4. Estado Normativo
Em que pesem as arbitrariedades do Estado de Prerrogativas, a preservação do sistema capitalista era um dos pilares de sustentação do Regime Nazista.
A este competia proteger a liberdade contratual, os negócios jurídicos, a obrigatoriedade de cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda), a propriedade privada, as regras de livre concorrência e de proteção às marcas e patentes (Fraenkel, 2017).
A previsibilidade das ações do Estado era imprescindível para que os empresários calculassem os riscos de seus investimentos financeiros. A certeza de proteção jurídica à propriedade dos meios de produção e aos lucros era também indispensável à confiança no novo sistema.
A despeito da denominação “socialista” no nome do partido, é fato que o Partido Nacional-Socialista não protegeu a classe trabalhadora, como prometido. Ao Regime Nazista, interessava mais proteger as forças produtivas da “nação capitalista” do que os interesses do proletariado.
A fixação de salários, jornadas de trabalho e questões trabalhistas foram deixadas a cargo dos empresários, sob o pretexto de que os trabalhadores precisavam sacrificar temporariamente seus interesses em prol de uma nação forte e estável (Fraenkel, 2017).
As Cortes Administrativas e Judiciais foram expressamente proibidas, pelo Partido Nacional-Socialista, de promover interferência nos preços, nas margens de lucro, nas taxas de juros ou de revisar contratos na ausência de leis.
Ao Estado Normativo competia manter a normalidade do sistema capitalista, os interesses dos monopólios, dos cartéis, das holdings e de grandes empresas. O apoio político e financeiro prestado por estes ao Regime Nazista estava atrelado à eliminação dos inimigos (concorrentes) e ao direcionamento de políticas que lhes fossem favoráveis.
Não raro, pequenos e médios empresários foram descartados ou atingidos pelas arbitrariedades dos agentes do Estado/Partido. Fraenkel relata casos de comerciantes que foram acusados de serem judeus ou opositores ao regime, mesmo quando não o eram, apenas para que perdessem sua clientela ou fossem eliminados pelos concorrentes. Ninguém estava a salvo dos abusos do regime.
A manutenção desse Estado Normativo era importante, pois contribuía tanto para a preservação do sistema capitalista quanto para a transição do Estado Democrático ao Estado Ditatorial/Totalitário. De se pontuar, todavia, que o Estado Normativo era subsidiário ao Estado de Prerrogativas, de sorte que suas ações só eram permitidas se consideradas convenientes por este e por seus agentes.
A expressão “inimigo”, a ser combatido pelo Estado de Prerrogativas, podia ser facilmente atribuída a qualquer pessoa que representasse um obstáculo à expansão dos interesses dos grandes capitalistas ou dos membros do Partido Nacional-Socialista.
Fraenkel relata casos em que houve dupla condenação judicial de indivíduos pela prática do mesmo crime, quando se acreditava que os atos atribuídos aos acusados eram mais graves do que o demonstrado na primeira ação judicial; também narra casos em que decisões absolutórias foram ignoradas e desrespeitadas por agentes do Estado, que aplicaram a punição que o Poder Executivo julgava conveniente — em flagrante violação à coisa julgada (Fraenkel, 2017).
O fato de a República de Weimar ter mantido um Estado Normativo em funcionamento e de ter preservado os poderes Legislativo, Judiciário e os Conselhos Administrativos, bem como outras instituições democráticas, não evitou a degenerescência do Estado de Direito. Estado Normativo não era sinônimo de Estado de Direito.
À sombra do Decreto Emergencial e da Lei de Plenos Poderes, o conceito do político foi alargado de tal modo que se sobrepôs ao conceito de justiça. Operou-se uma inversão de papéis.
O Direito — que deveria controlar o exercício dos poderes do Estado — passou a ser conformado a partir da política. O desequilíbrio na separação de poderes e a impotência do Parlamento, do Poder Judiciário e das Cortes Administrativas permitiram a abolição indiscriminada de direitos e garantias fundamentais daqueles que não fossem úteis ao regime ou que a ele se opusessem.
O Nacional-Socialismo Alemão considerava todos os homens desiguais, separava-os por raças e defendia que apenas indivíduos da mesma raça e hereditariedade biológica, unidos pelos mesmos laços culturais, poderiam cooperar para o senso comum e para a paz (Fraenkel, 2017).
Tais discriminações e violências não se impuseram apenas para garantir a ordem, mas também para assegurar ao Partido Nacional-Socialista sua manutenção no poder. Mesmo após assumir o controle do Estado e reprimir as ondas subversivas do proletariado, o regime nazista continuou a agir para controlar todos os segmentos da sociedade e todos os aspectos da vida humana, sem distinção entre interesses públicos e privados, e em busca de um domínio total (Arendt, 1998).
