6. DESAFIOS E PERSPECTIVAS
6.1 Desafios para a efetividade da responsabilização
Apesar dos avanços normativos e jurisprudenciais, persistem desafios significativos para a efetiva responsabilização empresarial por trabalho escravo e infantil. Identifica-se como um dos principais obstáculos: a complexidade e internacionalização das cadeias produtivas; a dificuldade de produção probatória; as limitações da atuação fiscalizatória estatal; e a fragmentação do ordenamento jurídico em matéria de responsabilidade empresarial.
Enoque Ribeiro dos Santos (2021, p. 87) destaca que "a terceirização em cascata e o fenômeno da pejotização dificultam a identificação dos reais beneficiários da exploração do trabalho". As estruturas societárias atuais são complexas e se valem de paraísos fiscais como estratégias para diluir responsabilidades jurídicas.
Outro desafio relevante é a persistência de interpretações judiciais restritivas que ainda condicionam a responsabilização à demonstração de culpa in vigilando ou in eligendo, ignorando a dimensão objetiva da função social da propriedade. Mitiga-se a plena efetivação da função social da propriedade e desconsidera-se que o fundamento da responsabilidade empresarial exige uma hermenêutica constitucional que reconheça seu caráter normativo direto do princípio da função social da empresa e não apenas o caráter meramente programático.
6.2 Perspectivas para o aprimoramento do sistema de responsabilização
O aperfeiçoamento do sistema de responsabilização empresarial por trabalho escravo e infantil requer diversas iniciativas. Destaca-se a importância da adoção de instrumentos normativos específicos sobre due diligence em direitos humanos, como a Diretiva 2024/1760 da União Europeia sobre Due Diligence das empresas em matéria de sustentabilidade, a Recomendação 203 da OIT sobre trabalho forçado, os Princípios de Ruggie e a Agenda 2030 da ONU.
No plano jurisdicional, Mauro Schiavi sugere a "ampliação dos mecanismos de inversão do ônus da prova em ações envolvendo trabalho escravo e infantil em cadeias produtivas", medida que, segundo o autor, "equilibraria a assimetria informacional entre empresas e trabalhadores vitimados".
Amauri Mascaro Nascimento e Sônia Mascaro Nascimento defendem a "adoção de mecanismos de certificação e rastreabilidade de cadeias produtivas como instrumentos de efetivação da função social da empresa", perspectiva que se alinha às recentes iniciativas de transparência corporativa como a Lei de Transparência da Cadeia de Fornecimento da Califórnia (California Transparency in Supply Chains Act).
Por fim, é importante ressaltar que a Resolução 5/20 do Conselho Nacional de Direitos Humanos e a Portaria Interministerial TEM/MDHC n°15/2024 são relevantes instrumentos normativos nacionais que expressamente reconhecem a responsabilidade dos integrantes da cadeia produtiva e o dever de implementarem programas de compliance como monitoramente continuado do cumprimento e reparação das violações aos Direitos Humanos.
7. CONCLUSÃO
O princípio constitucional da função social da propriedade constitui fundamento jurídico robusto para a responsabilização empresarial por trabalho escravo e infantil em cadeias produtivas. Ao estabelecer que o direito de propriedade não se configura como absoluto, mas condicionado ao cumprimento de sua função social, o ordenamento jurídico brasileiro impõe às empresas deveres positivos que transcendem as relações trabalhistas diretas.
A função social da empresa, como desdobramento da função social da propriedade, manifesta-se na obrigação de garantir que toda a cadeia produtiva opere em conformidade com os direitos fundamentais trabalhistas, impedindo que a obtenção de vantagens econômicas ocorra às custas da exploração de trabalho degradante. Este dever de diligência fundamenta-se não apenas no texto constitucional, mas encontra respaldo em normas nacionais e internacionais de direitos humanos e em princípios contemporâneos de responsabilidade social corporativa.
A implementação efetiva desse princípio como elemento central da responsabilização empresarial por violações trabalhistas graves depende do aprimoramento contínuo dos mecanismos jurídicos, do fortalecimento da atuação fiscalizatória e jurisdicional, e da consolidação de uma cultura empresarial que reconheça a indissociabilidade entre desenvolvimento econômico e respeito aos direitos fundamentais.
Somente através dessa convergência será possível concretizar plenamente o mandamento constitucional que condiciona a propriedade ao cumprimento de sua função social, assegurando que a atividade empresarial contribua efetivamente para a valorização social do trabalho (Art. 1°, IV, CF/88), do pleno emprego (Art. 170, CF/88) e para a construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária (Art 3°, CF/88).
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