RESUMO
Este trabalho irá apresentar um retrato acerca da oferta abusiva de crédito ao consumidor endividado e sua relação com o superendividamento. Trata-se de uma pauta desenvolvida a partir da compilação de vários estudos jurídico-dogmático da legislação, jurisprudência, doutrinas brasileiras e artigos científicos, no qual pretende-se apontar práticas mercadológicas consideradas abusivas e que contribuem significativamente para superendividamento do consumidor. Acredita-se que a abusividade das instituições financeiras, na oferta indiscriminada de crédito ao consumidor endividado, é, não a única, mas uma das causas ao superendividamento do consumidor. O crédito financeiro é um produto complexo que requer conhecimento e planejamento para seu uso saudável, assim, o consumidor que utiliza esse produto sem o conhecimento necessário, pode adquirir dívidas não planejadas e futuramente outros problemas sociais que decorrem do superendividamento. Constantemente, as Instituições financeiras atingem o consumidor com práticas mercadológicas consideradas abusivas, que vão desde a omissão de informações relevantes sobre juros do crédito e contratos complexos, até a entrega de crédito direto na conta do consumidor sem a sua autorização ou solicitação. Além disso, é comum que agentes financeiros, ainda que seja uma prática vedada, incentivem o consumidor negativado a contrair mais dívidas, oferecendo o famoso “crédito para negativado”. Assim, esta pesquisa no campo do direito do consumidor e sua dogmática jurídica, pretende, através do método de revisão de literatura, investigar e compreender os impactos dessas práticas abusivas na vida financeira do consumidor e seus reflexos para superendividamento.
Palavras-chave: Direito. Consumidor. Superendividamento. Abusividade. Oferta. Crédito.
SUMÁRIO: 1 – INTRODUÇÃO . 2. – O CONSUMDOR E SUA TRAJETÓRIA. 2.1. MARCOS INICIAIS DO DIREITO DO CONSUMIDOR . 2.2. O DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL. 3. – OFERTA DE CRÉDITO AO CONSUMIDOR ENDIVIDADO. 3.1. O CONSUMIDOR E O ENDIVIDAMENTO. 3.2. O CRÉDITO . 3.3. A OFERTA. 3.4. ABUSIVIDADE NA OFERTA . 4. – O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO. 4.1. O IMPACTO SOCIAL. 4.2. DISPOSITIVOS DE PROTEÇÃO LEGAL AO SUPERENDIVIDAMENTO (LEI 14.181/2021). 5. – CONSIDERAÇÕES FINAIS . REFERÊNCIAS .
INTRODUÇÃO
Partindo da premissa de que todo consumidor é parte vulnerável nas relações de consumo e que a educação financeira não integra as bases curriculares do sistema nacional de educação, acredita-se que a abusividade das instituições financeiras na oferta indiscriminada de crédito ao consumidor endividado é a principal causa ao superendividamento.
Constantemente, as Instituições financeiras atingem o consumidor com práticas mercadológicas consideradas abusivas, que vão desde a omissão de informações relevantes sobre juros do crédito e contratos complexos, até a entrega de crédito direto na conta do consumidor sem a sua autorização ou solicitação. Além disso, agentes financeiros, incentivam até mesmo o consumidor negativado a contrair mais dívidas, oferecendo o famoso “crédito para negativado”.
Essa abusividade na oferta de crédito, pode não ser a única, mais é uma das principais causas ao superendividamento do consumidor. Neste sentido, pretendeu-se com o presente trabalho, analisar o impacto da abusividade na oferta de crédito, ao consumidor, para o superendividamento.
Tratou-se, de uma pesquisa no campo do direito do consumidor e sua dogmática jurídica na qual se busca, através do método de revisão de Literatura, investigar e compreender como a oferta abusiva de crédito ao consumidor é uma das causas ao superendividamento.
Para tanto, inicialmente foi feita uma abordagem histórica acerca do direito do consumidor e o superendividamento, perpassando pelos marcos legais que versam sobre a proteção e defesa do consumidor, como a lei 8.078/90 e a prevenção ao superendividamento pautado na lei 14.181/21, até as contemporâneas práticas mercadológicas consideradas abusivas e que incentivam o consumidor a tomada de crédito sem qualquer planejamento.
Assim, com esta pesquisa pretendeu-se contribuir para a disseminação da discussão acerca da problemática do superendividamento e de conhecimentos específicos à acadêmicos, professores e pesquisadores da área do direito, sobre o direito do consumidor, as práticas mercadológicas atuais de créditos, o superendividamento e a legalidade acerca do tema.
O CONSUMIDOR E SUA TRAJETÓRIA.