Mobilizou o exército, todas as polícias, órgãos e servidores públicos, grupos paramilitares e simpatizantes para se espraiar sobre todos os âmbitos da vida: famílias, igrejas, clubes de lazer, associações, espaços de trabalho, de comércio e outros.
É curioso constatar que a organização totalitária não contou apenas com aqueles que desejavam extrair proveito do Estado, como a elite capitalista ou a classe média burguesa conservadora.
Encontrou adesão também da elite intelectual e da “ralé” — expressão adotada por Hannah Arendt para se referir aos proletários, desempregados e excluídos de toda sorte, denominados “subprodutos” da burguesia (Arendt, 1998).
O alinhamento de pessoas dotadas de visões de mundo e de interesses tão distintos é um fenômeno de causas múltiplas e complexas, que o espaço reservado a este artigo não permite investigar com profundidade.
Interessa-nos destacar apenas que, em situações de grave crise, quando a maioria das pessoas não se vê representada pelos parlamentares ou governantes, e predomina um sentimento de descrença generalizado, opera-se um colapso do sistema partidário e um colapso do sistema de classes.
Segundo Arendt, na crise aguda, os partidos políticos perdem o poder de representação, perdem o apoio dos simpatizantes neutros e já não conseguem recrutar membros dentre a geração mais jovem (apatia política). A divisão de classes deixa de fazer sentido, restando apenas massas desorganizadas (Arendt, 1998).
Quanto mais fragmentada e fragilizada a sociedade, mais propensa ela se torna à manipulação, aos discursos populistas, às propagandas nacionalistas e às promessas de que só um governo forte poderá transformar a realidade e eliminar os culpados. Não por acaso, os discursos e as propagandas nazistas foram permeados pela falta de verdade, pela ausência de lógica e por demonstrações de força.
A irracionalidade dos apelos exerce grande poder de atração e convida as massas ao engajamento em um movimento organizado, que visa destruir a ordem estabelecida para, paradoxalmente, salvar a ordem. Quanto mais distante da realidade, maior é a chance de sucesso da propaganda totalitária, observa Arendt — como se houvesse uma revolta contra o realismo e contra o bom senso.
Nessa conjuntura, nasce uma solidariedade entre as massas de homens insatisfeitos, descrentes do Direito e desconectados entre si, mas suscetíveis ao uso de medidas de força e violência. Também nascem, nesse ambiente, as condições de ascensão de regimes ditatoriais ou totalitários.
A diferença entre a verdade e a mentira deixa de ser objetiva e passa a ser uma questão de poder, de esperteza, de pressão e de repetição infinita. Líderes de movimentos totalitários, como Hitler e Stalin, mentiam — mas davam às massas mentiras com uma pompa impressionante (Arendt, 1998, p. 387).
“A eficácia desse tipo de propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas. Não acreditavam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si” (Arendt, 1998).
5. O Pós-Guerra e a Crítica ao Positivismo Jurídico
Após a Segunda Guerra Mundial, com o reconhecimento do Holocausto 8, dos campos de concentração e dos horrores perpetrados, iniciou-se a busca pelos culpados e, como não poderia deixar de ser, o Direito experimentou uma crise.
Constatou-se que as “medidas de exceção”, de natureza provisória, que tinham por escopo suspender a ordem jurídica a fim de restabelecer a ordem e conservar o Estado, protraíram-se no tempo e estabeleceram um novo regime.
O positivismo jurídico kelseniano foi acusado de ser corresponsável pelo terror, sob o fundamento de que o Direito Positivo — calcado em uma norma hipotética fundamental e autônomo em relação aos valores (moral), à política e às demais ciências humanas — pregava o respeito às leis postas, desde que conformes às normas superiores previstas no ordenamento jurídico, o que teria conferido sustentação ao regime nazista.
A esse respeito, é curioso constatar que o mesmo positivismo jurídico que submetera o Estado à estrita legalidade e fora aclamado como vitorioso na luta contra o absolutismo nos séculos XVIII e XIX, agora, no século XX, viu-se acusado de favorecer o totalitarismo.
Muitos passaram a defender o retorno ao Direito Natural, sob a premissa de que a validade das leis deveria ser extraída não apenas de sua forma, mas também de sua compatibilidade com valores supremos, aceitos como dignos de serem perseguidos. Sustentou-se que o Direito Natural deveria integrar o Direito Positivo e, sendo natural, ocupar posição hierarquicamente superior, servindo como fonte de justiça.
