O alistamento militar feminino nas Forças Armadas x adoção de medidas preventivas de crimes militares

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23/03/2025 às 22:04
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O alistamento militar feminino nas Forças Armadas e a necessidade de adoção de medidas preventivas de crimes militares no interior da caserna

RESUMO: O objetivo desta pesquisa foi jogar luz à importância social da informação às mulheres, militares ou civis, sobre os seus direitos e os órgãos a que possam recorrer, principalmente, quando figurarem como vítimas de crime no interior de uma organização militar, levando-se em consideração que as pesquisas revelam que a maioria desses delitos tem conotação sexual. Além disso, faz-se necessário que as instituições, dentre elas os Ministérios Públicos, garantam apoio às vítimas de crime e atos infracionais. Após análise bibliográfica e busca nas leis e julgados, concluímos que é preciso que, no âmbito das Forças Armadas, sejam criados núcleos ou centros de apoio às vítimas, Ouvidorias e Ouvidoria da mulher, bem com a adoção de medidas informativas, dentre as quais palestras e ciclos de estudo para que todo o efetivo das Forças tenham conhecimento sobre o assunto, para que possamos coibir tal prática e, quem sabe, promover uma mudança cultural e permanente.

PALAVRAS-CHAVE: alistamento militar feminino; Forças Armadas; medidas preventivas de crime.

SUMÁRIO: 1 Introdução – 2 Histórico do ingresso de mulheres nas Forças Armadas brasileiras – 3 Medidas administrativas preventivas necessárias para coibir crimes militares no interior da caserna – 4 Conclusão.


1 INTRODUÇÃO

A mulher, com o passar dos tempos, vem conquistando paulatinamente seus devidos direitos na sociedade brasileira. Vale lembrar, contudo, que, sob a vigência do Código Civil brasileiro de 2016, a mulher casada não podia sequer trabalhar sem autorização do marido. Dessa forma, somente com a Lei 4.121 de 27 de agosto de 1962 (Estatuto da Mulher Casada) tal proibição foi abolida.

De acordo com Taíza Andrade Mariani, em seu artigo¨Mulheres nas Forças Armadas: protagonismo, trajetórias e desafios¨ (Mariani, 2022), o sistema global de proteção de direitos humanos foi imprescindível na busca de isonomia entre homens e mulheres. A aludida autora cita como marcos importantes para essa conquista a Carta das Nações Unidas, tratado que criou a Organização das Nações Unidas, pacto internacional que regulamentou a proteção jurídica da mulher; a Convenção Interamericana sobre Concessão de Direitos Civis à mulher; a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, em 1953, e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Mulher (Convenção CEDAW).

Os direitos igualitários plenos entre os gêneros feminino e masculino só foram alcançados, formalmente, no Brasil com a Constituição Federal de 1988 (art.5º, I, CFRB). A realidade, entretanto, é outra, visto que ainda se constata, por exemplo, que, além de o salário do homem ser superior ao da mulher, notadamente nos empregos privados, há uma diferença desproporcional entre os números de mulheres e homens que ocupam altos cargos da administração pública e privada. Nas Forças Armadas os rendimentos equivalem-se para militares do sexo feminino e sexo masculino de mesmo posto ou graduação.

A possibilidade de ingresso das mulheres nas Forças Armadas brasileiras, ambiente que outrora era eminentemente masculino, simboliza, afora o rompimento de um obstáculo social característico do machismo estrutural na sociedade brasileira, o reconhecimento de que a mulher está apta para trabalhar, em igualdade de condições com o homem, em qualquer lugar que deseje.

O ingresso feminino nas Forças Armadas do Brasil teve início em épocas distintas em cada uma de suas forças, o qual se dava principalmente por meio de aprovação em concurso público. A Marinha do Brasil deu a largada e, em 1980, admitiu mulheres em seus quadros. Posteriormente, em 1982, foi a vez da Aeronáutica. Um decênio depois (1990), o Exército brasileiro abriu as portas para o ingresso das moçoilas em sua força. A novidade, contudo, ocorreu com o Decreto 12.154/2024, abaixo elucidado, que permitiu o alistamento voluntário da mulher nas Forças Armadas para prestação do serviço militar inicial, no ano em que completar a idade de 18 anos.

Segundo site do Ministério da Defesa, mais de 22 mil mulheres se alistaram em janeiro de 2025 para concorrer a 1465 vagas disponibilizadas em Brasília e em outros 28 municípios de 13 estados.

O aludido Decreto 12.154, de 27 de agosto de 2024, regulamentou o serviço militar voluntário feminino no Brasil estabelecendo duração de doze meses, que pode ser prorrogado por até oito anos, compreendendo três etapas a saber: alistamento, seleção e incorporação. Nessas condições, a mulher incorporada à Força Armada não adquire estabilidade no serviço militar.

O alistamento ocorrerá, no período de janeiro a julho, do ano em que a voluntária completar dezoito anos de idade. A seleção dar-se-á em conformidade com o previsto no art. 39 do Decreto nº 57.654/1966 (análise dos seguintes aspectos: físico, cultural, psicológico e moral), podendo incluir etapa referente à inspeção de saúde visando aferir se a alistada possui limitações à prestação do serviço militar inicial.

