, esse modelo de gestão não deve servir de referência para uma administração pública responsável. Pelo contrário, revela-se um Estado marcadamente ineficiente. O servidor público não deve ser tratado como uma casta privilegiada da sociedade, mas sim como um profissional honrado, digno de respeito. Afinal, governos ruins passam e não voltam; já o servidor público, salvo quando ocupa cargo comissionado de indicação puramente política, permanece e testemunha de pé a derrocada de administrações pífias e desgastadas, prontas para o sepultamento na memória da história.
Referências
BOTELHO, José Eduardo Rodrigues. A Revisão Geral Anual dos Servidores Públicos e a Conformidade Constitucional. Disponível em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/65716/a-reviso-geral-anual-dos-servidores-pblicos-e-a-conformidade-constitucional>. Acesso em 18 de março de 2025.
BRASIL. Constituição da República de 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 19 de março de 1988.
BRASIL. Lei Federal nº 1.079/50. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L1079.htm>. Acesso em 19 de março de 1988.
BRASIL. Constituição Estadual de 1989. Disponível em <https://www.almg.gov.br/atividade-parlamentar/leis/legislacao-mineira/lei/min/?tipo=Con&num=1989&ano=1989&cons=0>. Acesso em 19 de março de 1988.
Notas
1 BOTELHO, José Eduardo Rodrigues. A Revisão Geral Anual dos Servidores Públicos e a Conformidade Constitucional. Disponível em <https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigo/65716/a-reviso-geral-anual-dos-servidores-pblicos-e-a-conformidade-constitucional>. Acesso em 18 de março de 2025.
2 BOTELHO (2024)