4. O marco da Emenda Constitucional 20 de 1998
A controvérsia do tema em análise, qual seja, a aparente (des)igualdade no custeio da seguridade social em relação às instituições financeiras, gira em torno do fato de que a Lei 8.212/91, ao instituir o plano de custeio, deu tratamento diferenciado a este seguimento econômico, majorando a alíquota básica de 20% sobre a folha de pagamentos/remunerações das empresas em mais de 2,5% para as instituições financeiras e equiparadas sem que houvesse respaldo constitucional para tanto.
Neste ponto se faz necessário recordar o contexto histórico da criação da Lei de Custeio e o surgimento da alíquota de 2,5%. Como é sabido, em 1988 é promulgada a Constituição Federal, a qual, em seu texto original, não previu qualquer diferenciação de tratamento no custeio da seguridade, muito pelo contrário, o texto constitucional primou pela igualde de tratamento, conforme restou demostrado no tópico anterior.
Conforme citado anteriormente, o trato diferenciado para as instituições financeiras e equiparadas consiste na imposição de uma alíquota adicional sobre a folha de salários/remunerações. Esta alíquota adicional para este seguimento econômico surgiu por meio da Medida Provisória 63 de 1989, a qual objetivava alterar a legislação de custeio da Previdência Social20.
A MP 63/89 foi convertida na Lei 7.787/89, a qual continuou prevendo a referida alíquota no que toca ao custeio da Previdência Social, tendo em vista que as contribuições sociais incidentes sobre a folha de salários tem sua receita vinculada a ela21. Em 1991, com a Lei 8.212 este mesmo pensamento foi replicado em relação à organização do plano de custeio da Seguridade Social.
Neste sentido, vale destacar as inúmeras espécies empresariais que são impactadas pela cobrança diferenciada de alíquotas sobre a folha de remunerações, nos termos do art. 22, §1° da Lei 8.212:
bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos de desenvolvimento, caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, sociedades corretoras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, empresas de seguros privados e de capitalização, agentes autônomos de seguros privados e de crédito e entidades de previdência privada abertas e fechadas.
Analisando-se superficialmente o panorama jurídico-temporal apresentado é possível deduzir que todas as instituições mencionadas no parágrafo anterior, que gozam de grandes discrepâncias entre si, experenciaram tratamento desigual em relação aos demais seguimentos econômicos sem que houvesse qualquer justificativa aparente. Tal interpretação decorre do fato que somente o seguimento financeiro recebeu majoração de alíquotas na Lei de Custeio da Seguridade Social.
Ocorre que em 1998 foi promulgada a Emenda Constitucional 20, a qual modificou e acrescentou inúmeros dispositivos constitucionais à Carta Magna, especialmente relacionados ao sistema da Seguridade e da Previdência Social. Dentre as normas aditadas em virtude da EC 20/98, a de maior relevância para o tema em análise foi o art. 195,§ 9º, CF, que previa: “as contribuições sociais previstas no inciso I deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica ou da utilização intensiva de mão-de-obra”22.
Em 2005 houve a promulgação da Emenda Constitucional 47, que conferiu a atual redação deste dispositivo nos seguintes termos:
Art. 195, § 9º: As contribuições sociais previstas no inciso I do caput deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho23.
Deste modo, a EC 20/98, e posteriormente a EC 47/05, chancelaram um dispositivo infraconstitucional que estava em aparente descompasso com a Constituição Federal. Tal argumento decorre do fato de que, na época da criação da alíquota de 2,5%, bem como de sua replicação na Lei 8.212/91, a regra constitucional lecionava que os percentuais de contribuição previdenciária deveriam ser os mesmos para todas as empresas, logo, sem que houvesse qualquer distinção de tratamento. Ocorre que este cenário só foi alterado em 1998 em virtude da EC 20, que evidenciou um verdadeiro marco no regimento do financiamento da Seguridade Social.
Logo, entre 1989 e 1998, há um verdadeiro vácuo normativo justificante e autorizativo, em nível constitucional, para cobrança de alíquota diferenciada para o seguimento econômico das instituições financeiras. Porém, após a edição da EC 20, indiscutivelmente, este cenário mudou, já que o texto constitucional passa a prever expressamente a possibilidade de diferenciação de cobrança de tributos conforme o seguimento econômico.
