Resumo
Este artigo analisa o julgamento dos Cavaleiros Templários sob a perspectiva do processo penal inquisitorial medieval, explorando as intersecções entre Direito Canônico, poder político e práticas judiciárias do século XIV. Utilizando metodologia qualitativa e bibliográfica, o estudo destaca como o rei Felipe IV da França instrumentalizou a Inquisição para extinguir a Ordem dos Templários, alegando heresias, com o objetivo de confiscar seus bens e consolidar poder. Demonstra-se que, embora o processo inquisitorial seguisse formalmente as normas canônicas (como a busca da "verdade material"), a tortura, confissões forjadas e a supressão de direitos de defesa revelam um caráter político-ideológico. Conclui-se que o caso templário ilustra a manipulação do sistema jurídico-religioso para fins seculares, além de influenciar estruturas processuais contemporâneas, como a admissão de denúncias anônimas.
Palavras-chave: Templários; Inquisição; Direito Canônico; Processo Penal.
Introdução
No século XXI, os assuntos relacionados aos templários são amplamente discutidos e difundidos em todo o mundo, afinal, a Ordem dos Templários, que tem sua origem na Idade Média, é constantemente citada ou de alguma forma representada nos mais diversos canais de interação social como nos livros; adaptações em jogos eletrônicos, destacando-se o best-seller Assasin’s Creed 1; além de ter, na seara filantrópica, Jacques DeMolay, o último grão-mestre dos templários, como patrono da Ordem DeMolay que, de acordo com o Supremo Conselho da Ordem DeMolay para o Brasil – SCODB, é a maior entidade juvenil em nível global (SCODB, 2025).
A razão pela qual, hodiernamente, se perpetue uma grande repercussão a respeito dos templários, instituição extinta há mais de sete séculos, se dá tanto pelo fato deles terem sido uma das maiores instituições medievais em linhas de poder militar, político, econômico e canônico; quanto pela forma como se deu o julgamento dos últimos membros desta Ordem, nas vésperas da sua dissolução, (Coelho, 2018, p. 457), que é o principal objeto deste artigo.
Nesse sentido, o presente trabalho promove um estudo acerca da Inquisição na era medieval e, a partir da perspectiva do julgamento dos membros da Ordem dos Templários, instituição criada e oficialmente canonizada pela Igreja Católica no século XII, analisa as características do sistema processual penal inquisitorial desde o início da persecução, até a cominação da pena. Trata-se de uma pesquisa exploratória, que utiliza como técnica de pesquisa, a pesquisa bibliográfica, pois por meio de livros, artigos científicos e documentos afins, busca-se resultados devidamente fundamentados.
O julgamento dos Templários trata-se de um caso em que a Inquisição, enquanto principal instituição de execução do direito canônico, foi utilizada pelo Poder Temporal2 para atender aos anseios do monarca Felipe IV, que reinou a França de 1284 até a sua morte em 1314. Nesse contexto, a história da Ordem dos Cavaleiros Templários está intimamente ligada às cruzadas, pois a partir da proposição, feita pelo Poder Espiritual, de retomada à posse da Terra Santa, também conhecida como Jerusalém, surgem diversas instituições de apoio, destacando-se uma que era essencialmente militar, cujos templários fizeram parte e que ficou conhecida como “Cavaleiros de Deus”, uma vez que integrou vários grupos autônomos de cavaleiros, uma das mais prestigiadas classes de guerreiros da era medieval, que agiam em prol da defesa de causas religiosas da Igreja Católica Romana (Aquino, 2009, p. 216).
1. Contexto histórico
Importante para o estudo de um julgamento ocorrido na Idade Média é o entendimento da mentalidade e disputas políticas vigorantes no período. A “época das trevas” foi marcada pela soberania do Poder Temporal da Igreja Católica, que atuava por meio do Direito Canônico e dos processos inquisitoriais, que visavam o combate àqueles que estavam em desacordo com os princípios da instituição. Ainda sob o pretexto de combate aos infiéis, assim como da difusão do catolicismo, uma guerra santa foi justificada em relação aos turcos seldjúcidas convertidos ao islamismo; os muçulmanos passaram a habitar Jerusalém, o mais importante local da Terra Santa – território considerado sagrado pela Igreja por ter sido o lugar de morte e ressurreição de cristo. (Madden, 2004, p. 22). A guerra se concretizou com o movimento das Cruzadas, promovido pelo Papa Urbano II, em que a Ordem dos Cavaleiros Templários teve papel primordial. (Aquino, 2009, p. 33).
