Qual direito fundamental deve prevalecer?
Resumo: o STF, no RE 122272, julgou o tema a respeito da autodeterminação e liberdade religiosa das testemunhas de Jeová a submeterem-se a tratamento médico sem transfusão sanguínea, tendo em vista sua consciência religiosa. O julgado foi procedente à tese firmada, sendo sopesados dois princípios: o direito à autodeterminação e à liberdade religiosa e o direito à vida dos pacientes testemunhas de Jeová. O Estado não deve ser paternalista ou perfeccionista ao ponto de comandar a vida dos indivíduos, tendo estes o direito de autodeterminação e autonomia nos termos de suas respectivas liberdades de crenças e religião.
Palavras-chave: STF; testemunhas de Jeová; autodeterminação e autonomia; liberdade religiosa; direito à vida.
1. Introdução
O Supremo Tribunal Federal (STF) publicou a ementa do caso de recusa a tratamento por transfusão sanguínea de testemunhas de Jeová, sendo submetidas a outro tratamento que não à transfusão de sangue, visto sua consciência religiosa, autonomia e autodeterminação frente o direito à vida:
Direito constitucional. Recurso extraordinário submetido à sistemática da repercussão geral. Tema 1.069. Direito de recusa à transfusão de sangue. Liberdade religiosa e autodeterminação. Pessoa adulta e capaz. Ausência de impacto na esfera jurídica de terceiros. Recurso extraordinário julgado prejudicado. I. Caso em exame 1. Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão da Turma Recursal da Seção Judiciária de Alagoas, que negou provimento a recurso e, em consequência, manteve decisão que impediu o paciente, testemunha de Jeová, a submeter-se a procedimento cirúrgico sem a obrigatoriedade de assinatura de termo de consentimento para eventual realização de transfusão de sangue. II. Questão em discussão 2. A questão em discussão consiste em examinar a possibilidade de paciente submeter-se a tratamento médico disponível na rede pública sem a necessidade de assinatura de termo de consentimento para eventual realização de transfusão de sangue, em respeito a sua convicção religiosa. III. Razões de decidir 3. Uma vez reconhecido que a liberdade religiosa protege o agir de acordo com a própria fé e que a autodeterminação permite aos indivíduos dirigirem a própria vida, tomando desde as decisões mais elementares às mais fundamentais, o Estado deve assegurar às testemunhas de Jeová adultas, conscientes e informadas o direito de não se submeterem a transfusões de sangue, desde que isso não afete o direito de terceiros. 4. A autodeterminação e a liberdade de crença, quando houver manifestação livre, consciente e informada de pessoa capaz civilmente em sentido contrário à submissão a tratamento, impedem a atuação forçada dos profissionais de saúde envolvidos, ainda que presente risco iminente de morte do paciente. 5. A atuação médica em respeito à legítima opção realizada pelo paciente não pode ser caracterizada, a priori, como uma conduta criminosa, tampouco há que se falar em responsabilidade civil do Estado ou do agente responsável em razão de danos sofridos pela ausência de emprego de meios não aceitos pelo paciente. IV. Dispositivo e tese 6. Recurso extraordinário julgado prejudicado. Teses de julgamento: “1. É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, a recusa, por motivos religiosos, de submeter-se a tratamento de saúde. A recusa, por razões religiosas, a tratamento de saúde é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive, quando veiculada por meio de diretivas antecipadas de vontade. 2. É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico-científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente.”
Visto isso, há alguns princípios colidentes no caso concreto, sendo eles: liberdade religiosa, autodeterminação e autonomia; o direito fundamental à vida. Entre princípios colidentes, como a vida e a autodeterminação, qual deve prevalecer? Deve-se prevalecer o entendimento referente ao direito fundamental à vida ou à liberdade religiosa?
2. O princípio da autonomia e autodeterminação frente à vida e ao valor intrínseco do ser humano: liberdade religiosa ou a vida do paciente?