Da análise superficial deste cenário é plausível deduzir que a edição do texto constitucional em 1998 serviu para sancionar uma disposição que surgiu inconstitucionalmente em 1989 e foi replicada em 1991 em outra norma, de forma que foi necessário a atuação posterior do legislador para justificar a cobrança diferenciada de alíquotas em relação às instituições financeiras e demais entidades equiparáveis.
5. Da (in)constitucionalidade da alíquota
A discussão sobre a (in)constitucionalidade da cobrança da alíquota diferenciada para as instituições financeiras é assunto tão controvertido que se tornou tema de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal – STF. Dada a complexidade do assunto, a análise da questão foi segmentada temporalmente.
Inicialmente, o Supremo se pronunciou a respeito da (in)constitucionalidade da alíquota de 2,5% após a edição da EC 20/98, no julgamento do Recurso Extraordinário 598.572 e posteriormente, a Corte revisitou o tema, mas agora em relação ao período anterior à edição da EC 20/98, no julgamento do Recurso Extraordinário 599.309.
5.1 Da (in)exigibilidade da alíquota após a EC 20/98
Em março de 2016 foi julgada no Supremo a tese de repercussão geral nº 204, a qual diz respeito à contribuição adicional de 2,5% sobre a folha de salários de instituições financeiras instituída pela Lei nº 8.212/91. O tema em questão chegou ao plenário da Corte por meio do RE 598.572, e durante a sessão os Ministros presentes firmaram entendimento de que a decisão a ser proferida levaria em consideração apenas o período posterior à edição da EC 20/9824.
O caso em tela, de relatoria do Ministro Edson Fachin, originou-se de um Mandado de Segurança em que o banco impetrante requeria a inexigibilidade de cobrança da referida alíquota para as instituições financeiras e equiparadas, com fulcro na violação ao princípio da isonomia, da capacidade contributiva e na equidade no custeio da seguridade social. O julgamento do feito foi calcado no art. 195, §9°, CF, dispositivo este que foi acrescentado ao texto constitucional por intermédio da EC 20.
Neste ponto, vale recapitular que esta norma prevê explicitamente a possibilidade de escolha de alíquotas com base de cálculo diferenciadas conforme o seguimento econômico da empresa. Ademais, esta mesma norma também estabelece outros critérios de diferenciação para tributação como: o porte da empresa, o grau de utilização de mão de obra e a condição estrutural do mercado de trabalho.
Durante a apreciação do caso, argumentou-se que não há qualquer critério jurídico capaz de desabonar a livre escolha do legislador em agravar o setor financeiro com recolhimentos diferenciados para fins de custeio da Seguridade Social, demais, este fato só reforça ainda mais a viabilidade de tributação diferenciada para contribuintes que estejam em situações desiguais25.
Outro ponto significativo para a resolução do caso diz respeito ao exame, em concreto, dos princípios da isonomia, da capacidade contributiva e da equidade na participação do custeio da Seguridade Social.
Em relação ao princípio da isonomia e da capacidade contributiva, a hermenêutica jurídica desenvolvida no julgamento demonstrou que, embora o texto original da Constituição Federal previsse apenas diferenciação de cobrança para a espécie tributária impostos, após a EC 20 o texto constitucional passou a admitir expressamente a diferenciação de tratamento também para as contribuições sociais, de modo que eventuais arguições de violação ao princípio da isonomia restaram superadas.
Ademais, tendo em vista que nenhum princípio é absoluto, a tributação diferenciada para contribuintes que não estejam em situações equivalentes significa verdadeira aplicação do princípio da isonomia em seu prisma substancial, sem deixar de levar em consideração a capacidade econômica do contribuinte.
As instituições financeiras e as entidades equiparáveis possuem características peculiares em relação às demais empresas, sobretudo por conta de seu propósito lucrativo. Neste contexto, é patente que este seguimento econômico possua margem de lucro privilegiada, de modo que o acréscimo de 2,5% de contribuição sobre a folha de salários serve para compensar vantagens inerentes a estas instituições. Conforme dados divulgados em 2018, a rentabilidade anual de empresas não financeiras gira em torno de 4,5%, enquanto que das instituições financeiras tem média de 13,9%26.
