Resumo: A Constituição alemã de Weimar completou 104 anos em 11 de agosto. A norma foi pioneira na garantia de direitos fundamentais e sociais, além de atribuir ao Estado o papel de proteger os cidadãos. No entanto, a Carta não tornou tais direitos exigíveis em juízo. A estrutura da Constituição de Weimar é claramente dualista: a primeira parte tem por objetivo a organização do Estado, enquanto a segunda parte apresenta a declaração dos direitos e deveres fundamentais, acrescentando às clássicas liberdades individuais os novos direitos de conteúdo social. Uma das faces mais evidentes e relevantes na percepção da destruição do paradigma de Weimar é a suspensão de uma série de direitos fundamentais e afastamento das balizas de organização do governo. Os principais instrumentos jurídicos para isto foi o “decreto presidencial para proteção do povo e do Estado” (de 27 de fevereiro de 1933), com base nas prerrogativas conferidas pelo art.48 da Constituição, e o Ermächtigungsgesetz (Ato habilitante de 23 de março de 1933).
Palavras-chave: Nazismo. Constituição Weimar. Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. Partido Nacional-Socialista.
1. A República de Weimar e os Caminhos para o Totalitarismo
Depois de ser vencida na Primeira Guerra Mundial, a Alemanha experimentou uma série de crises que impuseram grande sofrimento às massas e ensejaram elevada desconfiança quanto à eficiência do Estado e do modelo democrático parlamentar. Todo esse contexto permitiu a ascensão do Partido Nacional-Socialista1, que questionava a ordem não para modificá-la, mas, sim, para mantê-la sob a direção de novos protagonistas.
O Direito foi progressivamente modificado de dentro, ou seja, por medidas normativas decretadas pelo Poder Executivo, que instituíram um Estado dual: uma combinação entre o Estado de Prerrogativas, que era arbitrário e violento, e o Estado Normativo (indispensável ao sistema capitalista).
O novo regime suprimiu os direitos fundamentais de todos que não interessavam ao Partido ou aos monopólios capitalistas, sem encontrar efetiva resistência dos demais poderes — mesmo em pleno século XXI —, na medida em que a derrota militar do nazismo ou do fascismo, ao final da Segunda Grande Guerra Mundial (1945), parece não ter representado a extinção de suas ambições ou métodos.
Os apelos por governos fortes ou por medidas de exceção ressurgem novamente nos debates eleitorais, nas redes sociais ou no interior das instituições democráticas. Aos operadores do Direito cumpre saber identificar, em suas realidades, as novas ondas autoritárias e se opor aos retrocessos.
Na Idade Contemporânea, o propósito do Estado e o papel do Direito foram redesenhados muitas vezes no mundo ocidental, conforme se infere da passagem do Estado Absolutista (século XVIII) para o Estado Liberal Constitucional (século XIX), deste para o Estado Ditatorial ou Totalitário (século XX), da criação do Estado Social-Democrático (século XX) e sua transformação no nefasto Estado Neoliberal2 (século XXI).
Em busca da superação das crises e desafios, o homem procurou o avanço econômico e científico, a formação de novos arranjos políticos e jurídicos, com o fito de evitar o ressurgimento de novas perturbações. Todavia, a História não é uma linha reta: é plurívoca e caminha entre luzes e sombras e, não raro, existem mais sombras do que luzes, conforme se viu na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, na prática do Holocausto e no decreto de morte de minorias.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a ciência, no afã de compensar toda a destruição causada, criou instrumentos capazes de reduzir as distâncias de tempo e espaço, de relativizar fronteiras, de aproximar pessoas e, ainda, de facilitar a troca de conhecimento. Os avanços tecnológicos multiplicaram os meios de produção e aumentaram o potencial de circulação de riquezas.
No campo jurídico, reafirmaram-se os direitos humanos e a ética coletiva, em detrimento da moral individual. E, apesar de tanta miséria e escassez, as desigualdades e as guerras não deixaram de existir. As sociedades consideradas mais civilizadas ainda lutam contra a criminalidade, contra a violência e contra o terror.
As crises, infelizmente, são recorrentes, as guerras, iminentes, assim como as polarizações sociais e os movimentos políticos extremos. O progresso material não modificou nossos instintos primitivos nem nossos impulsos de dominação.