Relativamente à exigência de inspeção de saúde nas mulheres alistadas para o serviço voluntário nas Forças Armadas, verifica-se que já houve judicialização dessa questão. Com efeito, a Marinha exige exame clínico das mamas e genitais. O tema chegou ao Supremo Tribunal Federal em razão de recurso da União, após as duas instâncias da Justiça Federal decidirem que a Marinha do Brasil não poderia exigir tais exames em inspeção de saúde para ingresso voluntário de mulheres no serviço militar inicial por se tratar de avaliação médica invasiva e discriminatória. O ministro-relator do caso no STF reconheceu a repercussão geral da questão do ponto de vista social e jurídico em relação à possível violação dos direitos fundamentais à igualdade, à intimidade e à privacidade na exigência de realizações de inspeções de saúde invasivas e diferenciadas para o ingresso de mulheres nas Forças Armadas. Aguarde-se, portanto, a decisão final do pleno do Supremo.

Assinale-se que as mulheres alistadas e selecionadas para incorporar em determinada OM podem desistir da prestação do serviço militar inicial até o ato formal da incorporação. Situação jurídica diversa ocorre no alistamento militar masculino que, por ser obrigatório, o convocado que deixa de se apresentar para o ato de incorporação no prazo que lhe foi determinado comete o crime de insubmissão, art.183 do Código Penal Militar (CPM)

Todavia, é importante destacar que, uma vez incorporada em uma determinada organização militar, a mulher passa a condição de militar da ativa e o serviço militar inicial passa a ser obrigatório, o que significa dizer que fica sujeita à punição disciplinar e à punição por prática de crime militar como, por exemplo, o delito de deserção, caso se ausente, sem licença, da organização militar em que serve, por mais de oito dias.


2 HISTÓRICO DO INGRESSO DE MULHERES NAS FORÇAS ARMADAS BRASILEIRAS

Conforme registrou Marianna Vial Brito em seu artigo: O efeito Maria Quitéria, a primeira mulher a defender nossa pátria em combate foi Maria Quitéria de Jesus Medeiros, a qual se alistou disfarçada de homem (com o nome de Soldado Medeiros), em 1822, durante a convocação dirigida aos homens feita pela junta de Governo para atuação na guerra civil que ocorria na Bahia (Brito, 2022).

Após a descoberta da verdadeira identidade do então Soldado Medeiros, que foi revelada pelo seu pai, o major Antônio Silva Castro, comandante do batalhão, permitiu que Quitéria continuasse no batalhão, em virtude de sua habilidade com armamentos, determinação e coragem, qualidades determinantes para o seu reconhecimento como heroína da independência.

Outro episódio que consagrou a participação oficial da mulher nas Forças Armadas foi anotado por Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha em seu artigo: A mulher militar e sua integração nas Forças Armadas (Rocha, 2017), no qual a autora descreveu que, quando o Brasil declarou guerra ao Eixo (Alemanha, Itália e Japão), em 1942, houve a necessidade de organizar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) e, diante da inexistência de enfermeiras nas Forças Armadas, foram recrutadas setenta e sete enfermeiras para acompanharem a tropa, em 1944, com destino à Itália. Em julho de 1945 o grupo foi desmobilizado ao retornar ao Brasil e, em setembro de 1945, final da guerra, foram consideradas integrantes da FEB, adquirindo os mesmos direitos conferidos aos combatentes homens.

Em tempos mais atuais, conforme mencionado alhures, A Marinha do Brasil, força armada mais antiga, foi a pioneira em admitir mulheres em seus quadros, inicialmente, para o desempenho de atividades de natureza administrativa, em 1980. Após várias reestruturações, no ano de 2019, a força naval permitiu o ingresso da mulher para o exercício de atividades operacionais na Escola Naval no Corpo da Armada e Corpo de Fuzileiros Navais. Mais recentemente, em 2024, 114 mulheres concluíram o curso de soldado Fuzileiros Navais, com atividades intensas e exercícios de campo. Não se pode olvidar ainda que, em 2013, a Marinha enviou uma observadora para a Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim e que, no ano seguinte, uma mulher se tornou a primeira oficial brasileira designada para um navio de combate, no Líbano. No que diz respeito à progressão funcional da mulher na carreira da força naval, hoje já existe mulher ocupando o posto de contra-almirante na área de saúde.

O Exército, em 1992, após admitir mulheres para atividade administrativa na sua Escola de Administração, possibilitou o ingresso feminino na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), em 2017, para todas as especializações daquela escola militar, inclusive de oficial combatente. Depois de formadas na AMAN as mulheres ficam aptas para alcançarem o generalato e assumirem altos comandos na força.

A Aeronáutica abriu suas portas para o ingresso feminino, em 1982, para oficiais do Corpo Feminino da Reserva. Em 1995, para oficiais intendentes da Academia da Força Aérea (AFA). Em 1998, houve o ingresso para o curso de sargento especialista na Escola de Especialista da Aeronáutica. Em 2003, a AFA oportunizou o curso para oficiais aviadoras, tendo em seus quadros, em 2010, a primeira mulher instrutora de voo. Quanto à ascensão funcional, existe na Força Área mulher médica ocupando o posto de oficial general de 3 estrelas.