Ao longo do tempo, a humanidade vem aperfeiçoando as suas interações buscando objetivamente os meios viáveis a sua sobrevivência. São diversos os marcos históricos que apontam a evolução humana na busca da satisfação de suas necessidades. Assim, é fácil perceber que os indivíduos constantemente buscam elementos necessários ou não para a vida.
Nesta linha histórica, Fabio Schwartz (2020, p.1) destaca as transformações socioeconômicas advindas da revolução industrial, ponto de virada em que ocorre o rompimento com o regime feudal e a transição do capitalismo, iminentemente mercantil, para o modelo industrial. Este momento, dá início ao processo de produção em série, que minimiza os custos e maximiza os lucros.
Em sua monografia, Hiago Sobrinho Lopes, (2020, apud CAVALIER FILHO, 2010, p.3), cita “tem-se que antes da Revolução Industrial a produção era limitada, haja vista que sua forma era artesanal e balizada ao núcleo familiar ou a uma pequena quantidade de pessoas”.
Júlio José Chiavenato, destaca a passagem do homem do feudo para o homem consumista e as transformações advindas a partir do século XIX, com a nova cultura de consumo desenvolvida pelo sistema capitalista:
Na história da humanidade, a virtude quase sempre esteve associada ao comedimento e à renúncia. Desde a Idade Média, para os cristãos o homem virtuoso, honesto e digno era modesto, abominava o luxo e o conforto. Esse costume foi consolidado pelas religiões: os pobres acreditaram durante séculos que, padecendo na Terra, ganhariam o Paraíso. A partir do século XIX, quando a industrialização possibilitou mais conforto à sociedade, surgiu um choque, muitas vezes inconsciente, causado pelo consumo de produtos que ofereciam “prazer”. O “prazer” estava associado ao “pecado”. Simplificadamente, pode-se dizer que o conforto doméstico ou pessoal contribuiu para diminuir os condicionamentos ou preconceitos que consideravam a felicidade quase um pecado. Mudou a moral, e certos padrões de comportamento foram abandonados, superados ou substituídos por outros mais “modernos” que facilitavam o consumo. Depois de alguns milênios, ficou mais importante, para o grosso da humanidade, “ter” em lugar de “ser” (CHIAVENATO, 2004, p.13).
Com este novo sistema de consumo capitalista de modelo industrial, logo surgem os primeiros desequilíbrios sociais, no qual o fornecedor, detentor dos meios de produção, informações e dados técnicos dos bens produzidos e comercializado, torna-se cada vez mais forte frente ao consumidor, que se torna “marionete” na relação de consumo. (SCHWARTZ, 2020, p.2).
2.1 MARCOS INICIAIS DO DIREITO DO CONSUMIDOR.
Com a passagem do sistema feudal para o capitalista, o consumidor começa a ser visto por outro prisma. Neste cenário, os consumidores começam a se destacar como protagonista das relações comerciais. Vulnerável ante o poderio econômico dos fornecedores e sendo abusado por práticas comerciais extravagantes, a sociedade consumerista começa a se organizar surgindo, então, para combater tais práticas, os primeiros movimentos e instituições em prol dos consumidores, a exemplo da New York Consumers League, criada por Josephine Lower, em 1891, considerada a primeira associação de consumidores. (SCHWARTZ, 2020, p.2).
Em 15 de março de 1962, John Fitzgerald Kennedy, em sua famosa mensagem ao Congresso Americano, chamada Consumer Bill of Rights Message, desponta reconhecendo o consumidor como sujeito de direito e de especial proteção do estado, dando partida a um movimento que irá repercutir e desembocar em sistemas de proteção ao consumidor em todo o mundo.
A frase alcunhada inicialmente em seu discurso, venerou o consumidor, entre outros muitos aspectos alinhados, pois o colocou como protagonista das relações de consumo, como se verifica no trecho a seguir, transcrito por Fábio Schwartz em seu Manual de Direito do Consumidor, 2020:
Consumidores, por definição, somos todos nós. Eles são o maior grupo econômico, e influenciam e são influenciados por quase toda decisão econômica pública ou privada. Apesar disso, eles são o único grupo importante, cujos pontos de vistas muitas vezes não são considerados. (SCHWARTZ, 2020, p.3)
Adiante, transcrevo parte do discurso em que Kennedy ressalta a responsabilidade do Estado na tutela do consumidor:
O Governo Federal - por natureza o maior porta-voz dos cidadãos - tem uma obrigação especial de estar alerta para as necessidades do consumidor e para fazer avançar os interesses do mesmo. Desde a promulgação da lei em 1872 que visava proteger o consumidor contra fraudes envolvendo o uso dos correios dos EUA, o Congresso e Poder Executivo têm sido cada vez mais conscientes de sua responsabilidade de assegurar que a economia da nossa nação sirva aos interesses dos consumidores de forma justa e adequada. (KENNEDY, 1962, online).