2. Direito Canônico
“O Direito Canónico é a lei da Igreja Católica, o conjunto das normas que regulam a vida na comunidade eclesial, directamente relacionado ao dia-a-dia dos católicos de todo o mundo. [...] baseia-se na herança jurídica e legislativa da Revelação e da Tradição”. (Madaleno, 2013, p.72). A sentença expressa os princípios fundamentais e as fontes inspiradoras da legislação canônica, que surge durante o Império Romano e, sobrevivendo a inúmeras modificações, expansões e, posteriormente, limitações, sobrevive mesmo na contemporaneidade. A fonte primordial do Direito Canônico é considerada Deus, pois há o conceito de que ele, em sua onisciência, dita o que é correto e justo. Quanto à tradição, toda a prática e ideia de aplicação jurídica e de julgamento surge da Bíblia, nos antigos e novos testamentos, embora sofra mais influencias futuramente. (Madaleno, 2013, p. 73-75).
Durante o Império Romano há a separação entre crimes e pecados e, consequentemente, a limitação do Poder da Igreja durante grande parte, tendo em vista o poder secular. Com a invasão dos povos de direito consuetudinário, entretanto, surge a necessidade de unificação da identidade dos povos, em tentativa de conter a futura e inevitável crise do Império e, portanto, o imperador Constantino I declara a religião católica como a oficial. (Madaleno, 2013, p. 76). A Igreja, com o passar do tempo, passa a ter uma crescente tendência de centralização na figura do papa.
No lapso temporal que compreende a Idade Média, em um momento, pecados passam a ser tratados como crimes, submetidos às penas em que o propósito do bem-estar social e os meios para ser alcançado, bem como a proporção entre ato cometido e penalidade, não eram levados em consideração, debatidos e aplicados. (Beccaria, 2014, p. 10).
3. As Cruzadas
É quase universal a prática de peregrinação em qualquer religião. Não era diferente na Europa do século X. O lugar mais comum de peregrinação dos cristãos era Jerusalém e as cidades próximas, território conjunto denominado Terra Santa, cuja principal atratividade de Jerusalém era a área da Igreja do Sepulcro Sagrado, construída no local onde era estimado que Jesus havia sido enterrado (Tyerman, 2005, p. 8).
Após a tomada da região por parte dos árabes, os peregrinos continuaram a visitar a cidade e os territórios próximos sem serem importunados pelos Muçulmanos, situação que mudou, porém, em 1009, quando o então califa do Egito ordenou a destruição da construção sagrada.
“A igreja das peregrinações existe desde que o imperador Constantino I dedicou uma basílica lá em 335. Outros importantes destinos de peregrinação para cristãos latinos (ocidentais) incluíam Roma, que havia a posse das tumbas de Pedro e Paulo e outros dos primeiros mártires, e Santiago de Compostela na Espanha (...) O sepulcro sagrado (...) foi reconstruído sobre mais tolerantes sucessores (...) com os Bizantinos financiando grande parte do trabalho. “(Madden, 2005, p. 22)
Durante o século XI, a Europa sofreu uma grande expansão econômica e populacional, o que ocasionou um aumento significativo da quantidade de peregrinos que desejavam visitar a Terra Santa, motivando cada vez mais uma guerra sagrada sob o pretexto da eliminação do mal sob a benção divina.
“Durante os últimos trinta anos, numerosas pesquisas dedicadas à questão da origem das cruzadas desvendaram seus elementos essenciais. [...] Podemos, de forma plenamente justificada, salientar as condições sociais e econômicas do final do século XI: alto crescimento demográfico, falta de terras cultiváveis, crescimento da economia monetária e das trocas comerciais, início da expansão italiana pelo Mediterrâneo.” (Morrison, 2009, p. 9).
Conflitos internos entre os Árabes resultaram na tomada de Jerusalém pelos Turcos, que se converteram ao islamismo. (Madden, 2005, p. 34).
Em 1093, o papa Urbano II convocou um concílio na França que se tratava apenas da disciplina eclesiástica, em que, no final, era esperado que apenas fosse realizado um sermão; porém, começou, então, um discurso sobre o combate aos infiéis e a retomada da Terra Santa, que invocava todos os valores cristãos e os desejos que já eram cultivados pelos europeus. (Haag, 2009, p. 33).