O Estado liberal de direito, oriundo das revoluções liberais-burguesas do século XVIII, trouxe-nos a ideia de individualismo com o racionalismo: o ser humano não deve ser considerado como parte, e apenas parte, de um ente coletivo, mas como um átomo que forma a coletividade. Contrapõe-se o ideal liberal individualista com o ideal organicista de sociedade, com o ideal organicista considerando o ser humano como submetido ao todo, não possuindo individualidade, e o ideal individualista considerando o ser humano enquanto um ente racional individualizado (BOBBIO, 2017).
Ademais, o direito à liberdade religiosa ou liberdade de crença veio com a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Americana (1787), contrapondo o absolutismo monárquico aliado à Igreja Católica, com o direito divino dos reis, sendo estes considerados como a fonte legal de Deus na Terra. Anteriormente, no absolutismo do Ancién Regime, tinha-se apenas a religião oficial, que era a cristã, imposta pelo soberano sobre seus súditos. Estes eram considerados como ovelhas do rebanho do rei, não possuindo autonomia para dirigir suas próprias vidas.
Contudo, com as revoluções liberais-burguesas, o individualismo, a capacidade de o ser humano conduzir sua própria vida sem interferência estatal com as liberdades negativas, liberdade que o cidadão tem de o Estado não interferir em sua autonomia privada (LENZA, 2021), incluindo a liberdade religiosa, predominou.
Mas, deve-se atentar que esse direito à liberdade em sentido genérico não é absoluto, como quaisquer direitos fundamentais. São características dos direitos serem relativos e históricos, conquistados ao longo da história e possuindo caráter de relatividade (BOBBIO, 2004). São, diante de sua historicidade e relatividade, sopesados entre outros princípios, como a vida e a liberdade religiosa no presente caso, visto não haver hierarquia entre os direitos individuais e coletivos, como anota SARMENTO (2024).
O direito à vida, dessa maneira, não possui mais valia em relação à liberdade religiosa e sua consciência. No caso em tela, vê-se que o Min. Rel. Gilmar Mendes realizou uma ponderação, prevalecendo a liberdade religiosa.
Para realizar esta ponderação, o Ministro Gilmar Mendes utilizou o princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio ora em comento possui a característica da autonomia, como a autodeterminação do ser humano, englobando grupos, como testemunhas de Jeová, ou o próprio indivíduo, no caso de casais homoafetivos. Todas as pessoas ou grupos têm o direito à autodeterminação enquanto direito inerente à pessoa humana e à sua personalidade. Foi este o entendimento de Gilmar Mendes, ora Min. Rel.
O Estado acaba, muitas vezes, sendo paternalista ou perfeccionista. No primeiro caso, infantilizando os seres humanos capazes e no segundo caso incutindo o ideal de vida boa aos indivíduos por meio de seu aparato. No julgado, concordo com a tese do Ministro Gilmar Mendes, porque o ser humano capaz possui o direito à recusa do tratamento enquanto testemunha de Jeová, visto sua autonomia e capacidade de se autodeterminar, sem interferência do Estado paternalista brasileiro.
3. Conclusão
Conclui-se, diante do exposto, que a testemunhas de Jeová possuem o direito à recusa do tratamento de transfusão de sangue por um meio alternativo, porquanto são seres humanos possuidores de dignidade e, portanto, autonomia e autodeterminação, não podendo o Estado brasileiro agir de maneira paternalista, ditando as regras que os indivíduos adultos e capazes devem seguir.
Referências bibliográficas
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 2 ed. São Paulo: GEN LTC, 2004.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 1. ed. São Paulo: Edipro, 2017.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 3. ed. São Paulo: Método, 2024.
Tema 1069 - Direito de autodeterminação dos testemunhas de Jeová de submeterem-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvance=true&classeNumeroIncidente=RE%201212272. Acesso em: 26 de mar. 2025.