É possível inferir, do discurso, a preocupação de Kennedy quanto a responsabilidade do Estado na tutela do consumidor, ressaltando que a econômica da nação deve servir aos interesses do consumidor, protegendo-o das arbitrariedades da economia liberal.
E, já naquele momento, Kennedy também fazia um alerta sobre o “marketing” abusivo, que de forma persuasiva influenciava o consumidor a adquirir produtos sem levar em consideração a sua real necessidade, interesse ou capacidade de avaliar o seu consumo:
O Marketing é cada vez mais impessoal. A escolha do consumidor é influenciada pela publicidade de massa utilizando-se de estratégias altamente desenvolvidas de persuasão. O consumidor normalmente não tem como saber se a fabricação das drogas atende aos padrões mínimos de segurança, qualidade e eficácia. Ele geralmente não sabe o quanto ele paga pelo crédito ao consumidor; se um alimento preparado tem mais valor nutritivo do que o outro; se o desempenho de um produto irá de fato satisfazer as suas necessidades; ou se “economizar comprando o produto maior” é realmente mais em conta. (KENNEDY, 1962, online)
Daí então, o direito do consumidor começa a tomar corpo e dimensão universal, passando a ser reconhecido e aplicado em outros países. Em cadeia, diversos outros marcos importantes, com o viés de reconhecer e fortalecer o direito do consumidor, foram surgindo pelo mundo.
Em 1973, a Comissão de Direitos Humanos, das Nações Unidas, em sua 29ª Sessão, reconhece o direito do consumidor como sendo um direito fundamental, servindo como principal diretiva para a edição, em abril de 1985, na Assembleia Geral da ONU, da resolução 39/248, que fixou normas internacionais de proteção do consumidor, reforçando a importância para que os governos internacionais tratassem do tema através de políticas protecionistas ao consumidor. (SCHWARTZ, 2020, p.4).
2.2 O DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL
No Brasil, o direito do consumidor já era mencionado em alguns dispositivos jurídicos antes mesmo de ser incluído na Constituição Federal de 1988. Leis esparsas, inauguraram a defesa do consumidor no país. A exemplo, temos o decreto-lei 22.626/1943 - Lei de Usura, ainda em vigor, que protege o direito do consumidor quanto a cobrança de taxas de juros abusiva nas operações comerciais. Em seguida, a edição da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) que visando a proteção dos interesses difusos da sociedade, teve incluso os danos causados ao consumidor.
Mas é na Constituição Federal de 1988, que o direito do consumidor toma sua forma mais robusta e permanente como direito fundamental. Incluído no rol de direitos fundamentais do capítulo II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), no famoso artigo 5º, o legislador constituinte originário erigiu o direito do consumidor como tutela do estado, obrigando-o a promover-lhe a defesa. Nessa linha de pensamento, afirma Cláudia Lima Marques (2009, p. 27) que “a Constituição Federal de 1988 é a origem da codificação tutelar dos direitos dos consumidores no Brasil [...], garantia institucional da existência e efetividade do direito do consumidor”.
Nesse mesmo diapasão, sob o comando do artigo 48, dos Atos das Disposições Transitórias, da Constituição de 1988, determinou a criação de lei específica para a defesa do consumidor, no prazo de 120 dias, surgindo então a Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor que:
[...] perpassa pelos direitos básicos do consumidor, trazendo garantias constitucionais totalmente protecionistas ao consumidor, como o direito a proteção à vida, educação, informação, dentre outras que constituem o rol de direitos básicos do consumidor. (LOPES, HIAGO, 2020, p.12).
No cenário em que a relação de consumo se empodera e se torna cada vez mais comum, seguida pelos primeiros instrumentos reguladores, que trazem certo conforto e segurança aos consumidores, para então seguir com seu novo estilo de vida consumista, o consumo, de tal forma, torna-se banal, vez que grande parte das nossas ações cotidianas envolvem a compra e venda.
Com o crescimento da população, suas necessidades também aumentaram, levando o homem a busca constante por melhoria e qualidade no seu novo estilo de vida. O “marketing” agressivo, outrora citado no discurso de John Kennedy, cresce e provoca o consumo desmedido, difundindo a ordem social do hiperconsumo, que em consequência faz surgir, na sociedade, os indivíduos endividados.
