Resumo: No custeio da Seguridade Social as contribuições sociais sobre a folha de salários das instituições financeiras/ entidades equiparáveis são tributadas com alíquotas majoradas em 2,5% em razão de seu seguimento econômico. Utilizando-se de princípios constitucionais e de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, este artigo busca elucidar como esta distinção de tratamento não importa em violação ao princípio da isonomia, mesmo levando em consideração o teor da Emenda Constitucional 20/98.
Palavras-chave: Custeio. Instituições financeiras. Isonomia.
1 Introdução
A Seguridade Social diz respeito a um sistema complexo de ações direcionadas para a promoção dos seguintes direitos fundamentais: saúde, previdência social e assistência social. A efetivação desses direitos é alcançada através de recursos provenientes de toda a sociedade, conforme disciplina o art. 195. da Constituição Federal.
O modelo de custeio da Seguridade previsto na Constituição é calcado no sistema contributivo e possui receita própria vinculada à saúde, previdência e assistência social. Dentre as várias fontes de custeio da Seguridade, merecem destaque as contribuições sociais, as quais ficam a cargo dos empregados e empregadores.
Neste contexto, merece destaque o papel fundamental que as contribuições patronais exercem no financiamento da seguridade, principalmente em relação ao custeio dos benefícios previdenciários, já que as receitas auferidas através da folha de remunerações são vinculadas ao subsídio dos benefícios da previdência social.
No que concerne estritamente às contribuições empresariais, destaca-se no presente artigo a situação das instituições financeiras e demais entidades equiparáveis em razão do tratamento diferenciado conferido pelo legislador a esse ramo empresarial.
O tratamento desigual em relação às empresas do seguimento financeiro consiste na imposição de uma tributação acessória no percentual de 2,5% sobre a folha de salários, sem contar a alíquota básica de 20% obrigatória para todos os ramos empresariais. Essa exação tributária para as instituições financeiras teve início com a Lei 7.787/89 e foi replicada na Lei 8.212/91, que regulamenta o custeio da Seguridade Social.
Ocorre que a exação trazida nas normas infraconstitucionais não apresentava nenhuma justificativa aparente, bem como sequer encontrava guarida expressa no texto constitucional até ser promulgada, em 1998, a Emenda Constitucional 20, a qual declarou a possibilidade de tratamento diferenciado para empresas conforme seu seguimento econômico, acrescentando o §9° ao art. 195. da Constituição Federal.
Logo, conforme as observações expostas, este artigo busca questionar a validade da cobrança desta alíquota para as instituições financeiras e equiparáveis, tendo em vista a presumível violação de princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro como o princípio da isonomia, da capacidade contributiva e da equidade na forma de participação no custeio. A questão é complexa, porém o Supremo Tribunal Federal recentemente se manifestou sobre o tema, pacificando a controvérsia.
2 Custeio da Seguridade Social: contribuições sociais empresariais
A Seguridade Social é baseada no sistema contributivo e financiada nos termos do art. 195. da Constituição Federal, através de um modelo de custeio que exige a participação de toda a sociedade, seja de forma indireta ou direta. Leciona o presente artigo:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
b) a receita ou o faturamento; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
c) o lucro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
III - sobre a receita de concursos de prognósticos.
IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003) 2 .
O custeio indireto do sistema diz respeito aos recursos provenientes dos entes políticos: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Já o financiamento direto abrange as contribuições sociais provenientes: da empresa, dos segurados, dos concursos de prognósticos, do importador e de eventuais contribuições residuais criadas para a manutenção ou expansão da seguridade social3.
Carlos Alberto Pereira Castro, citando Hugo de Brito Machado, define as contribuições sociais como “espécie de tributo com finalidade constitucionalmente definida, a saber, intervenção no domínio econômico, interesse de categorias profissionais ou econômicas e seguridade social”4. Estes tributos são criados com o intuito de atender ou custear atividades de caráter social do Estado, para que assim sejam efetivados direitos fundamentais, como por exemplo as contribuições de custeio da seguridade social5, destinados à saúde, previdência e assistência social.
Sobre a natureza jurídica das contribuições sociais, a teoria preponderante (teoria fiscal) defende seu cunho tributário, tendo em vista o caráter compulsório e pecuniário da prestação, a qual é instituída por lei e arrecadada por ente público, com o objetivo de subsidiar atividades na área da previdência, saúde e assistência social. Majoritariamente, os tributaristas também defendem o natureza tributária das contribuições sociais. Vale destacar que este tema chegou ao Supremo Tribunal Federal, o qual se pronunciou pelo caráter tributário das contribuições sociais, sendo verdadeira espécie autônoma de tributo, com receita vinculada à Seguridade Social6.