É importante enfatizar que, não obstante a admissão tardia da mulher no quadro de oficial combatente nas Forças Armadas brasileiras, a presença de mulheres em postos de combate na linha de frente de conflitos já existe há muito tempo em outros países.

Com efeito, consoante matéria da CNN Brasil (Martins, 2024), em pelo menos 17 países, dentre eles, França, Alemanha, Dinamarca, Holanda, Nova Zelândia, Suécia, Austrália, Finlândia, Índia, Polônia e Canadá, existem a presença feminina operando em batalhas. Ressalte-se que a Noruega foi o primeiro país da Organização do Tratado Atlântico Norte(OTAN) a liberar mulheres para atuar em combate, em 1985. Existe, inclusive, na Noruega, uma unidade de combate composta só por mulheres. Trata-se de uma Força de Operação Especial especializada em vigilância e reconhecimento de áreas urbanas.

Em 2017, a Organização das Nações Unidas (ONU), de forma efetiva, implementou providências para que haja paridade de gênero entre homens e mulheres fardados, contabilizando 108 membros, dentre os quais o Brasil. Foi adotado um Plano de Ação Nacional para atender às recomendações da medida. A meta estabelecida pela ONU é que, até 2028, as mulheres fardadas correspondam de 15% a 30% do quadro em missões de paz (Guimarães, 2024).


3 MEDIDAS ADMINISTRATIVAS PREVENTIVAS NECESSÁRIAS PARA COIBIR CRIMES MILITARES NO INTERIOR DA CASERNA

Conforme registrado no livro: A investigação nos crimes militares (Gorrilhas; Britto, 2022), a partir da década de 1980, houve uma crescente parcela de ingresso feminino nas Forças Armadas. O fato é que, no decorrer dos anos subsequentes, a mulher militar tem sido vítima de crime ocorrido em lugar sujeito à administração militar, tendo a maioria deles conotação sexual.

Adite-se que não é só a mulher na condição de militar que figura como vítima de crime militar em lugar sujeito a administração militar, uma vez que algumas Organizações Militares (OM) possuem, em seus quadros, servidoras civis e estagiárias. Há ainda os hospitais militares, que possuem frequência numerosa de pacientes civis do sexo feminino.

Levantamento feito pela 1ª Procuradoria de Justiça Militar do Rio de Janeiro em processos eletrônicos da Justiça Militar da União anotou que, em diversas OM no Brasil, ocorreram 20 (vinte) crimes de assédio sexual, 11 (onze) de atentado violento ao pudor, 8 (oito) de estupro e 3 (três) de importunação sexual, no período entre janeiro de 2018 a maio 2020. Vale lembrar que, com a recente minirreforma do Código Penal Militar (Lei 14.688/2023), o crime outrora autônomo de atentato violento ao pudor passou a integrar o tipo penal de estupro.

Em pesquisa mais recente, foi possível verificar, pelos registros constantes no Departamento de Documentação Jurídica da Procuradoria-Geral da Justiça Militar, que, entre os anos de 2020 e 2024, ocorreram 108 assédios sexuais e 217 importunações sexuais contra militares do quadro feminino em OM espalhadas pelo Brasil.

Os delitos sexuais mais usuais praticados contra a mulher no interior de organizações militares têm sido, portanto, os de assédio sexual e importunação sexual. Há ainda significativa ocorrência de crimes de violação de recato contra mulheres em banheiros e em alojamentos femininos (uso de celulares ou chaveiros espiões para filmar mulheres em trajes íntimos ou tomando banho).

Pontue-se que, embora as vítimas desses crimes sejam mulheres oficiais e praças com certo tempo e experiência na caserna, muitos dos fatos delituosos ocorridos não são notificados por receio a represálias, especialmente quando o autor da infração é militar de alta patente. Assim sendo, serão necessários cuidados preventivos redobrados em relação às jovens mulheres que ingressarão, voluntariamente, para prestarem serviço militar inicial, na condição de soldados das Forças Armadas. De fato, se crimes de natureza sexual contra mulheres em organizações militares já abarcam considerável números de vítimas experientes, como oficiais e praças do quadro feminino, o que poderá acontecer com o ingresso dessas jovens aprendizes soldados? Há, destarte, necessidade de que cada força armada estabeleça medidas administrativas preventivas eficazes para coibir prática de crimes contra mulheres militares em lugar sujeito à administração militar.

A Marinha do Brasil, visando prevenir a prática de delitos sexuais em seus quartéis, editou a Portaria nº 244/2020, a qual estabelece regras de condutas com o intuito de manter um ambiente de trabalho sadio em âmbito militar. Dentre as regras de condutas, destaca-se a proibição, nos locais de convivência social, inclusive em redes sociais e grupos de mensagens, do uso de jargões jocosos, bem como do uso de vocabulário insinuante ou explícito, com ou sem conotação sexual. Pela portaria citada, os comandantes e diretores ficam responsáveis por estabelecer normas de condutas que desencorajem qualquer prática que atente contra pessoa e a discriminação do sexo. Nesse sentido, o comandante deverá apurar com rigor e transparência o relato de conduta atentatória à dignidade da pessoa humana e à privacidade da vítima.