O indivíduo, agora inserido em uma sociedade consumista, já não consome somente para suprir uma necessidade básica, mas também para suprir uma necessidade pessoal. Daí é que diversas das nossas aquisições diárias são realizadas sem qualquer planejamento antecipado, pois trata-se não do simples consumo, mas da compulsão em consumir.
Destaca Beatriz Mendes Monteiro (2018, apud BAUMAN, 2008, p. 76) que:
[...]apesar da sociedade sempre ter tido necessidade de consumo (alimentação, por exemplo), a diferença para a atual “sociedade de consumidores” é que o consumo não é mais primordialmente utilizado para sobrevivência física humana, mas é parte que estrutura e organiza a vida social das pessoas. Sendo assim, “o objetivo crucial, talvez decisivo, do consumo na sociedade de consumidores [...] não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas a comodificação ou recomodificação do consumidor: elevar a condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis” (BAUMAN, 2008, p. 76).
Desta feita, observa-se que o fenômeno do consumo, por sua própria natureza, inevitavelmente seria abarcado tão logo pelo direito, haja vista as práticas comerciais, pela sua visibilidade, mutabilidade e complexidade, serem compostas por uma relação direta entre indivíduos e núcleo direto da relação de consumo. É um campo amplo para a abusividade daquele que detém o poder econômico sobre o outro que dele necessita consumir na conjuntura social capitalista atual.
Nesse sentido é que Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin (2017, p.1) afirma:
A sociedade de consumo é uma realidade inegável. Mas, muito mais que uma realidade puramente acadêmica ou abstrata, é um fenômeno que afeta a vida de todos os cidadãos. E, como tal, merece a atenção do Direito, não com o intuito de reprimi-la, mas apenas para colocá-la a serviço do interesse público. (BENJAMIN, 2017).
Assim, o consumidor tomou seu espaço como protagonista da sociedade consumista e a passos lentos, mas sempre seguindo em frente, vem conquistando cada vez mais direitos e proteção à medida em que o fenômeno do consumismo avança acompanhando o capitalismo.
OFERTA DE CRÉDITO AO CONSUMIDOR ENDIVIDADO.
Em outros tempos viveu-se em uma sociedade econômica limitada à troca de um bem por outro, porém em determinado momento essa prática tornou-se insuficiente para a continuidade das práticas comerciais e então deu-se início a utilização da moeda como meio de garantir valor a determinado bem. Com o passar do tempo, a moeda também começa a perder sua eficiência frente ao grande fluxo de operações no mercado que passa a exigir meios de pagamentos mais eficientes, daí surgem os títulos de crédito que permitiu um grande avanço na produção e circulação de mercadorias. (RAMOS, 2017, sem paginação)
Com o advento da internet, novos instrumentos foram surgindo para atender a complexidade da dinâmica do mercado, que com o tempo ia ficando mais globalizado. As relações comerciais ficaram mais estreitas e exigiram meios de pagamentos muito mais eficientes e respondentes aos grandes volumes de operações e vultosos valores, e, ainda, para atender a demanda no novo mercado globalizado. É aí que os títulos tradicionais passam a dar espaço aos meios de pagamentos eletrônicos, que possibilitam a aquisição de bens e serviços de mercados de todo o mundo. (RAMOS, 2017, sem paginação).
Inovando, o crédito vai se aperfeiçoando com o passar dos anos, considerando as transformações da sociedade de cada tempo. Como um facilitador do processo de inserção do indivíduo no mercado de consumo, o crédito é um produto que proporciona capacidade financeira para satisfação pessoal. Com o advento do crédito como produto de consumo, e outros instrumentos financeiros, que instituem poder de aquisição, grande parte da população pode ingressar no mercado consumista. (TOMAZETTE, 2017, sem paginação)
O consumidor passou a poder buscar não somente a satisfação daquilo que é essencial e necessário, mas também daquilo que o faz pertencer a determinados grupos sociais. Poder adquirir bens e serviços, antes explorados por poucos avantajados que possuíam condições financeiras privilegiadas, como viajar em férias ou poder ter um ar-condicionado em casa para os dias quentes, transformou o hábito de consumir das pessoas.
CONSUMIDOR E O ENDIVIDAMENTO
Diante desse cenário global no qual o crédito ganhou seu espaço, tornando-se uma ferramenta essencial ao funcionamento e fomento do mercado de consumo, é necessário entender quem é o consumidor e o que é ser endividado. Assim, Claudia Lima Marque (2013, p.92), apresenta um conceito amplo acerca do consumidor, extraindo do CDC (Código de Defesa do Consumidor) 4 conceitos distintos que ajudam a definir o consumidor na perspectiva jurídico brasileiro.