Outros passaram a questionar a própria relação entre Estado e Direito. Indagaram se o Direito deveria ser reconhecido apenas como o conjunto de normas produzidas pelo Estado (Direito Legalista) ou se poderia ser reconhecido também como produto dos costumes (Direito Consuetudinário) e das decisões judiciais (Direito Jurisprudencial), valendo-se de outras fontes, como as normas geradas a partir do comportamento humano e da experiência social.
Passou-se, então, a criticar o papel atribuído aos juízes e intérpretes do Direito, consignando-se que a estes não competiria apenas declarar o sentido da lei, mas também construí-lo no caso concreto, a partir da formação de juízos de valor e de escolhas conscientes.
Os debates entre jusnaturalismo e positivismo jurídico culminaram, na segunda metade do século XX, com o surgimento do constitucionalismo ou pós-positivismo, segundo o qual o Direito deve primar por valores e princípios, a serem respeitados como cânones de justiça e de interpretação das normas jurídicas. Tais valores, posicionados acima das regras jurídicas, devem conduzir à criação, à interpretação e à aplicação do Direito.
Luigi Ferrajoli 9 preconiza que a ciência jurídica deve guardar um papel crítico e projetual no que tange à substância do Direito. A democracia deve deixar de ser caracterizada apenas por sua dimensão formal e representativa, para assegurar:
limites aos órgãos de representação;
respeito às liberdades que nem mesmo a maioria pode violar; e
zelo pelos direitos sociais, a serem satisfeitos pela maioria (Ferrajoli, 2016).
Mas, acaso já existisse um Direito valorativo, teria ele evitado o totalitarismo em Weimar? Teria ele conferido maior poder de resistência aos operadores do Direito, às Cortes Judiciais e aos Conselhos Administrativos na Alemanha, evitando que estes se curvassem tão facilmente ao regime nazista?
Concordamos com Marie Goupy, para quem os regimes totalitários não surgiram de abusos do direito formal ou da aparente neutralidade do Direito, mas justamente da defesa de valores como Deus, família, propriedade, tradição, comunidade, entre outros.
Em suas palavras:
“A destruição totalitária das liberdades não começa jamais pelo abuso das garantias formais e procedimentais, mas, ao contrário, parte do desprezo destas em nome de um direito à ‘verdadeira religião’, à ‘comunidade de igualdade de raças’ ou bem se ancora em nome do ‘proletariado’” (Goupy, 2016, tradução livre).
Não há dúvida de que a defesa de valores e de direitos essenciais ao ser humano representa uma evolução do Direito e confere maiores chances ao desenvolvimento de uma sociedade mais justa e solidária. Não se reputa, todavia, que a constitucionalização rígida de princípios de justiça e a previsão de cláusulas pétreas constitucionais bastem à contenção de novas ondas autoritárias.
O Direito valorativo não elimina as dificuldades da escolha dos valores que merecem prevalecer; não elimina os interesses subjacentes ao jurídico, como a política, a economia, a moral e todas as suas crises; não blinda a sociedade contra os excessos ou os retrocessos — como já se vê no início deste século XXI.
Isso não significa, em absoluto, que o Direito, em quaisquer de suas acepções, possa ser indiferente aos momentos de graves crises.
A descrença no Direito e nas soluções pacíficas aos conflitos sociais leva as massas a aderirem aos movimentos autoritários. A confiança é substituída por medos, angústias e incertezas, como observou Zygmunt Bauman 10.
Para que a democracia seja percebida como algo indispensável por todos, é preciso que o Direito se torne um instrumento mais efetivo na redução das desigualdades sociais e da concentração de riquezas, bem como um vetor mais significativo de diálogo e de justiça social.
O Estado de Direito não é algo completo ou uma ideia que se realiza pelo direito positivo, mas um projeto que apenas se concretizará na medida em que seus valores forem efetivados na vida dos integrantes de toda a sociedade (Serrano, 2016).
Mas não é somente isso. Parece-nos ser imprescindível que os operadores do Direito possam compreendê-lo como um produto da realidade histórica, política e social, de modo a percebê-lo como um agente que transforma o todo, mas que também é conformado por ele — isto é, pelos interesses econômicos, políticos e sociais.
A Ciência do Direito deve ser estudada de maneira crítica e multidisciplinar, ao lado da filosofia e das demais ciências políticas e sociais. Enquanto o Direito estiver isolado e preso à sua roupagem técnica, serão reduzidas as chances de percepção, por parte de seus operadores, dos movimentos de transformação que o permeiam e das intenções que se escondem nos atos normativos e nas decisões judiciais.