A aludida diretriz interna estabeleceu ainda condutas relativas ao relacionamento afetivo entre os militares, as quais devem seguir normas de comportamento a bordo. Nesse sentido, é vedado intimidade ou cumprimento que não estejam previstos em regulamentos. Assim, o contato físico deverá limitar-se ao aperto de mãos, sendo proibidas as manifestações ou evidências de relacionamentos afetivos. De fato, atos libidinosos praticados por militar em área comum no interior de um quartel, ainda que realizados consensualmente entre namorados, noivos ou casados, constitui-se, em tese, no crime tipificado no art. 235 do CPM.

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A Portaria nº 244 de 2020 destacou alguns dos seguintes procedimentos preventivos que devem ser observados nas dependências de uma OM da Marinha:

(…) uso correto do uniforme/vestimenta, impedindo modificações ou trajes inapropriados; proibição de contato físico e/ou o trato íntimo no interior da jurisdição militar; erradicar do diálogo cotidiano, telefônico ou correio eletrônico, insinuações verbais, expressões, piadas, chacotas e gracejos de conteúdo sexual e as manifestações ou comentários sobre aparências físicas, os abusos verbais deliberados ou observações sugestivas, os elogios e os gestos que conduzam a situações duvidosas quanto a seus propósitos; proibição de fechar as portas em salas e camarotes, quando houver pessoal de distinto sexo em seu interior; proibição da exibição de material pornográfico ou de conteúdo sexual em qualquer setor ou dependência da OM; proibição de todo tipo de pergunta sobre hábitos da vida privada do pessoal, não relacionadas com a situação; estabelecer procedimentos, horários e formas de circulação, em setores com instalações sanitárias comuns; diante da presença de pessoas de diferente sexo, seja conservada a postura correta, evitando posturas corporais inadequadas que possam ser interpretadas como ofensivas ou provocativas.

Em relação à utilização de camarotes e alojamentos, a normatização supracitada registra que militares do sexo feminino só poderão embarcar em navios ou unidades de Força Naval, ou participar de manobras e exercícios em que possam ser acomodadas em alojamentos/camarotes/barracas para uso exclusivo de mulheres. Sempre que possível, deverão ser destinados banheiros exclusivos para militares do sexo feminino.

Assim, torna-se imprescindível que o Exército e a Aeronáutica incrementem normas preventivas com os mesmos objetivos em suas forças, com divulgações e palestras para todo o efetivo.

Releva acentuar sobre a importância de os comandantes, diretores de OM (Polícia Judiciária Militar originária) e os oficiais por eles delegados, para atuarem como encarregado de inquérito, conhecerem as legislações pertinentes que devem ser observadas durante as investigações de crimes, de natureza sexual ou não, no interior de uma Organização Militar (OM). Como é cediço, os oficiais das Forças Armadas, em regra, não possuem formação jurídica.

No que diz respeito à proteção das vítimas constantes em legislações processuais penais existentes no Brasil, temos que o Código de Processo Penal Militar (CPPM/1969) se limitou, no art.13, capítulo referente ao inquérito policial militar, a estabelecer como atribuição do encarregado de inquérito a tomada de medidas necessárias destinadas à proteção de testemunhas, peritos ou do ofendido, quando coactos ou ameaçados de coação que lhes tolha a liberdade de depor, ou a independência para a realização de perícias ou exames. O fato é que, por não haver regulamentação da lei nesse sentido, a maioria dos encarregados de IPM desconhece como proceder na proteção das vítimas.

Estabelece ainda o CPPM que o ofendido não está obrigado a responder perguntas que possam incriminá-lo. Todavia, em dissonância com as orientações mais atuais, notadamente com o Projeto de Lei 3890/2020, aprovado pela Câmara dos Deputados, que criou o Estatuto da Vítima, o art.312 da legislação processual penal castrense determina que as declarações da vítima sejam feitas na presença do acusado. Entendemos que, se houver aprovação pelo Senado e for sancionado na íntegra pelo Presidente da República o referido estatuto protetivo da vítima, a referida norma processual penal militar sofrerá uma releitura.

Na legislação processual comum, somente em 1999, veio a lume a Lei 9.907 estabelecendo normas para a organização e manutenção de programas especiais de proteção às vítimas e às testemunhas ameaçadas. Essa lei, por analogia, pode e deve ser aplicada pelo encarregado de IPM, naquilo que for pertinente, e pelos magistrados da Justiça Militar. Vejamos o que dispõe o art.7º da lei:

Art. 7º Os programas compreendem, dentre outras, as seguintes medidas, aplicáveis isolada ou cumulativamente em benefício da pessoa protegida, segundo a gravidade e as circunstâncias de cada caso:

I - segurança na residência, incluindo o controle de telecomunicações;

II - escolta e segurança nos deslocamentos da residência, inclusive para fins de trabalho ou para a prestação de depoimentos;

III - transferência de residência ou acomodação provisória em local compatível com a proteção;

IV - preservação da identidade, imagem e dados pessoais;

V - ajuda financeira mensal para prover as despesas necessárias à subsistência individual ou familiar, no caso de a pessoa protegida estar impossibilitada de desenvolver trabalho regular ou de inexistência de qualquer fonte de renda;

VI - suspensão temporária das atividades funcionais, sem prejuízo dos respectivos vencimentos ou vantagens, quando servidor público ou militar;

VII - apoio e assistência social, médica e psicológica;

VIII - sigilo em relação aos atos praticados em virtude da proteção concedida;

IX - apoio do órgão executor do programa para o cumprimento de obrigações civis e administrativas que exijam o comparecimento pessoal.