Aponta, inicialmente, que o primeiro conceito se extrai do artigo 2º, CDC, § único, no qual estabelece o consumidor como “... toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (BRASIL, 1990). Aqui claramente observa-se a Teoria Finalista, na qual será considerado consumidor àquele que adquiri um produto ou serviço com fito de que seja para a sua utilização final, retirando o bem do mercado. Ou seja, aquele que adquirir o produto, objetivamente, para uso final, este será consumidor. Não importa se pessoa física ou jurídica, deve-se observar apenas a finalidade da aquisição do produto, qual seja, encerrar a sua cadeia de consumo (BENJAMIN; LIMA; BESSA, 2013, p.93).
O segundo conceito está contido no parágrafo único, também do artigo 2º do CDC, no qual será equiparado ao consumidor a coletividade de pessoas que, ainda que indeterminadas, haja intervindo nas relações de consumo (BRASIL, 1990). Aqui, o consumidor é definido não sob a ótica individual, como sujeito de direitos individuais, mas sob o prisma transindividual, em grupo, coletividade do qual trata os direitos de forma homogênea ou difuso (BENJAMIN; LIMA; BESSA, 2013, p.92).
Nesse sentido, aclarando o conceito, o professor Doutor Fabricio Bolzan de Almeida (2017, sem paginação) exemplifica a extensão do conceito de consumidor para a coletividade, com um acidente aéreo no qual um avião comercial atingi várias residências, ao cair. Nesse caso, haveria direitos e garantias instituídas no CDC, aos consumidores em sentido estrito, aquele que compraram a passagem e utilizaram o serviço final contratado, e as pessoas que tiveram suas casas destruídas pelo acidente aéreo, sem qualquer vínculo com a empresa aérea, vítimas do evento danoso que serão equiparadas à consumidores por sofrerem resultado da ação de fornecer produtos e serviços ao consumidor.
Adiante, surgi o terceiro conceito sobre o consumidor, no qual se tece a amplitude material que transcende o mero contrato, admitindo que antes mesmo da contratação, o individuo já é consumidor por simplesmente está exposto a publicidade e propaganda. Assim, o direito consumerista visa a proteção do consumidor na fase pré-contratual, antes mesmo de adquirir o produto ou serviço, pois nesse caso ultrapassa a condição de adquirente, frente a práticas abusivas de mercado, constituídas como atos ilícitos praticados pelos fornecedores (BENJAMIN; LIMA; BESSA, 2013, p.92)
Por fim, o consumidor é conceituado como uma única espécie da qual não se distingue se consome ou usa um produto ou serviço, nem se distingui o objeto da relação de consumo, como feito no direito argentino, no qual se distingui o consumidor de usuário, pois o primeiro, compra um produto para consumir e finalizar a cadeia de consumo, enquanto o segundo adquiri, por tempo contratual, certo serviço, que se perpetua pela continuidade do contrato, sendo um usuário contínuo e não consumidor. Para o Código de Defesa do Consumidor brasileiro, e o direito brasileiro, não há distinção do consumidor e o usuário, “todos são consumidores” (BENJAMIN; LIMA; BESSA, 2013, p.92).
Com esses conceitos, tem-se uma visão geral acerca de quem é o consumidor nas relações e interações consumerista. Trata-se de um individuo complexo a ser protegido pelo direito ante as práticas mercadológicas consideradas abusivas, principalmente aquelas que envolvem a concessão de crédito.
Assim, passa-se a buscar a compreensão do conceito de endividado, o qual figura aquele indivíduo que atingi esse status por consequência da aquisição de bens e serviços mediante a concessão de crédito.
Claudia Lima Marque, conceitua o endividamento como fato inerente a vida cotidiana da atual sociedade de consumo. Trata-se um individuo que na busca de satisfazer suas necessidades, sejam elas essenciais ou não, compromete-se a honrar compromissos financeiros futuros, de boa-fé, adquirindo passivos que devem ser administrados mês a mês frente ao orçamento familiar (LIMA, 2010, p.17).
Nesse sentido, a saber:
Efetivamente, para consumir produtos e de serviços, essenciais ou não, os consumidores estão – quase todos - constantemente endividando-se, e criando um “passivo” de dívidas que devemos mês a mês fazer frente com nosso orçamento familiar e patrimônio (nosso “ativo”, se pensarmos em termos de planejamento financeiro). (LIMA, 2010, p.17)
A economia de mercado praticada no Brasil, é mais uma economia de endividamento do que de poupança, pois os indivíduos, na sua maioria, comprometem todo o orçamento familiar com o consumo básico, sendo necessário a aquisição de bens através do crédito, o que por consequência ocasiona o endividamento. O contrário, seria que o indivíduo, se estivesse inserido em uma economia de mercado favorável, teria como suprir suas necessidades básicas e investir uma sobra em poupanças ou outros investimentos de baixo risco (LIMA, 2010, p.17).