Estas entidades, em regra, atuam por meio de recursos informatizados e buscam reduzir ao máximo a necessidade de mão de obra, principalmente neste momento, que está em voga o “banco digital”27. Estes fatos acarretam uma redução significativa na arrecadação previdenciária deste seguimento econômico quando comparado a outros ramos empresariais.
Assim, de um lado o ramo financeiro apresenta altos índices de lucro, o que demostra maior capacidade contributiva, e de outro lado apresenta um regresso progressivo na participação do custeio da Seguridade Social, já que suas atividades habituais requerem cada vez menos mão de obra.
No que toca à violação de princípios, também não há que se falar em violação ao princípio da equidade na forma de participação no custeio, pois a alíquota estabelecida para estes contribuintes está em conformidade com sua capacidade contributiva, tendo em vista que todos devem contribuir equitativamente para o custeio da seguridade social tendo como parâmetro unicamente sua própria capacidade econômica.
O recurso em análise foi julgado e, por unanimidade, firmada a seguinte tese:
Recurso extraordinário a que se nega provimento, fixando a seguinte tese em sede de repercussão geral: ‘a diferenciação de alíquotas em relação às contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha de salários de instituições financeiras ou equiparáveis, com previsão no art.22,§1º, da Lei 8.212/91, não representa ofensa à igualdade tributária, uma vez que possui guarida constitucional legítima a partir da EC 20/98 e concretiza o princípio da igualdade substancial e da solidariedade no custeio da seguridade social’28.
Assim, a análise conjunta do principio da isonomia, da capacidade contributiva e da equidade na forma de participação no custeio permitem constatar que a majoração em 2,5% da alíquota sobre a folha de salários não violou nenhuma dessas normas, quando observados após a edição da EC 20/98.
Nestes termos, o art. 22, §1° da Lei 8.212/91 primou pelo enaltecimento do princípio da isonomia em sua forma substancial ao prever tratamento diferenciado para aqueles que não estão em situação equivalente aos demais, destacando a divisão equitativa no custeio da seguridade e a capacidade econômica do contribuinte.
5.2 Da (in)exigibilidade da alíquota antes da EC 20/98
Em junho de 2018 o Supremo Tribunal Federal revisitou o tema da cobrança de alíquotas superiores para as instituições financeiras, porém o foco do julgamento estave pautado na exigibilidade ou não da referida alíquota antes da edição da EC 20/98. Assim, no Recurso Extraordinário 599.30929, representado pelo tema 470 da repercussão geral no Supremo, questionava-se a constitucionalidade da Lei 7.787/89, bem como a validade da alíquota de 2,5% estipulada em seu art.3°, §2°, veja-se:
Art. 3º A contribuição das empresas em geral e das entidades ou órgãos a ela equiparados, destinada à Previdência Social, incidente sobre a folha de salários, será: [...]
§ 2º No caso de bancos comerciais, bancos de investimentos, bancos de desenvolvimento, caixas econômicas, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, sociedades corretoras, distribuidoras de títulos e valores mobiliários, empresas de arrendamento mercantil, cooperativas de crédito, empresas de seguros privados e capitalização, agentes autônomos de seguros privados e de crédito e entidades de previdência privada abertas e fechadas, além da contribuições referidas nos incisos I e II, é devida a contribuição adicional de 2,5% sobre a base de cálculo referida no inciso I;
Como se vê, a redação desta norma é muito semelhante ao disposto no art. 22, §1° da Lei de Custeio, de forma que é razoável considerar que ao analisar a Lei 7.787/89, também se analisou a Lei 8.212/91, ainda que reflexamente.
No recurso em questão, os contribuintes arguiram a violação ao princípio da isonomia, pois alegavam que o seguimento financeiro estaria sendo discriminado ao ser tributado com alíquotas superiores com base na presunção de maior capacidade econômica. Arguiu-se também que dar validade à cobrança da alíquota de 2,5% sobre a folha de salários em relação ao período anterior à EC 20/98 resultaria em admitir que uma lei criada em 1989 estaria sendo constitucionalizada através de uma emenda quase dez anos depois30.