Ali, o Papa deu o primeiro discurso que reuniu grande quantidade de apoiadores para o que seria a primeira de muitas cruzadas, motivando e convocando voluntários que receberiam, entre outras benevolências, o perdão pelos pecados já cometidos. (Chaves, 2015, p. 10). “A pregação da Cruzada pelo Papa Urbano II inspirou [...] um grande fervor missionário. Suas palavras são descritas (por Guilherme de Tiro) como impregnadas de um poder sublime e dignas de toda confiança e pareciam aos ouvintes vindas do próprio Deus.” (Chaves, 2015, p. 23). Ou seja, os pronunciamentos do Papa acerca das cruzadas ascenderam, no espírito dos fieis ocidentais, um forte desejo de luta dos interesses da cristandade.
4. O surgimento da Ordem do Templo
Eram poucos os primeiros monges, nove ou dez. Foi o rei Balduíno II que nomeou os monges como a “Ordem dos Cavaleiros do Templo de Salomão”, substituindo o nome de “Pobres Soldados Companheiros de Jesus Cristo” para “Templários”. A nova ordem permaneceu pequena até 1129, quando Hugo de Payens solicitou suporte no Oriente, culminando no concilio de Troyes. O resultado foi a incorporação da Ordem à Igreja Católica, pelo papa, em 1129 e o quase imediato recebimento de grandes quantidades de doações. (Madden, 2004, p. 52-53).
“Para reprimir os perigos e riscos a que estes entusiastas são expostos, para proteger a honra e a santidade das virgens e dos castos e para proteger os cabelos cinzas, nove cavaleiros formaram uma irmandade, protegendo os peregrinos em caminho à Terra Santa. [...] Eles se chamavam “Os pobres soldados companheiros de Jesus Cristo” [...] Fizeram votos de castidade perpetua, pobreza e obediência como monges. [...] Ganharam uma grande reputação e um enorme reconhecimento”. Apesar do objetivo simples de sua criação, logo o grupo participaria das cruzadas e sofreria grandes mudanças.” (Addison, 2012, p. 23).
Portanto, sob as forças dos desejos dos reinos, da Igreja e do povo, a Primeira Cruzada foi oficialmente declarada e promovida pelo papa Urbano II. O movimento foi caracterizado pela marcha ao Oriente e o cerco da cidade sagrada. (Martin, 2004 p. 20). A emboscada foi bem-sucedida e o território foi dominado pela Europa, mesmo que por um relativamente curto espaço de tempo.
“Os principais homens entre os europeus que se mudaram para a Terra Santa após a Primeira Cruzada eram nobres e cavaleiros, mas eles tinham capacidade para erguer apenas 6.000-7.000 montados em cavalo e prontos para batalha, sugerindo que o número total de habitantes era relativamente pequeno. O resto da população europeia conseguia erguer 5.000-7.000 tropas, e provavelmente mais em emergências, então a população total de habitantes europeus na Terra Santa em 1187, contando mulheres, crianças e outros não-combatentes, era aproximadamente de 120.000. Isso não era muito, o que era o motivo provável pelo qual os reis de Jerusalém encorajaram a habitação por cristãos orientais nativos (gregos e sírios) e promoveu uma política de tolerância com os muçulmanos.” (Madden, 2004, p. 66)
Embora a ordem contasse com o prestígio decorrente do sucesso da primeira Cruzada, apoio do clero e recebesse inúmeras doações, os cavaleiros aproveitaram as oportunidades lucrativas. As terras recebidas da Igreja e dos reinos era utilizada para atividades econômicas, tais quais criação de animais e plantio, não apenas para subsistência. (Neves, 2018, p. 708-709).