Assim, pode-se inferir que todo aquele que adquirir bens ou serviços por meio de passivo futuro, será um endividado. Não se trata da condição de honrar ou não com tais passivos, mas sim de adquiri-lo. Assim, pode aquele o endividado ter passivos, mas tranquilamente honrá-los sem comprometer parte do orçamento familiar ao ponto de pôr em risco as necessidades essenciais a sua família.
O CRÉDITO.
Do ponto de vista jurídico, o crédito apresenta-se como algo abstrato, uma evolução do contrato, prática social criada para suprir a necessidade de otimização das relações e interações comerciais humana. A sociedade percebeu com o tempo que os elementos físicos que baseavam o mercado através da troca imediata de um produto por outro (escambo), logo era obsoleto, assim passou a valorar determinados produtos, no qual observavam maior solidificação das relações comerciais.
Nesse sentido, revela Gladston Mamede (2018):
Superou-se o estado de natureza, no qual impera a força física, a conquista, para se ingressar em estágios mais afetos ao Direito: a confiança do contrato, o benefício da coprestação. O escambo é o marco inicial dessa evolução. Mas implicava o limite da conexão de necessidades, que nem sempre ocorre: quem tem óleo e precisa de sal pode não consegui-lo, pois quem tem sal pode não querer óleo. A evolução conduziu as comunidades humanas a reconhecer em determinados bens (metais, cereais, óleos etc.) a condição de elementos de troca. (MAMEDE, 2018).
Com isso, compreende-se, o crédito, como um aparato social por meio do qual consolidam-se as relações obrigacionais e de direito relacionados a movimentação de bens, a medida em que se firma a obrigação de honrar com o pagamento daqueles créditos usados (MAMEDE, 2018).
O crédito é um dos instrumentos de grande propulsão da economia do mercado, sendo uma figura essencial à uma economia globalizada. Ele proporciona circulação de bens e serviços em volumes de grande vulto afim de atender a demanda mercadológica.
Marília de Ávila e Silva Sampaio, contextualizam a oferta de crédito no Brasil:
A expansão da oferta do crédito, no Brasil, começa em 2003, havendo, por parte dos bancos, a modificação de seus portfólios de ativos, fomentando a expansão do crédito, sobretudo do crédito pessoal, com o aumento do poder de compra dos agentes econômicos. O consumo no mercado interno teve importante participação na política econômica do governo Lula, pois o eixo dinamizador da economia, que antes era cumprido pelas exportações, passou a ser reforçado pelo mercado interno. Juntamente com outros indicadores sociais do período, a democratização do acesso ao crédito determinou uma expansão sustentada do consumo das famílias, que contribuiu de maneira relevante para o crescimento acumulado do PIB de 2003 a 2008 da ordem de 27,3%45. (MARILIA DE AVILA E SILVA SAMPAIO, p. 30)
Observa-se o crédito como um elemento impulsionador da economia e necessário para o crescimento do mercado, pois com ele se fomenta toda a cadeia econômica, incentivando o consumo de bens e serviço, consequentemente fornecedor combustível para a sua produção, o que gera impactos em toda a sociedade que passa a desfrutar de um momento econômico vantajoso com crescimento das vagas de emprego, distribuição de renda e orçamento para o Estado realizar políticas públicas.
O Banco Central do Brasil divulgou dados estatísticos sobre os principais meios de pagamentos utilizados no momento da compra:
Em 2016, o valor total das transações com cartões de crédito foi de R$ 674 bilhões e com cartões de débito foi de R$ 430 bilhões, representando aumento nominal de 3% e de 10%, respectivamente, em relação ao ano anterior. (BCB, 2017, on line).
Isso mostra que habitualmente, o consumidor brasileiro utiliza-se do crédito como meio de aquisição de produtos e serviços. Contudo, apesar deste mecanismo financeiro possuir tal relevância, não houve maior preocupação com as suas consequências e impactos socioeconômicos no mercado, quanto ao momento posterior ao consumo, com a inadimplência daquele que fez uso do crédito descontroladamente.
O relatório “Competências em educação financeira: descrição de resultados da pesquisa da Rede Internacional de Educação Financeira adaptada e aplicada no Brasil” 1, divulgado pelo Banco Central, em 2018, apontou que o consumidor brasileiro não tem hábito de poupar e não se planeja financeiramente. Embora 64% dos entrevistados terem afirmado pagar suas contas em dia, 56% assumiram não fazer orçamento doméstico ou familiar, e 69% afirmaram não ter poupado nenhuma parte da renda recebida nos últimos 12 meses. (BCB, 2017).