Não há surpresa, pois, nas primeiras décadas do século XXI, o Ocidente voltou a experimentar retrocessos democráticos e a assistir à ascensão de regimes autoritários, ainda que estes se apresentem com menor clareza, como acontece na liquidez embriagante do mundo contemporâneo.
O risco de movimentos autoritários e de rupturas democráticas é concreto, não apenas por a história ser pendular, movendo-se entre progressos e retrocessos, mas por seguirmos em um mundo globalizado e neoliberal, em que a tecnologia e a inteligência artificial conferem meios de dominação mais violentos e menos aparentes.
A Ciência do Direito não pode ignorar a realidade que a circunda nem recear conhecer os fenômenos políticos, econômicos, filosóficos, sociológicos e até psicológicos que estão no cerne do autoritarismo. Se pretende agir como ciência social aplicada que é, deve ser capaz de compreender a natureza humana, de regular o comportamento social, a economia e a política — e não se deixar regular por eles.
Eis que, portanto, não há surpresa no fato de que, nas primeiras décadas do século XXI, o Ocidente tenha voltado a experimentar retrocessos democráticos e a temer os regimes autoritários, ainda que se apresentem com menor clareza. O Direito não pode ousar ignorar a realidade que o circunda, tampouco recear conhecer os fenômenos políticos, econômicos, sociológicos e até psicológicos que justificam o autoritarismo.
Ao identificar as causas e condições que permitiram a ascensão do regime nazista alemão a partir de 1930 — por ser este um dos mais representativos regimes do século XX —, percebe-se que, no seu auge, rompeu com o Estado de Direito e com a ordem centrada no ser humano.
Pretende-se compreender a transição de um Estado de Direito para o regime totalitário e verificar essa experiência nefasta que, paradoxalmente, ensejou progresso à ciência do Direito, tornando-a mais apta a tutelar o ser humano.
Tamanho desafio se impõe à medida que a transformação do funcionamento dos Estados e das sociedades, num mundo globalizado, desafia impiedosamente a democracia.
Os legados deixados pela Primeira Guerra Mundial começam pela crise do liberalismo econômico. “O breve século XX” foi a expressão utilizada por Eric Hobsbawm e foi marcado pela guerra — ou melhor, por duas grandes guerras —, com a duração de trinta e um anos (1914-1945), o que levou todos a refletirem sobre os conflitos do século XX.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) envolveu todas as grandes potências e quase todos os Estados europeus, como os que integraram a Tríplice Entente (França, Grã-Bretanha e Rússia) e os que a ela se aliaram posteriormente (Itália, Grécia, Romênia, Portugal e EUA), assim como os que integraram as “Potências Centrais” (Alemanha e Áustria-Hungria) e os que a estas se juntaram (Turquia, Bulgária e Japão).
A Alemanha (antiga Prússia), cujas unificação e industrialização se deram tardiamente, pretendia assumir uma posição de supremacia política e marítima global, tal como a Grã-Bretanha; repartilhar as colônias na África e em outros continentes; bem como expandir seus territórios (espaço vital) por meio de guerras externas (nacionalismo agressivo).
A França queria compensar sua inferioridade demográfica com uma economia em crescimento e superar a Alemanha. As principais potências alinharam-se entre dois blocos, mas todas desejavam expandir seu potencial de produção, de comércio e de crescimento econômico.
Foi o acirramento das disputas entre as principais potências mundiais que colapsou a estrutura ocidental: capitalista na economia, liberal na ordem legal e constitucional, e burguesa no campo social.
E, segundo Hobsbawm, a política e a economia haviam se fundido sob a lógica da competição desmedida, a qualquer preço, e do crescimento infinito e sem limites.
A ausência de limites para vencer a guerra produziu milhares de óbitos e derrotou todos os países envolvidos. Vencidos e vencedores ficaram falidos e extenuados, na medida em que o embate teria ido além de seus recursos e forças. Após a Primeira Guerra Mundial, muitos países caminharam para as tiranias fascistas ou governos totalitários (Arendt, 1989) 3.