Tendo em vista que a função primordial da Ordem, que era o auxílio e proteção aos peregrinos em suas jornadas nunca cessou e, entendendo as necessidades que tinham de bancar meses de comida, transporte e acomodação sem levar grandes quantidades de dinheiro, desenvolveram um sistema no qual os peregrinos podiam deixar suas fortunas com os cavaleiros em troca de uma carta de Crédito (podiam também trocar seus bens em cartas com valores proporcionais), que seria usada para resgate em postos nas estradas e quando chegassem a Jerusalém. Não apenas as ações bancarias em si, como outros atributos idiossincráticos da ordem são descritos por Tim Harford:
“Os Templários não foram a primeira organização no mundo a oferecer esse tipo de serviço. Diversos outros países haviam feito isso antes, como a dinastia Tang na China, que usava o "feiquan" - "dinheiro voador", um documento de duas vias que permitia a comerciantes depositarem seus lucros em um escritório regional e depois pegarem o dinheiro de novo na capital [...] Mas esse sistema era operado pelo governo. O sistema bancário oferecido pelos Templários funcionava muito mais como um banco privado - embora pertencesse ao papa - aliado a reis e príncipes ao redor da Europa e gerenciado por uma parceria de monges que tinham feito voto de pobreza.” (Harford, 2017).
Dessa forma, as palavras de Tim Harford acima são referente a tais características dos serviços dos templários, únicas para a época e que podem ser comparadas as grandes empresas bancárias contemporâneas.
5. Mudança de rumos
De acordo com Haag (2009), embora na península Ibérica os templários continuassem dispondo primariamente de serviços militares, na Inglaterra, França e Itália, seus principais serviços passaram a ser os financeiros. Além dos serviços de bancários, de segurança patrimonial internacional, os templários passaram a fazer empréstimos e financiamentos. Faziam-se úteis ao papa e aos reis. Desse modo, não as fortalezas que possuíam (com exceção da francesa) eram sua maior proteção, mas a necessidade que os reinos possuíam de seus serviços e o apelo moral religioso. Isso só mudaria a partir do reinado Felipe IV, na França, em que uma grande dívida foi contraída com a cavalaria.
“As fortalezas dos Templários nunca foram inteiramente seguras. Apenas o Templo de Paris apresentava grande obstáculo para uma emboscada. As demais casas francesas foram invadidas pelo rei; o Templo francês foi tomado pelos ingleses nos séculos treze e catorze quando houve grande necessidade; e na Espanha os reis de Aragon fizeram o mesmo. Mas esses eram eventos em tempos de desespero e necessidade, e a restituição foi feita. As melhores proteções dos Templários não eram as paredes de pedra ou as fortalezas de tesouro, mas seu aspecto prático e moral. Os reis precisavam muito dos serviços dos Templários para aliena-los, ou não queriam ficar do lado errado da causa espiritual.” (Haag, 2009, p. 56).
Conforme a crescente burocratização do trabalho dos Templários (História dos Grandes Julgamentos), e após o apogeu da ordem, que se configura na terceira cruzada, dúvidas sobre os cavaleiros começaram a surgir.
A primeira crítica da Igreja é feita pelo clérigo inglês, Ralph Niger, que debate sobre os métodos e os resultados dos cavaleiros. “No entanto, uma voz discordante pode ser ouvida: «Deus non vult... Deus não quer»”. Em consequência disso, os povos de diferentes reinos – os ibéricos com menor entusiasmo – passaram a criticar também. (Demurguer, 1986, p. 227-228).
Após a terceira cruzada, uma série de outras foram realizadas, ainda sob o mesmo pretexto da Reconquista de Jerusalém. A reputação da Ordem, entretanto, continuava a mudar sob a óptica do Papa, dos reis e da população. Principal motivo da crescente perca da apreciação popular passou a ser os rumores sobre os desvios de conduta da ordem; da apreciação dos reis (em destaque o francês) a perca da necessidade dos serviços dos cavaleiros, o desejo da extinção das dívidas contraídas e a objetivação da conquista de seus lucros (especialmente o rei da França); da apreciação da Igreja, a repressão das heresias constadas nos rumores, assim como a extinção da necessidade de contribuir para o financiamento e manutenção de uma organização que, em termos modernos, possuía caráter de uma multinacional, com liberdades e privilégios que nenhum estado possuía. (Haag, 2009, p. 59-60).