Parágrafo único. A ajuda financeira mensal terá um teto fixado pelo conselho deliberativo no início de cada exercício financeiro. (Brasil, 1999)

Em razão da alta incidência de violência doméstica no Brasil que, infelizmente, ainda perdura, foi criada a Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Essa lei sofreu várias alterações, dentre elas, vale consignar a inclusão do artigo abaixo transcrito, o qual permite, diante dos pressupostos estabelecidos pelo legislador, que o delegado de polícia afaste o agressor do ambiente de convívio com a vítima, sem a necessidade de autorização judicial. Quanto a este aspecto, houve uma ação de inconstitucionalidade ajuizada perante o Supremo. Entretanto, o STF, em decisão unânime, declarou a conformidade da lei com a Constituição. Desse modo, sem querer adentrar no mérito sobre a competência para julgar os casos de violência doméstica ocorridas em residências de militares localizadas em Vila Militar, o diretor de uma Prefeitura Militar, por exercer a função de Polícia Judiciária Militar originária, em casos de risco atual ou iminente à vida, à integridade física ou psicológica da mulher que sofreu violência doméstica em seu lar, está legitimado, quando não for o caso de prisão em flagrante, a determinar o imediato afastamento do autor do crime do local dos fatos, comunicando, de imediato, o procedimento ao Juiz Federal de plantão da Justiça Militar. Vejamos:

Art. 12-C.  Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:   

I - pela autoridade judicial;         

II - pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou        

III - pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.        

§ 1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.       

Em relação ao Código de Processo Penal comum (CPP), conquanto seja de 1941, já foi objeto de várias reformas pelo legislador e, ao sofrer alteração pela Lei 11.690/2008, implementou os seguintes procedimentos que devem ser efetivados em relação à vítima: ser comunicada dos atos processuais relativos ao ingresso e a saída do acusado da prisão; ser informada sobre a data da audiência e a da sentença; receber comunicação no endereço indicado, inclusive por uso de meio eletrônico; ter espaço reservado antes e durante as audiências; quando necessário, a critério do juiz, ser encaminhada para atendimento nas áreas psicossocial, assistência jurídica e de saúde, à expensas do ofensor ou Estado e direito as providências judiciais para preservação da sua intimidade, vida privada, honra e imagem, bem como proteção, com segredo de justiça, de seus dados, depoimentos e outras informações. Determina, ademais, o art.387 que o juiz, ao proferir sentença condenatória, fixe valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pela vítima. Tais normas, em razão de lacunas existentes no CPPM, podem ser aplicadas pela Justiça Militar. Aliás, recentemente, o ministro do Superior Tribunal Militar, relator do recurso em sentido estrito nº 7000411-91.2024.700.000/RJ, num caso de assédio sexual, impôs ao réu, com base na legislação processual penal comum, proibição de qualquer contato com a vítima, estabelecendo um distanciamento de 200 metros.

Sublinhe-se que alguns fatos corriqueiros ocorridos no cotidiano do cidadão nos mais diversos ambientes, inclusive judicial, ao ganharem notoriedade pela mídia, se tornam potencialmente fato gerador para criação de uma lei, como foi o caso de um tratamento agressivo de caráter pessoal dirigido pelo advogado de um empresário contra uma mulher, que figurava como vítima de estupro, durante uma audiência criminal. Esse episódio deu origem a Lei 14.245/21 e possui a seguinte redação constante no CPP:

Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:       (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021)    (Vide ADPF 1107)

I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;  (Incluído pela Lei nº 14.245, de 2021)

II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas. 

Os estudos científicos sobre vítimas tiveram efetivo início a partir da segunda guerra mundial com a vitimologia (obra do advogado israelense Benjamin Mendelsohn) e, em épocas mais atuais, normatizações acerca da proteção e direitos das vítimas vêm espraiando-se por diversos continentes. Assim sendo, países como Portugal (2015), Espanha (2015), Itália, Argentina (2017) e México(2017) instituíram seus respectivos Estatutos da Vítima ou legislações protetivas correlatas. No Brasil, o Projeto de Lei 3890/2020, mencionado alhures, criou o Estatuto da Vítima, assegurando os seguintes direitos aos sujeitos passivos do crime: informação da situação do autor do crime (prisão ou liberdade); proteção da saúde (integridade física); acesso à assistência pelo Sistema Único de Saúde; proteção de dados pessoais (inquérito/processo); ressarcimento de despesas com deslocamento e hospedagem; ser ouvida em ambiente apropriado e reservado sem contato visual com o indiciado/réu; apresentar elementos de provas e requerer diligência, dentre outros.