A Alemanha, afora as perdas de guerra, fora apenada pelo Tratado de Versalhes, que, a pretexto de garantir a paz, tratou de alijá-la da economia europeia, ao dividir suas colônias entre a França e o Reino Unido, limitar o poderio de suas forças armadas, condená-la a pesadas indenizações, restringir sua industrialização, determinar ocupação militar em parte de seu território e ainda engendrar o isolamento econômico.
Para o citado historiador, tais sanções instalaram tamanha instabilidade na Europa no pós-1918 que tornaram quase certa a Segunda Guerra Mundial, além de trazer a violência dos campos de batalha para a política.
De forma geral, os Estados se propuseram a garantir que não mais se submeteriam aos horrores da guerra. Assim, os líderes políticos abusaram de discursos nacionalistas e propagandas que idealizavam Estados-nações grandes, fortalecidos pela etnia, cultura, idioma e nacionalidade (Hobsbawm 4, 1995).
Já no plano econômico, mobilizaram-se para produzir farto material bélico e tornar suas economias altamente industrializadas e produtivas, além de desenvolver capacidade administrativa para contabilizar custos e planejar estratégias políticas, econômicas e militares.
As ideias próprias ao liberalismo econômico, fortemente defendidas no mundo ocidental no século XIX e início do século XX, foram cedendo, naquele contexto de guerra e crises, a movimentos de intervenção do Estado.
“Quase todos os que serviram na Primeira Guerra Mundial – em sua esmagadora maioria soldados rasos – saíram dela inimigos convictos da guerra. Contudo, os ex-soldados que haviam passado por aquele tipo de guerra sem se voltar contra ela às vezes extraíam da experiência partilhada de viver com a morte e a coragem um sentimento de incomunicável e bárbara superioridade – inclusive em relação a mulheres e não combatentes – que viria a formar as primeiras fileiras da ultradireita do pós-guerra” (Hobsbawm, 1995).
2. A Construção Política e Ideológica do Autoritarismo
Carl Schmitt 5, em sua obra O Conceito do Político (1922), identificou que a humanidade se organiza a partir de âmbitos de preocupações centrais, em torno dos quais promove seu desenvolvimento. No século XVI, o cerne dos interesses era a teologia, segundo a qual a paz e o progresso seriam alcançados por aqueles que observassem os deveres religiosos.
No século XVII, a metafísica serviu de referencial que impulsionou o desenvolvimento da matemática, da astronomia e das ciências naturais.
No século XVIII, a racionalização do saber humano foi a mola propulsora do desenvolvimento da humanidade. No século XIX, a economia ganhou destaque em função da industrialização, da produção e do consumo.
No século XX, a técnica ensejou uma crença fervorosa na arte de dominar a natureza e a produção econômica.
Segundo Schmitt, o homem sempre buscou a neutralidade e a despolitização para obter melhor entendimento, união e segurança. Porém, assim como a religião não garantiu a paz, tampouco o fizeram as ciências naturais, a economia ou a técnica. Depois das guerras religiosas, vieram as guerras nacionais, as disputas por expansão de territórios, por aquisição de recursos naturais e de novos mercados de consumo.
Fulcrando-se em Hegel — para quem o burguês não quer deixar a esfera do privado, apolítico e absolutamente livre do Estado, mas, antes, deseja proteção às suas posses e segurança à sua fruição —, Schmitt pontuou que o acúmulo de propriedades reclama poder social e controle político. Por isso, a partir do século XIX, o econômico une-se fortemente ao político.
Enfatizou que, apesar de os liberais se oporem ao político e ao Estado, necessitam de um sistema que lhes garanta a proteção da propriedade privada e elimine as perturbações às liberdades de uso desses bens e rendas.
Acresce que, se no âmago de cada indivíduo não há nada neutro e se as diferenças de interesses econômicos e políticos são inevitáveis, o risco de conflitos de interesses e de classes sociais também o é. A iminência do combate é real e não fruto de um pessimismo ou de uma dialética abstrata.
Para uma era teológica, tudo se resolve por si mesmo quando as questões teológicas são postas em ordem; tudo o mais “será concedido” então aos homens.