6. O processo penal inquisitorial
Como aduz o professor Felipe Aquino (2009), a origem da Inquisição se deu no lapso temporal em que o poder temporal se encontrava subordinado ao espiritual, pois com a criação de uma ampla comunidade cristã no continente europeu e com o forte papel da Igreja Católica na luta contra as invasões bárbaras, o poder e a influência desta instituição crescera exponencialmente. Dessa forma, a Igreja, por reconhecer que a propalação das ideologias heréticas ameaçava a ordem social, julgou necessária a criação de uma forma de repressão dos hereges que transitou, ligeiramente, da instrução e argumentação contra as ideologias antagônicas, para a coação tribunal e prisional. Apesar disso, a atuação da Igreja era limitada, como afirma o pesquisador: “A Igreja exigia disciplina e punições, mas ela não pronunciava ou executava uma sentença de morte, embora certamente a aceitasse isso no contexto jurídico da época. Isto cabia ao Estado; à Igreja ‘não era lícito derramar sangue’.” (Aquino, 2009, p. 80).
Para Côuto (2013) O marco oficial do surgimento da Inquisição, que até então, se desenvolvia progressivamente, se deu em duas etapas. Enquanto a primeira etapa consistiu na deliberação sobre a heresia no Concílio de Verona, que cria, em 1184, uma Inquisição a qual se denotou-se Tribunal da Inquisição; a segunda etapa foi marcada pela assinatura de duas bulas papais pelo Papa Gregório IX, destacando-se a bula Licet ad capiendos que estabelece o começo da Inquisição, dirigindo-se aos inquisidores dominicanos. (Côuto, 2013).
Quanto ao sistema inquisitorial Braun aponta que: “o sistema processual aplicado pelos Inquisidores tem sua origem em Roma, mas é retomado pela Igreja no início do século Xlll, o qual se caracteriza pela concentração de poderes de processar, julgar e executar nas mãos de um único órgão, no caso a Inquisição.” (BRAUN, 2010, p. 24). Nesse sentido, percebe-se a ausência da distribuição de atribuições do processo penal entre diferentes autoridades, o que implica na excessiva centralização do poder inquisitório, aumentando as possibilidades de comprometimento da lisura processual por arbitrariedade do órgão competente.
Além disso, quanto ao emprego dos procedimentos processuais penais, verifica-se uma divergência entre os pesquisadores, derivada das próprias disposições da Igreja. Como dito por São Tomás de Aquino e posteriormente incorporado no Catecismo3, no capítulo primeiro da primeira secção, a terceira parte do livro dispõe, no artigo 4, § 1.759, que “Não se pode justificar uma acção má feita com boa intenção. O fim não justifica os meios” (Aquino, 1988, p. 91), em consonância a estas afirmações, Aquino (2009), ao falar sobre as heresias, afirma que: “As pessoas fervorosas mas sem humildade [...] acabam aceitando a mentira e a falsidade que as envolve. Desta forma agem segundo o perigoso princípio de que ‘os fins justificam os meios ‘, algo que a Igreja sempre condenou” (Aquino, 2009, p. 65). Entretanto, Braun se opõe a essa declaração, dizendo que:
“No sistema Inquisitorial, o que se almejava era a busca da verdade material. [...] Se o fim almejado era verdade material, o meio para se obtê-lo não interessava ao inquisidor. Cabia à Inquisição investigar todo tipo de denúncia, ou seja, descobrir se foi cometida ou não uma heresia, no local que fosse, não importando a forma de se apurar à verdade. O uso de tortura se tornou a ferramenta mais importante dos inquisidores para descobrir a verdade. Descoberta a prática da heresia era necessário combatê-la, através do pagamento de penitências ou da sua eliminação, com a morte dos hereges.” (Braun, 2010, p. 24).
Ou seja, por mais que a Igreja Católica, a partir das declarações de seus cardeais, pregue que não se deve valer-se de meios “maus” para realizar atos de boa-fé; pragmaticamente, quando falamos do sistema de inquisição canônico, que vigeu na época em que houve o julgamento dos templários, a Igreja realizou ações que hoje expressamente condena, mas que nem sempre condenou.
Quanto à instauração dos processos, os inquisidores Kramer e Sprenge estipulam as condições para que dê início a sua abertura. Eles afirmam que o código canônico dispõe de três métodos: O primeiro consiste no procedimento acusatório, em que uma pessoa, sob as penas da lei de talião, propõe-se a provar perante um juiz que outra pessoa cometeu o crime de heresia ou de proteção ao herege; no segundo método, o denunciante se propõe a provar a acusação, todavia, recusa envolver-se diretamente com a denúncia, alegando que a prestação de informação é apenas para o cuidado da fé, ou em virtude de uma sanção de excomunhão, que é prescrita pelo Ordinário ou pelo Vigário; ou ainda, em virtude da punição secular requerido pelo juiz secular para quem deixa de prestar a informação. O terceiro método é a tipificação da própria inquisição, ou seja, é a abertura do processo penal por inquérito inquisitorial, nele não se faz presente a representação de um acusador ou de um delator, mas parte de uma denúncia generalizada. Dessa forma, o juiz passa a proceder, obrigatoriamente, pela determinação legal que é imposta a seu ofício. (Kramer; Sprenge, 1997, p. 396).