O relator do recurso, o Ministro Ricardo Lewandowski defendeu em seu voto que mesmo antes da edição da EC 20/98 seria possível a cobrança diferenciada de alíquotas para as instituições financeiras, pois, uma vez que possuem maior capacidade contributiva, é válido que contribuam com uma quantia maior para o financiamento de políticas sociais, o que prestigia o princípio da capacidade contributiva e da solidariedade. Ademais, também não há que se falar em tratamento discriminatório, uma vez que não houve ofensa flagrante ao texto constitucional31.
Outro argumento apresentado para justificar a constitucionalidade da lei 7.787/89 e a validade de cobrança da referida alíquota, mesmo antes de 1998, foi o fato de que a EC 20 apenas explicitou princípios. Lewandowski alegou “quando emenda se limita a explicitar algo sem inovar é descabida discussão sobre efeitos retroativos. Não é lícito falar em constitucionalização porque a regra vinda com a EC 20 não era inconstitucional antes de sua edição”32.
A maioria dos Ministros, ao fim da sessão, seguiram o relator e votaram pela constitucionalidade da Lei 7.787/89 e validade da cobrança da alíquota de 2,5% mesmo antes da EC 20/98. O fundamento para a decisão foi o entendimento firmado anteriormente nos autos do RE 598.572, já analisado previamente, qual seja, que o legislador pode adotar metodologias que acarretem exação diferenciada a determinado seguimento econômico para que assim contribuía de forma equivalente à sua capacidade econômica33.
Neste julgado, vale destacar a única posição que divergiu do relator, o voto do Ministro Marco Aurélio, que pleiteou pela inconstitucionalidade da Lei 7.787/89. Argumentou o Ministro que não existe pertinência entre a alíquota majorada e a observância dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, pois a Constituição, antes da EC 20/98, só autorizava a distinção de tratamento entre contribuintes para a incidência de impostos (art. 150, inciso II, CF) e nada se falava a respeito de contribuições sociais diferenciadas em razão da atividade econômica exercida34.
Logo, é muito importante evidenciar que somente a EC 20/98 deu guarida para tratamento diferenciado para os contribuintes integrantes do sistema financeiro. Até então, a imposição de tratamento mais oneroso a uma categoria com base unicamente na presunção abstrata de maior capacidade contributiva era incompatível com o texto constitucional. Este argumento, na visão do Ministro, é tão verdadeiro que foi necessária a edição de uma emenda para referendar a cobrança diferenciada de contribuições sociais.
Por fim, ressaltou o Ministro Marco Aurélio que no ordenamento jurídico brasileiro não há espaço para emendas constitucionais simplesmente explicativas, assim constitucionalização superveniente de normas jurídicas. Isso quer dizer que não são admitidas emendas sem conteúdo normativo, motivo pelo qual o texto trazido pela EC 20/98 inaugurou de fato a possibilidade de tratamento tributário diferenciado para o custeio da seguridade social, já que até então a regra era de não diferenciação de tratamento35.
Ademais, não há que se falar em constitucionalização superveniente porque tal fato desrespeita a hierarquia das fontes legais, segundo a qual as normas infraconstitucionais devem ser criadas em conformidade com o texto constitucional vigente à época e não o contrário, ou seja, a constituição se moldar a dispositivos infraconstitucionais.
Embora a existência de voto divergente, o RE em análise foi julgado com a seguinte tese:
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 470 da repercussão geral, negou provimento ao recurso, vencido o Ministro Marco Aurélio. Ao final, o Tribunal, por maioria, fixou a seguinte tese: "É constitucional a contribuição adicional de 2,5% (dois e meio por cento) sobre a folha de salários instituída para as instituições financeiras e assemelhadas pelo art. 3º, § 2º, da Lei 7.787/1989, mesmo considerado o período anterior à Emenda Constitucional 20/1998". Vencido o Ministro Marco Aurélio na fixação da tese. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello, Luiz Fux e Roberto Barroso, e, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 6.6.201836.