O mesmo relatório mostra que o cartão de crédito é o produto financeiro mais usado pelos entrevistados, sendo a principal opção como forma de pagamento para 45% do total entrevistado e utilizado com maior frequência pelos indivíduos de classe média. Isso porque oferece crédito fácil e meio de utilização simples, tornando-se um produto eficiente antes as necessidades modernas de consumismo (BCB, 2017, p.14).
Perguntados sobre assuntos financeiros, com o objetivo de avaliar as competências em educação financeiras dos entrevistados, verificou-se que apenas 27% dos entrevistados tinham conhecimentos básicos suficientes que influenciam a vida financeira de forma positiva tomando melhores escolhas (BCB, 2017, p.15)
Lusard e Mitchell (2014) destacam, três os conceitos que estão envolvidos nas decisões de poupança e investimento, tomadas pelos consumidores: (i) conhecimento de matemática básica e capacidade de calcular taxa de juros simples e compostos; (ii) entendimento de inflação; e (iii) entendimento de diversificação de risco.
Tais conhecimentos correspondem a capacidade do indivíduo de tomar a melhor decisão quando precisar poupar ou investir. Essas decisões têm reflexos significativos na vida financeira das pessoas, pois o tomador de crédito com noções básicas acerca de produtos financeiros, se planeja melhor para a tomada de crédito e está bem mais preparado para possíveis acidentes financeiros decorrentes da vida fortuita.
O consumidor brasileiro pouco entende de produtos financeiros e ao tomar crédito além das suas necessidades e sem avaliar possibilidades e condições de honrar tais compromissos, envereda por um caminho perigoso, que quase sempre o levará ao endividamento.
A OFERTA
De forma simples, pode-se definir a oferta como a disposição de um produto, em certa quantidade, no mercado de consumo, de acordo com a procura que ele tem ou que os consumidores estarão dispostos a adquiri-lo. Trata-se da lei da oferta em detrimento a demanda, ou seja, para que haja oferta é necessário a procura. (DONÁRIO; SANTOS, 2015, p. 03)
Como visto anteriormente, o crédito foi um grande impulsionador da economia nacional frente ao plano real e as diversas estratégias governamentais que visavam o avanço acelerado da economia do Brasil.
Assim, a oferta de crédito enquanto produto de consumo no decorrer dos anos passou a ser algo cotidiano e comum na vida de qualquer consumidor, haja vista que suas necessidades extra essenciais só poderiam ser satisfeitas mediante a aquisição de passivos de crédito bancário. (DONÁRIO; SANTOS, 2015, p. 04)
A ABUSIVIDADE NA OFERTA.
Os contratos relacionados a produtos financeiros são complexos, portanto, de difícil compreensão daquele que não está habituado a lidar com esses tipos de instrumentos. Assim, é fácil deduzir que o consumidor leigo, vulnerável, frente a uma transação na qual precisa firmar-se como parte interessada contra o crédito, vê-se em situação desajeitada e desvantajosa, pois quando busca tais produtos está diante de uma necessidade que precisa ser satisfeita.
Alguns contratos, são impostos ao consumidor visto a sua necessidade de uma demanda específica, a qual envolve a segurança do indivíduo, principalmente aquelas relacionadas a saúde e segurança.
Kamila Rodrigues Garbulha (2016) afirma que com o surgimento de relações jurídicas complexas de longa duração, que envolvem determinado grupos de fornecedores, que ofertam serviços e produtos específicos, surgiram os chamados “contratos cativos” (GARBULHA, 2016, p.14). Estes contratos, atendem a demanda de contratação massiva decorrente da prestação de serviços essenciais e que proferem segurança ao consumidor.
Segundo José Tadeu Neves Xavier, contratos cativos são definidos em dois elementos, seja o tempo e a catividade. Aduz que o tempo é o que determina como o contrato se prolonga no decorrer do tempo, sendo aquele contrato que não se perfaz em uma execução única, cumprindo-se em uma única prestação contratual. Assim, o tempo relacionado ao contrato cativo é a sua continuidade no tempo, perpetuando-se de acordo com a ideia de necessidade do consumidor.
Noutro ponto, a catividade, o cativo, divide-se em outros dois elementos: o momento antes da contratação, que atingi o consumidor mediante publicidades que geralmente o encontram em momento desprevenido e despreparado para apresentar resistência. Nessa oportunidade é apresentado ao consumidor, de forma cuidadosamente planejada, pensada e incisiva a oferta de produtos de forma que o consumidor não tenha muito como refletir sobre sua aquisição.