"E, correlativamente, para as outras eras: para um tempo humanitário-moral, trata-se apenas de educar e de formar moralmente os homens — todos os problemas se tornam problemas de educação; para um tempo econômico, é necessário apenas resolver corretamente o problema da criação e da repartição de bens, e todas as questões morais e sociais já não constituirão dificuldades; para o pensamento meramente técnico, através de novas invenções técnicas, também o problema econômico será solucionado, e todas as questões, inclusive as econômicas, recuam diante da tarefa do progresso técnico [...]” (Schmitt, 2015).
Nesse quadro, em que a contraposição de classes se faz sempre presente, conclui-se que à política compete promover a separação entre amigos e inimigos, isto é, distinguir grupos de pessoas de acordo com as afinidades de interesses econômicos, políticos e sociais, a fim de traçar prioridades e estratégias de ação ao Estado.
O Direito nunca se desconecta do político, de sorte que, mesmo que um Estado se apoie em um Direito Natural, representará, senão, a vontade e a visão do grupo dominante na política e na economia. Em suas palavras:
“[...] a soberania do direito significava apenas a soberania dos homens que põem e manipulam as normas jurídicas, que o domínio de uma ‘ordem mais elevada’ é uma frase vazia se não tiver o sentido político de que determinados homens, com base nesta ordem mais elevada, querem dominar sobre homens de uma ‘ordem mais baixa’” (Schmitt, 2015).
A defesa da apoliticidade é, para Schmitt, uma “armadilha intelectual” utilizada para ensejar o desconhecimento e mascarar realidades.
Tais reflexões críticas ao liberalismo político e jurídico implicariam diretamente na conformação dos Estados, do Direito e na relação entre o Direito e a política, a partir de 1918, na Alemanha.
Após o término da Primeira Guerra Mundial, o imperador alemão Guilherme II abdicou do trono e deu lugar à Proclamação da República de Weimar. Segundo Marie Groupy, a República de Weimar já nasceu enfraquecida.
Isso porque, para sua constituição, uniram-se forças políticas muito distintas (forças liberais, sociais-democratas, comunistas, entre outras), sem que houvesse consenso claro sobre a direção política a ser seguida pelo novo Estado.
A aliança pró-república era demasiadamente frágil e sujeita a constantes tensões. Pesava sobre o parlamento alemão uma verdadeira crise de confiança: a elite burguesa receava que o parlamento representasse apenas os interesses das massas proletárias.
Os proletários temiam que o Legislativo perpetuasse os interesses das elites. A aristocracia duvidava que um parlamento plural, representativo de forças políticas diversas, tivesse meios de adotar soluções rápidas e eficientes para conter o avanço do comunismo e a revolta dos proletários (Goupy, 2016).
Segundo Goupy, conquanto a atmosfera antiparlamentar não se limitasse ao território alemão — havendo, na Europa, intensas discussões em torno da separação de poderes, dos poderes de crise e da fé exagerada no parlamento (“legiscentrismo”) —, na República de Weimar o contexto de perturbações era mais intenso.
Além das perdas da guerra e das sanções impostas pelo Tratado de Versalhes, os veteranos mutilados não se ajustavam aos seus ambientes; a classe operária/trabalhadora padecia de frustração diante das promessas não realizadas pelos movimentos comunistas; e a Alemanha enfrentava uma crise de hiperinflação a partir de 1923, além de elevado desemprego e perda de poder aquisitivo dos trabalhadores, sobretudo após a Grande Depressão econômica mundial (1929).
Os defensores do capitalismo já não conseguiam convencer as massas de que o “melhor sistema econômico” era o capitalismo.
É dentro desse contexto que o Partido Nacional-Socialista ascende ao poder, com a nomeação de Adolf Hitler ao cargo de Chanceler, em 30.1.1933, e instala um regime de exceção. A pretexto de salvaguardar a ordem e a segurança, a experiência nazista em Weimar subverteu os valores de justiça e ética cultivados tradicionalmente pelo mundo ocidental, descartando seres humanos como itens supérfluos e dispensáveis.
3. O Direito como Instrumento do Totalitarismo
Ernst Fraenkel, advogado judeu nascido na Alemanha e veterano de guerra, na obra Dual State: A Contribution to the Theory of Dictatorship, descreve, com propriedade, como se deu a implantação do regime nazista, a partir de 1933.