Especificamente no que toca à participação empresarial no custeio da seguridade, ressalta-se que as contribuições sociais incidirão sobre: a folha de remuneração, a receita ou faturamento e sobre o lucro, conforme prevê o art. 195, I, a, da CF/88.
A Lei 8.212/91, que instituiu o plano de custeio da Seguridade Social, regulamenta nos arts. 22. e 237 as contribuições sociais a cargo das empresas. A contribuição básica empresarial está prevista no art. 22, o qual estipula o percentual de 20% de contribuição sobre o total da folha de remunerações de seus empregados e trabalhadores avulsos, bem como de contribuintes individuais que lhes prestem serviços, sendo que esta receita é vinculada à Previdência Social, observe:
Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:
I - vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa.(Redação dada pela Lei nº 9.876, de 1999).[...]
III - vinte por cento sobre o total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados contribuintes individuais que lhe prestem serviços;(Incluído pela Lei nº 9.876, de 1999)8.
Ocorre que esta alíquota de 20% não é a única a incidir sobre a folha de remunerações, tendo em vista que outros dispositivos da Lei 8.212 preveem ainda: o seguro contra acidente de trabalho – SAT e a contribuição para aposentadoria especial. Ademais, vale ressaltar que esses tributos são obrigatórios para empresas de todos os seguimentos econômicos9.
Não obstante esta expressiva carga tributária a cargo das empresas sobre a folha de remunerações, a Lei de Custeio foi além e estipulou uma alíquota adicional de 2,5% especificamente para as instituições financeiras, é o que disciplina o art. 22, §1º:
Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de: (...)
§ 1º No caso de bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos de desenvolvimento, caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, sociedades corretoras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, empresas de seguros privados e de capitalização, agentes autônomos de seguros privados e de crédito e entidades de previdência privada abertas e fechadas, além das contribuições referidas neste artigo e no art. 23, é devida a contribuição adicional de dois vírgula cinco por cento sobre a base de cálculo definida nos incisos I e III deste artigo.
A Lei de Custeio entrou em vigor em 1991 prevendo tratamento diferenciado para as instituições financeiras, mesmo sem respaldo constitucional que autorizasse a cobrança dessa alíquota.
A situação se torna ainda mais complexa quando confrontada diretamente com alguns princípios constitucionais, tanto norteadores das obrigações tributárias, quanto inerentes à custeio da Seguridade Social, conforme análise a seguir.
3. Princípios constitucionais correlatos
Conforme visto anteriormente, as contribuições sociais para a Seguridade Social possuem natureza de tributo, de forma que são perfeitamente aplicáveis os princípios tributários nas relações previdenciárias.
No caso em tela, cujo objetivo é questionar a validade da diferenciação das alíquotas em relação às instituições financeiras, merecem destaque os seguintes princípios tributários: princípio da igualdade/isonomia e princípio da capacidade contributiva, bem como o princípio da equidade na forma de participação no custeio, este inerente ao direito previdenciário.
3.1 Princípio da igualdade/isonomia tributária
Este princípio é uma especificação, dentro do direito tributário, do princípio da igualdade previsto no caput do art. 5° da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”10, basilar do ordenamento jurídico brasileiro.
Em outras palavras, embora a acepção genérica do princípio da igualdade preconize que todos devam ter tratamento isonômico, o fato é que esta igualdade poderá ser formal ou material. O aspecto formal da igualdade é justamente a aplicação da lei de forma indiscriminada sobre todos os cidadãos. Já a vertente material do princípio da igualdade preconiza que os desiguais devem ser tratados desigualmente na medida de sua desigualdade, sendo vedadas distinções arbitrárias11.
No que toca ao princípio da igualdade/isonomia tributária, este vem previsto no art. 150, II da Constituição Federal:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
II - Instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;12
Pela leitura do presente artigo, nota-se que o princípio da igualdade/isonomia tributária é a dimensão fiscal e negativa (não fazer) do princípio da isonomia basilar do ordenamento jurídico brasileiro previsto no art. 5° da CF, ou seja, este princípio impede que o fisco atue de forma diferente em relação a contribuintes que estejam em situações fáticas equivalentes.
A isonomia em matéria tributária visa coibir privilégios, como o não pagamento de tributos ou pagamento em valor inferior que o previsto para os demais contribuintes, bem como impedir discriminação fiscal, ou seja, desigualdades injustificadas que ocasionem a exclusão de algum contribuinte da regra tributária geral13.
3.2 Princípio da capacidade contributiva
Este princípio também está previsto na Constituição em seu art. 145, §1°, que determina:
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte14.