Em termos de diretrizes editadas por órgãos institucionais, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por intermédio da Resolução 243/2021, elaborou a Política Integral e de Promoção Integral de Direitos e de Apoio às Vítimas, cujo objetivo é assegurar direitos fundamentais às vítimas de infração penais, atos infracionais e aquelas que tiveram seus direitos humanos violados. Dessa forma, a resolução em comento determina que as unidades do Ministério Publico (MP) implementem Núcleos ou Centros de Apoio às Vítimas, tendo como destinatárias várias modalidades de vítimas, dentre as quais, as vítimas diretas – aquelas que sofreram lesão por ação ou omissão criminosa; vítimas indiretas – pessoas que convivem e possuam relação de afeto ou parentesco com a vítima direta; vítima de especial vulnerabilidade – idade, gênero, estado de saúde e deficiência e familiares dependentes economicamente da vítima direta; e vítimas coletivas – saúde pública, meio ambiente, consumidor, fé pública e administração pública.

Em 2024, o CNMP, considerando o que foi disposto pela Lei 13.431/2017 (garantias e direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência) e pela Lei 14.344/2022 (criação de mecanismos para prevenção e o enfrentamento de violência doméstica e familiar contra criança e o adolescente), expediu a Resolução 287/2024, a qual estabelece diretrizes sobre atuação integrada do Ministério Público em defesa e proteção das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº253/2018, definiu Política Institucional do Poder Judiciário de Apoio às Vítimas de crimes e atos infracionais. A norma em questão determina que o Poder Judiciário e serviços auxiliares garantam às vítimas de crime e atos infracionais, bem como seus cônjuges, companheiros, familiares em linha reta, irmãos e dependentes, tratamento com equidade, dignidade e respeito. Prescreve, ademais, que as autoridades judiciais orientem as vítimas quantos aos seus seguintes direitos: presença em todos os atos do processo, notificação por carta ou correio eletrônico sobre instauração da ação penal, arquivamento de inquérito, mandado de prisão, alvará de soltura, fuga do preso, prolação de sentença, decisões judiciais, reparação do dano causado pela infração e ser ouvida em condições adequadas.

Desse modo, afigura-se relevante que as vítimas de crimes militares conheçam, além das legislações acima apresentadas, a tipologia dos crimes mais ocorridos nos quartéis, abaixo citados. Antes, porém, faz-se necessário esclarecer que, por força da Lei 13.491/2017, o art.9º II do CPM foi modificado de modo que os crimes militares não são apenas aqueles previstos na legislação penal castrense, mas também os elencados no código penal comum e em legislações penais extravagantes, desde que ocorram em umas das hipóteses estabelecidas no art. 9º, II e III, do mesmo artigo, como por exemplo, os cometidos em lugar sujeito à administração militar. Importa observar que foi arguida a inconstitucionalidade da lei supracitada. Desse modo, todos os crimes militares por extensão, vale dizer, os descritos nas legislações penais comum e não previstos no CPM, estão atrelados à Lei 13.491/2017, que, caso venha a ser julgada inconstitucional pelo STF, deixarão de ser crimes de natureza militar. Nesse aspecto, o legislador da minirreforma da legislação penal militar (Lei 14.688/2023) perdeu a oportunidade de inserir nos capítulos pertinentes do CPM tipos penais de significativa ocorrência no interior dos quartéis, tais como, assédio sexual, importunação sexual, abuso de autoridade, crimes licitatórios e tantos outros, desvinculando-os da Lei 13.491/2017. Vejamos alguns deles:

Importunação sexual   (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018):

Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:  

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

Ato libidinoso é qualquer comportamento sexual que tem por objetivo a satisfação da libido de quem pratica o ato ou a de terceiro. Será crime quando não houver consenso por parte da vítima. A criação desse tipo penal que, embora possa ter o homem como sujeito passivo, foi motivada pelas importunações frequentes publicadas nas redes sociais sofridas pelas mulheres, como a ejaculação masculina em transporte público. São considerados atos libidinosos, dentre outros, esfregar órgão genital e apalpar partes íntimas do corpo de uma pessoa.

À guisa de exemplo, ressalta-se o seguinte caso concreto acontecido em uma OM situada no Rio de Janeiro, que resultou na condenação de um militar: um soldado de serviço, ao mesmo tempo que indagou para uma sargento, igualmente de serviço, se esta estava com farol aceso, tocou com os dedos em um de seus mamilos.

Assédio sexual (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001):

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.                

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.    