“Legiscentrismo” (fé exagerada no parlamento) era uma expressão crítica utilizada por parte das elites conservadoras, que temiam a prevalência dos interesses das massas nas deliberações da Assembleia Legislativa — o órgão considerado mais representativo e democrático da República, no qual o povo podia exercer sua soberania. Nesse movimento antiparlamentar, foram também empregadas expressões como “absolutismo parlamentar” e “ditadura do parlamento” (Goupy, 2016).
O valor da obra é inestimável, por ter sido escrita em Berlim, no período entre 1936 e 1938, isto é, no curso dos acontecimentos, por alguém que vivenciou a transformação do Estado de Direito em Estado Ditatorial, bem como por descrever as técnicas de Estado adotadas pelo novo regime.
Fraenkel observa que o regime nazista não se resumiu à disseminação da violência, das arbitrariedades e ao desrespeito aos direitos fundamentais, como sugere o imaginário popular.
Assevera que foi, na verdade, uma combinação entre arbitrariedade (desrespeito às leis/ausência de limites) e ordem (respeito às leis).
Ao mesmo tempo em que o governo incorria em arbitrariedades e violência ilimitadas — o que denominou Estado de Prerrogativas —, havia um corpo normativo que continuou a ser respeitado pelas Cortes Administrativas e Judiciais, garantindo a existência e o funcionamento de um Estado Normativo.
Essa dualidade — longe de ser contraditória — foi justamente a chave que permitiu a rápida transição do Estado de Direito para o Estado Autoritário.
Inicialmente, ocultaram-se a violência e as arbitrariedades, dificultando a percepção geral de tais práticas. Depois, normatizaram-se e tornaram-se ordinárias as barbaridades, como se fossem rotinas legítimas, uma vez autorizadas por leis e decretos. E, ao final, eliminou-se a capacidade de resistência dos indivíduos e das instituições, de modo que apenas forças externas (outros Estados) puderam rompê-las.
Tal dualismo também permitiu ao Estado Alemão atender às diversas crises que pairavam sobre a República de Weimar, ao aliar: – um Estado autoritário (que toma decisões rápidas), – a um Estado racial (que escolhe seus inimigos e destrói seus opositores), – a um Estado militar (que acelerou o crescimento armamentista, elevou o número de empregos e aqueceu a economia), – a um Estado interventor na economia (que direciona o crescimento econômico em prol da autossuficiência da Alemanha), – a um Estado expansionista, – e a um Estado capitalista (que garante a propriedade privada e a segurança jurídica).
A Constituição de Weimar (1919) atribuía ao Presidente do Reich, em seu art. 48, §2º, poderes excepcionais para agir em situações de crises graves:
“Se a segurança e a ordem pública forem gravemente perturbadas ou ameaçadas dentro do Reich alemão, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para restabelecê-las, intervindo, se necessário, com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, pode suspender temporariamente, no todo ou em parte, os direitos fundamentais previstos nos artigos 114.º, 115.º, 117.º, 118.º, 123.º, 124.º e 153.º.”
Para garantir a existência do Estado e restabelecer a ordem e a segurança públicas, a Constituição de Weimar facultava ao Poder Executivo adotar quaisquer medidas, fazendo uso, inclusive, das forças armadas e da suspensão dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade de reunião e de associação, inviolabilidade das comunicações, inviolabilidade do domicílio, proibição do confisco ou de restrições à propriedade além dos limites da lei.
Após o incêndio do Parlamento Alemão (27.02.1933), houve a promulgação, pelo presidente Hindenburg, do Decreto Emergencial (28.02.1933), que, com o objetivo de proteger o “Povo e o Estado” e combater a ameaça comunista e os inimigos do Estado, permitiu:
a suspensão dos direitos fundamentais acima referidos;
a intervenção federal nos governos estaduais e locais, caso estes deixassem de tomar medidas necessárias ao restabelecimento da segurança e da ordem públicas ou desobedecessem às ordens do governo do Reich;
prisão perpétua, pena de morte e confisco de bens para quem se opusesse às ordens do Reich, praticasse conspiração ou atentasse contra seus membros.