A partir da exegese do presente dispositivo observa-se que as particularidades e características inerentes de cada contribuinte deverão ser observadas, sempre que possível, para que o caráter pessoal tributário seja respeitado.
A capacidade econômica do contribuinte é o mecanismo que permite a variação do valor dos tributos (para mais ou para menos), pois indica sua capacidade de dispor de recursos pecuniários. Em outras palavras, este é o cerne do princípio em análise, já que examina o grau de aptidão do indivíduo de contribuir para a manutenção do Estado15.
Vale destacar que este princípio indica uma diretriz que deverá ser valorizada o máximo possível, de modo que sua incidência poderá ser averiguada de forma direta ou indireta, ou seja, em maior ou menor grau. Ocorre que existem espécies de tributos em que não é possível fazer sua graduação diretamente, pois não são absolutamente pessoais, assim, nestes casos, a intensidade com que o princípio será observado é que será diferenciada16.
As contribuições sociais empresariais para a seguridade social, por exemplo, são uma espécie de tributo que permite plena aplicação do princípio da capacidade contributiva, tendo em vista que sua base de cálculo é facilmente aferida, de maneira que as alíquotas devidas incidirão exatamente sobre um montante específico.
É por este motivo que pessoas com capacidade econômica semelhante devem pagar tributos equivalentes. Ademais, vale frisar que o princípio da capacidade contributiva e o princípio da igualdade/isonomia tributária caminham juntos, ou seja, a isonomia tributária só se concretiza se aqueles que possuem igual capacidade contributiva receberem igual tratamento, enquanto que aqueles que possuírem capacidade contributiva distinta sejam tratados desigualmente, na medida de sua desigualdade.
3.3 Princípio da equidade na forma de participação no custeio
Este princípio de natureza constitucional tem aplicação específica para as matérias da seguridade social. Ocorre que para sua melhor compreensão se faz necessário relembrar que a seguridade se constitui de um sistema contributivo, pautado na solidariedade, com participação de toda a sociedade, de maneira que a colaboração de todos os indivíduos deve se dar de forma equilibrada.
Estabelece o art. 194, parágrafo único, V, da CF que:
Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. [...]
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: [...]
V - equidade na forma de participação no custeio;17
Tendo em vista que a Seguridade Social constitui um verdadeiro sistema de proteção cujo objetivo é o bem-estar social, se faz necessário que a divisão de seu custeio seja justa. Assim, a análise da capacidade contributiva e do risco social das atividades desenvolvidas pela empresa deverão ser prestigiadas para uma efetiva equidade na forma de participação do custeio da Seguridade.
Logo, o princípio da capacidade contributiva, visto anteriormente em sua vertente tributária, adquire contornos mais específicos no custeio da seguridade, ou seja, quanto maior o poder aquisitivo do contribuinte, maior deverá ser sua contribuição.
Em relação às obrigações estritamente empresariais, destaca-se que grande parte das contribuições sociais previstas no art. 195. da CF são atribuídas às empresas, as quais não possuem qualquer tipo de limitação de valor para base de cálculo da tributação. Outro ponto relevante é que todas as pessoas jurídicas não devem ser tributadas igualmente, tendo em vista que o porte/tamanho das empresas é fundamental para aferir sua capacidade contributiva18.
Por outro lado, o risco social das atividades desenvolvidas pelas empresas pode resultar em acréscimo de alíquotas para tributação, já que pelo fato da empresa impor ao empregado a realização de atividades em situações adversas haverá incremento da possibilidade de que este empregado venha a precisar da seguridade social. Um exemplo clássico dessa situação é o pagamento do Seguro de Acidente do Trabalho – SAT, cuja alíquota varia conforme o risco da atividade desenvolvida pela empresa19.
Assim, uma vez que o custeio da seguridade social incumbe a toda a sociedade, é medida de justiça que todos contribuam conforme suas possibilidades econômicas (princípio da capacidade contributiva), especialmente as pessoas jurídicas, as quais, dentre os contribuintes, suportam o ônus mais expressivo no subsídio da seguridade.
Após a exposição destes princípios, é plenamente aceitável concluir, ainda que antecipadamente, que o estabelecimento de alíquotas superiores de contribuição para as instituições financeiras e demais entidades equiparadas: viola o princípio da isonomia, tendo em vista que tal fato discrimina certos contribuintes; não guarda proporcionalidade alguma entre os sujeitos passivos elencados no § 1º do art. 22. da Lei 8.212/91, já que há grande disparidade de poder econômico entre os contribuintes indicados; assim como se utiliza de critérios subjetivos (seguimento econômico) para determinar a exação, o qual não tem competência para revelar objetivamente a capacidade econômica do contribuinte.