§ 2o  A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Como se sabe, as Forças Armadas são estruturadas com base em uma hierarquia verticalizada que vai do soldado até o oficial-general de mais alta patente. Desse modo, as mulheres que prestarão serviço militar voluntário, ao serem incorporadas nas suas respectivas OM, na condição de soldado, conviverão cotidianamente, em lugar sujeito à administração militar, com outros militares hierarquicamente superiores. Assim, caso venham a sofrer, de forma reiterada, em seu ambiente de trabalho, constrangimentos que tenham como objetivos a obtenção de vantagem ou favorecimento sexual, por parte de um militar que lhe seja superior hierárquico, estará configurado, em tese, o crime de assédio sexual de natureza militar. O assédio sexual pode ocorrer por uma variedade de ações, tais como: promessas de tratamentos diferenciados dentro da caserna, chantagem para engajamento ao término do serviço militar inicial, ameaças de punição disciplinar ou perda do cargo e tantas outras. Os meios mais comuns de se provar o assédio sexual têm sido bilhetes, mensagens eletrônicas, e-mail, gravação pelo celular e testemunhas. Não se deve confundir uma cantada com o assédio sexual. Todavia, se não obstante a rejeição de uma cantada, houver persistência na sedução, de modo a constranger a vítima, o assédio sexual pode restar configurado. Assim, em tese, a primeira linha demarcatória que estabelece o limite entre a cantada e o crime em questão é o NÃO. Nesse sentido, é possível se ter como parâmetro o disposto na Lei 14.786/2023, que criou o protocolo ¨Não é Não¨ para prevenção ao constrangimento, à violência contra a mulher e à proteção à vítima em ambientes de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows com venda de bebidas alcoólicas.

O art. 3º da lei em comento assim dispõe: “I – considera-se constrangimento qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifesta a sua discordância com a interação”.

Embora o assédio sexual, em regra, tenha como vítima a mulher, pode também ocorrer entre pessoas do mesmo sexo e ter como ofendido o homem. É importante que a vítima não tenha receio de noticiar, imediatamente, o fato delituoso. Já houve situação na qual a vítima comunicou o crime sexual sofrido somente após o seu licenciamento do serviço ativo e, em decorrência do tempo transcorrido, operou-se a prescrição (causa de extinção da punibilidade).

Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique, ato libidinoso em lugar sujeito à administração militar ou no exercício de função militar:    

Pena - detenção, de seis meses a um ano.

Esse tipo penal, que está inserido no capítulo VII, Dos Crimes Sexuais, sofreu alteração pela Lei 14.688/2023, uma vez que, na redação anterior, constava em sua rubrica marginal a palavra ¨pederastia¨ e no corpo do artigo a expressão ¨ato libidinoso homossexual ou não¨, ambas consideradas inconstitucionais pelo STF. Entendemos que essa norma penal apresenta incoerências marcantes em relação aos demais tipos que visam tutelar o mesmo bem jurídico, vale dizer, a liberdade sexual. Com efeito, para o perfazimento dos demais crimes sexuais constantes no citado capítulo, é necessário que haja dissenso da parte que sofreu a ação delituosa. Em sentido contrário, uma simples leitura do art.235 do CPM nos revela que há consenso entre o militar e a outra pessoa envolvida na prática do ato libidinoso em lugar sujeito à administração militar. Havendo, portanto, consentimento entre as partes, não há como se falar em violação da dignidade sexual (bem jurídico tutelado).

Em vista disso, a vítima desse crime é a administração militar, razão pela qual entendemos que esse tipo penal deveria ter sido incorporado topograficamente no capítulo cujo bem jurídico tutelado é a administração militar. Pune-se, destarte o ato libidinoso consensual apenas em razão do local em que foi praticado. Por outro lado, se não houver anuência entre os participantes da prática do ato libidinoso, estaremos diante do delito de importunação sexual. Vale observar que só os militares podem ser sujeitos ativos desse crime ou, em outros termos, o civil não comete esse crime. Dessa forma, se uma militar do serviço inicial voluntário praticar atos libidinosos com seu namorado em área comum de um quartel, somente ela cometerá este crime. O conceito de ato libidinoso foi dado quando das observações feitas no crime de importunação sexual:

Art. 229. Violar, mediante processo técnico o direito ao recato pessoal ou o direito ao resguardo das palavras que não forem pronunciadas publicamente:

Pena - detenção, até um ano.

§ 1º Na mesma pena incorre quem divulga os fatos captados.    

§ 2º Considera-se processo técnico, para os fins deste artigo, qualquer meio que registre informações, dados, imagens ou outros similares, não consentidos pela vítima. (Incluído pela Lei nº 14.688, de 2023)

Esse tipo penal possui duas modalidades de comportamento: violação do direito ao recato pessoal e violação ao resguardo das palavras que não foram pronunciadas em locais públicos. O bem jurídico tutelado é a privacidade e intimidade das pessoas. A lei pune com a mesma pena o violador da privatividade e o divulgador dos fatos captados. No passado, a incidência da prática desse crime era praticamente inexistente, contudo, a partir do ingresso feminino nas Forças Armadas, passou a ser significativa.

O voyeurismo constitui-se em uma invasão de privacidade, uma vez que pessoas são observadas geralmente em trajes íntimos, sem consentimento. Investigações instauradas na circunscrição do Rio de Janeiro para apurar o delito de violação de recato registraram a utilização de celulares ou aparelhos espiões (chaves e canetas), colocados, clandestinamente, em alojamentos e banheiros femininos, com a finalidade de captar imagens de militares femininas sem trajes ou em trajes íntimos. O legislador conceituou o que é considerado processo técnico para fins deste artigo no parágrafo segundo.

O art. 231 do CPM restringiu a incidência da prática desse crime aos militares da ativa (militar da ativa contra militar da ativa). Dessa forma, se um servidor civil de uma determinada OM filmar a nudez de uma militar em um alojamento militar feminino sem autorização, praticará o crime militar por extensão previsto no art.216-B do código penal comum, assim chamado por não estar contido no código penal militar. Vejamos a moldura desse tipo penal:

Art. 216-B.  Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:   

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.                   