O artigo 76 da Constituição de Weimar também permitia ao Poder Legislativo produzir emendas constitucionais, respeitados os quóruns qualificados para a instalação da assembleia (presença de 2/3 dos membros do parlamento) e aprovação das medidas (2/3 dos presentes).
Em 24.03.1933, o Parlamento Alemão promulgou então a Lei dos Plenos Poderes, concedendo poderes legislativos ao Chanceler (Hitler), facultando-lhe modificar a Constituição sem controle prévio ou posterior dos demais poderes, desde que não contrariasse as instituições do Reichstag (Parlamento) e do Reichsrat (Conselho Administrativo).
Assim, ancorados no Decreto Emergencial e na Lei dos Plenos Poderes, propalou-se o entendimento de que os atos do Poder Executivo poderiam derrogar ou modificar a própria Constituição, observando-se que o art. 76. da Constituição de Weimar não havia imposto limitações materiais ao poder de emenda conferido ao Poder Legislativo, assim como tampouco o fizera a Lei dos Plenos Poderes em relação ao Poder Executivo.
Marie Goupy revela que importantes juristas europeus, como Carl Schmitt, Jacobi, Carré de Malberg e Maurice Hauriou, sustentaram prontamente o acerto e a legitimidade dessas medidas, que inflaram exponencialmente os poderes do Chefe do Poder Executivo (Goupy, 2016).
Argumentavam, de modo geral, que os “poderes de crise” conferidos ao Poder Executivo não contrariavam as bases de um Estado Constitucional Moderno, mas promoviam um indispensável e necessário reequilíbrio de poderes, na medida em que o parlamento havia sido superestimado pela Constituição de Weimar.
O nome Decreto Emergencial era Decree of the Reich President for the Protection of People and State of 28 February 1933. O preâmbulo dizia: On the basis of Article 48, Section 2, of the German Constitution, the following is decreed as a defensive measure against Communist acts of violence that endanger the state (Reichstag [...], [Alexandria], [2023]).
Sustentava-se que os “atos legislativos” do Executivo não modificariam normas constitucionais em caráter perene, por serem provisórios e vigentes apenas durante a situação de crise, não havendo, assim, risco de subversão democrática.
Defendia-se a ideia de que o Poder Executivo era mais eficiente na tomada de decisões em contextos de crise, em comparação ao parlamento, além de ser igualmente democrático, uma vez que o Presidente havia sido eleito, assegurando o princípio majoritário democrático.
Alegava-se, ainda, que o controle dos atos do Poder Executivo poderia ser evitado, na medida em que os demais poderes não poderiam se sobrepor às escolhas políticas realizadas.
Os debates doutrinários acerca da separação de poderes e dos “poderes de crise” atribuídos ao Poder Executivo ocorreram largamente no período entreguerras.
O Estado de Prerrogativas era munido de plenos poderes. O Chanceler alemão Adolf Hitler 6 e o Partido Nacional-Socialista adotaram medidas que modificaram profundamente as bases da República Federativa de Weimar. Dentre as muitas transformações empreendidas, destacou Fraenkel:
a distinção entre Estado Político e Estado Administrativo;
a fusão entre o Estado e o Partido Nacional-Socialista;
a abolição de direitos e garantias individuais aos “inimigos”;
a supressão das limitações legais ao exercício do poder de polícia no cumprimento do Decreto Emergencial;
a eliminação do poder de revisão judicial sobre tais atos.
A lógica adotada partia da premissa de que o Poder Executivo não deveria servir apenas à prática de atos administrativos ou à prestação de serviços públicos essenciais. Competia-lhe, antes e acima de tudo, tomar as decisões políticas diretivas dos rumos do Estado.
Pregava-se que apenas o Executivo detinha as condições necessárias para alcançar os propósitos do Estado e salvaguardar sua existência. Garantir a sobrevivência do Estado era mais importante do que respeitar direitos ou normas processuais, uma vez que, sem Estado, não haveria direitos.