O segundo ponto é a catividade do contrato, que está em o fornecedor apresentar-se como a solução para a necessidade do consumidor, criada no momento da publicidade ou em oportuno. “A empresa assume o papel de realizadora de sonhos, cativando o consumidor, ela é a parceira que o vai levar até onde ele sempre quis estar” (XAVIER, on line). Esse momento, após a contratação, é fase cativa do contrato, no qual se faz, ou o consumidor tem, certa dependência da continuidade em manter-se a utilizar e permanecer naquele contrato, a exemplo, os contratos de plano de saúde e diversas situações da seara bancária.
Assim, os contratos de concessão de créditos estão inseridos nesse modelo atual de contratação cativo (MARQUES, 2002, p.222). Por ser necessários para a prestação de serviços importantes ao consumidor e de grande relevância econômica e social, esses formatos de contratos de negócios são autorizados pelo Estado.
Essa adesão a esses contratos, é um reflexo das mudanças da pós-modernidade que atingem os negócios, propondo um novo "estilo de vida", no qual, como lembra Cláudia Lima Marques "da acumulação de bens materiais, passamos a acumulação de bens imateriais, dos contratos de dar, para os contratos de fazer, do modelo individualista da compra e venda para um modelo duradouro da relação contratual". (MARQUES, 2017, p. 32)
Na mesma linha de raciocínio, a ilustre professora ressalta que os contratos bancários não podem ser tratados a luz do direito geral, mas sim coberto pelo direito em sua especialidade, que visa o consumidor como elemento de proteção principal nos contratos, e ainda, sob o prisma do poder judiciário, sempre atento as ações exegese da lei que ora infratas pelo fornecedor, assim escreve:
Os contratos bancários atuais são contratos cativos de longa duração. Observadas as especialidades dos contratos bancários em questão, sob o signo da continuidade dos serviços, massificação e catividade dos clientes, da prestabilidade por terceiros de serviços autorizados ou controlados pelo Estado, do macro-interesse do verdadeiro objeto contratual, da internacionalidade ou grande poder econômico dos fornecedores e, acima de tudo, continuidade das relações tendo em vista a essencialidade do crédito na sociedade de consumo atual, concluiu-se que os modelos tradicionais de contrato (contratos envolvendo obrigações de dar, imediatos e menos complexos) fornecem poucos instrumentos para regular estas longíssimas, reiteradas e complexas relações contratuais, necessitando, seja a intervenção regulamentadora do legislador através do CDC para a proteção dos mais vulneráveis, seja a intervenção reequilibradora e sábia do Judiciário nos casos concretos.(MARQUES, 2017, p.44)
Por terem natureza perene, a massificação, a catividade dos clientes, o poder econômico dos fornecedores e a substituição do Estado por fornecedores privados, os contratos de concessão de crédito inevitavelmente, devem observar os princípios constitucionais nestas relações (GARBULHA, 2016, p.14), necessitando da intervenção regulamentadora do legislador para evitar-se a demanda judicial e buscando-se métodos alternativos quando não for possível prevenir o superendividamento (MARQUES, 2002, p. 90).
O que é importante, neste contexto, é atribuir ao contrato de concessão de crédito as novas feições dadas aos contratos à luz da principiologia de índole constitucional, advindas de uma sensível evolução em resposta à sociedade industrializada, de consumo e massificada que se formou na contemporaneidade (MARQUES, p.39, 2002).
Os bancos, sabendo disso, oferecem formas diversas de créditos e muitos deles, de maneira irresponsável, incentivam até mesmo o consumidor negativado ou endividado a contrair mais dívidas, o que quase sempre irá culminar no superendividamento.
Diante das necessidades, criadas pelo mercado, o crédito faz com que o consumidor, imbuído do desejo e a necessidade de estar inserido como individuo ativo do mercado de consumo – “status” que promove moralmente o indivíduo frente a seus pares, amigos e familiares - assuma riscos financeiros não calculados.
Vê-se que a oferta, aliada a publicidade, conjuntamente, atingem o consumidor levando-o a assumir comportamentos irresponsáveis e inconsequentes, que contribuem para a circunstância do endividamento e o superendividamento, pois como exposto anteriormente, são aficionados a ideia de necessidade, seguida da disposição da oferta do crédito, facilitada, com certos apetrechos que influenciam o consumidor a se descuidar ou, na maioria da vezes, não se ater a cuidados que deveria observar ao adquiri o produto, crédito.