Em relação à violação, mediante processo técnico, do direito ao resguardo de palavras, o legislador estabeleceu uma ressalva às palavras que não forem pronunciadas publicamente. Nesse sentido, ressalte-se que não há, em tese, proteção jurídica de palavras ditas em alto e bom som em locais públicos ou entre interlocutores em que não haja relação de sigilo, por exemplo, cliente e advogado. A esse respeito, pronunciou-se o STF, em 2009, no RE 402717/PR/Segunda Turma, e posteriormente, o pleno do STF, analisando um caso com repercussão geral (RE 583.937/RJ/2009): “É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro”.

Abaixo trazemos à colação os seguintes delitos suscetíveis de sobrevir na caserna tanto com as mulheres incorporadas para prestação do serviço militar inicial voluntário, quanto com as mulheres militares de carreira:

Intimidação sistemática:

Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena - multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual:

Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real:

Pena - reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Trata-se de crimes de intimidação, os quais podem ser cometidos pessoalmente ou por meio virtual, conhecidos, respectivamente, como bullying e ciberbullying. Essas condutas delituosas são mais comuns de acontecerem em ambientes escolares e em ambientes de trabalho, podendo, portanto, configurar crime militar se adequadas a uma das hipóteses elencadas no art. 9º II e III do CPM. Parece-nos que o legislador cometeu um equívoco ao cominar, de forma isolada, pena de multa para o bullying presencial, uma vez que, conforme dispõe o art.1º da Lei de Introdução do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/40), crimes são punidos com pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa, enquanto que as Contravenções penais são punidas com penas mais brandas, como por exemplo a multa. Ambos os crimes de intimidação são subsidiários, vale dizer, só são aplicados quando as condutas não se constituírem em crimes mais graves:

Art. 147-A.  Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.       

Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.       

§ 1º A pena é aumentada de metade se o crime é cometido:        

I – contra criança, adolescente ou idoso;     

II – contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;      

III – mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)

Um dos casos mais rumorosos de perseguição à pessoa aconteceu, em 1980, com o cantor John Lennon, morto por Mark Chapman, que se dizia seu fã e perseguidor do seu ídolo. Antes da Lei 14.132/2021, que incluiu o crime de perseguição no código penal, o art. 65 da Lei das Contravenções Penais previa prisão simples de quinze dias a dois meses ou multa para aquele que molestasse ou perturbasse alguém por acinte ou por motivo reprovável.

O delito de perseguição não demanda a presença física do perseguidor, a qual pode acontecer integralmente por meio virtual ou simultaneamente pelos dois meios (físico e virtual). A redação da lei é autoexplicativa e, diante de algumas circunstâncias, o crime de perseguição pode ganhar configuração de crime militar:

Art. 147-B.  Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:     (Incluído pela Lei nº 14.188, de 2021)

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 14.188, de 2021)

Esse tipo penal retrata a violência psicológica contra a mulher, cujo conceito vem descrito no art. 7º da Lei 11.340/2006, nos seguintes termos:

Art. 7º

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; (Redação dada pela Lei nº 13.772, de 2018)

Observa-se que o legislador aproveitou um conceito de violência descrito na Lei Maria da Penha e o transformou, quase na sua integralidade, em um tipo penal autônomo. O autor desse crime pode ser o homem ou a mulher, e a consumação acontece com a demonstração do dano emocional à mulher. Trata-se de crime doloso no qual o autor do fato, de forma livre e consciente, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir, causa abalo emocional à mulher.

No que se refere à condução de inquérito policial militar que apure crimes militares de natureza sexuais praticados contra mulheres, sejam elas servidoras militares ou civis, dentro de uma OM, entendemos que, embora não exista regulamentação dessa questão, seria de bom alvitre que as investigações fossem conduzidas por oficiais do quadro feminino das Forças Armadas ou forças auxiliares, uma vez que, a depender do reflexo psicológico causado pelo crime dessa índole, torna-se constrangedor para vítima do sexo feminino expor todos os detalhes ocorridos para um encarregado de inquérito policial militar do sexo masculino. Nos parece que, nesses tipos de crimes, a presença de uma investigadora militar feminina deixaria a vítima mais à vontade, durante seu depoimento, para revelar fatos íntimos.

Sobre o autor
Luciano Moreira Gorrilhas

Especialista em Ciências Penais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialista em Inteligência de Segurança Pública com Direitos Humanos pelo Centro Universitário Newton Paiva, em convênio com a Escola do Ministério Público de Minas Gerais. Curso Superior em Inteligência Estratégica da ESG. Diplomado em Direito Internacional Humanitário pelo International Institute of Humanitarian Law (IHL – Itália). Subprocurador-Geral de Justiça Militar. Coautor do livro “Polícia Judiciária Militar e seus desafios. Teoria e Prática”. Coautor do livro “A investigação nos crimes militares”. Integrante da Comissão Técnica que elaborou a proposta do Código Penal Militar da República de Angola. ORCID: 0009-0005-0678-471X Subprocurador-geral de Justiça Militar

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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