Adotou-se uma importante distinção entre “Estado Político” e “Estado Administrativo”. Os atos políticos, praticados pelo Poder Executivo, deveriam ser considerados soberanos e imunes ao controle das cortes administrativas ou judiciais. Já os atos administrativos, próprios do funcionamento da máquina estatal e de sua burocracia, continuariam sujeitos às regras legais, ao controle administrativo e à revisão judicial.
A condução política do país e sua legislação, por serem tarefas de cunho político, deveriam ficar ao encargo do Chanceler e do Partido Nacional-Socialista.
Aliás, o Estado e o Partido tornaram-se instituições fundidas e indistintas, de tal sorte que os membros do partido também podiam emitir ordens aos servidores públicos, à polícia alemã e aos civis.
A ordem jurídica foi também severamente modificada. O Decreto Emergencial de 28.02.1933 passou a ser aplicado de forma cada vez mais abrangente. Embora o art. 48, §2º, da Constituição de Weimar autorizasse a suspensão de apenas alguns direitos e garantias fundamentais, na prática, decidiu-se que qualquer medida poderia ser tomada contra os inimigos do Estado, a pretexto de preservar a ordem e a comunidade étnica.
Reconheceu-se o direito de expropriar bens, de suprimir liberdades e de eliminar vidas de comunistas, judeus, minorias, críticos, opositores políticos e até de inimigos pessoais dos agentes do Estado ou do Partido Nacional-Socialista, privando-os de proteção legal.
Sob a égide da teoria do perigo indireto, buscava-se a eliminação de todos os focos de conflito, tensões e manifestações de diferenças. Afirmava-se que qualquer desafeição permitiria o crescimento de atividades comunistas e de subversão à ordem e à segurança públicas, tornando-se essencial garantir a homogeneidade do povo alemão.
No decorrer do tempo, Fraenkel 8 observou que a abolição dos direitos e garantias fundamentais atingiu a todos que não interessavam ao regime nazista ou que não demonstravam perfeito alinhamento ideológico com o governo — mesmo que fossem arianos.
Uma lei promulgada sobre a Gestapo (polícia política), em 10 de fevereiro de 1936, proibiu o controle administrativo dos atos diretamente praticados pela Gestapo, bem como dos praticados de acordo com ordens gerais ou especiais da própria Gestapo, e dos atos praticados sob sua jurisdição 7 (Fraenkel, 2017).
Fraenkel registra inúmeras decisões judiciais reveladoras de que, após breve período de resistência, o Poder Judiciário curvou-se à teoria do perigo indireto, abstendo-se de analisar a legitimidade dos atos políticos ou dos atos de poder de polícia lastreados no Decreto Emergencial, sob o fundamento de que o mérito desses atos era político, não competindo revê-los (Fraenkel, 2017).
A proibição de controle dos atos ditos “políticos” pelas Cortes Administrativas e pelo Poder Judiciário permitiu a escalada das arbitrariedades e da violência, na medida em que eliminou barreiras aos excessos e tornou imunes os agentes do Estado e os membros do Partido Nacional-Socialista.
Em consequência da ausência de controle, esses agentes deixaram de motivar e de publicar os atos praticados; passaram a decidir questões alheias ao Decreto Emergencial e a desbordar dos parâmetros ali estabelecidos em proveito próprio, do partido ou dos empresários apoiadores do regime.
Em nome da “Proteção do Povo e do Estado”, foram desrespeitados princípios estruturantes do Estado de Direito, como o princípio da legalidade, o princípio da anterioridade da lei penal, a proibição do bis in idem (dupla punição pelo mesmo fato), o devido processo legal nos âmbitos formal e substancial, bem como houve desrespeito às decisões judiciais e à coisa julgada.
Fraenkel narra, em sua obra, diversos casos em que civis foram punidos por não realizar a saudação “Heil Hitler” diante de um veículo ou de alguma autoridade governamental — embora não houvesse dever legal de fazê-lo —; por realizar doações a instituições assistenciais não protegidas pelo regime nazista, revelando a falta de perfeito alinhamento ideológico; bem como casos em que Testemunhas de Jeová chegaram a perder o pátrio poder em relação aos seus filhos menores, por não enviá-los aos acampamentos da Juventude Hitlerista — o que era percebido como uma crítica velada ao regime (Fraenkel, 2017).