Tendo em vista estes três métodos, percebe-se uma transição do processo acusatório para o processo por inquérito que, gradativamente, foi afastando a responsabilização do delator e centralizando ainda mais o poder no Tribunal da Inquisição que, conforme aduz a advogada, doutora em Direito Penal, Schmitz:
“Em contraponto ao processo por acusação, as denúncias poderiam ser feitas de forma anônima ou por uma comunidade inteira. assim, os oficiais do Tribunal do Santo Ofício tinham autonomia para intimar um suspeito de crime com base apenas em informações por eles obtidas. Desta forma, todas as pequenas querelas e tagarelices de uma comunidade poderiam servir de argumentos para uma denúncia. [...] Assim, o juiz e todos os demais oficiais do tribunal assumiam a investigação direta dos crimes, determinando posteriormente a culpabilidade ou inocência do réu, com a inquirição de testemunhas e do próprio réu, tudo registrado por escrito” (Schmitz, 2013, p. 28).
Entretanto, apesar de registrarem por escrito todas as partes do processo, estes registros não ficavam a disposição do réu e, uma vez que ele não possuía conhecimento concreto acerca das acusações que lhe foram imputadas, da pessoa cuja acusação deu início à abertura do processo e das provas, vedava-se os direitos à ampla defesa e ao contraditório. Foucault (1991) em sua obra “Vigiar e Punir” deixa isto expresso nos seguintes termos:
“era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo, impossível conhecer a identidade dos denunciadores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas, [...] impossível ter um advogado, seja para verificar a regularidade do processo, seja para participar da defesa” (Foucalt, 1991, p.35).
Quanto às provas, Schmitz (2013), ao salientar o rigor processual e meticulosidade que havia para a coleta das provas, esclarece que o centro do processo inquisitorial sistematizava-se no fato de que, os delitos combatidos pela Inquisição, neste caso, a heresia e a bruxaria, eram feitos sigilosamente, portanto, dificilmente seriam obtidas provas contra tais condutas. Dessa forma, além das testemunhas que supostamente teriam presenciado a atividade herética, se fazia necessária a confissão do réu que, dentre todas as espécies de provas admitidas no processo inquisitorial, era a de mais valia, pois considerava que era incontestável e consistia na anuência da pessoa acusada sobre a sua culpabilidade relativa ao crime a qual fora-lhe imputado. (Schmitz, 2013, p. 29).
Se a confissão, dentre todos os tipos de provas, era a melhor forma de se constatar um crime, a tortura era o melhor modo para obtê-lo. É isto que Schmitz reforça ao dizer que:
“A tortura, [...] foi reintroduzida na Europa no século XIII, como meio de obter a confissão de um acusado ou das testemunhas. [...] Esse procedimento hediondo foi autorizado pela Igreja através da Bula do Papa Inocêncio IV, em 1252, que a justificava como necessária ao combate dos seguidores de satã. [...] feita a adoção da tortura pelos inquisidores nos julgamentos de bruxaria e heresia, foi também seguida pelos juízes dos Tribunais Seculares.” (Schmitz, 2013, p. 30).
Entretanto, em casos mais graves de heresias, outras técnicas eram utilizadas, como elucidam Kramer e Sprenger:
“Se ela própria é em si grande fonte de perigo, por ser líder de outras bruxas, então pode-se prometer-lhe a vida sob as condições seguintes: que seja condenada à prisão perpetua, a pão e água, desde que forneça evidencia que leve a condenação de outras bruxas. E não se lhe dirá, ao prometer-lhe a vida, que será aprisionada dessa forma; que se deixe a acusada imaginar que alguma outra pena, como o exílio, lhe será imposta como castigo. E sem dúvida bruxas notórias, especialmente as que fazem uso de remédios de bruxaria e as que curam os enfeitíçados por meios supersticiosos, devem ser mantidas dessa forma, para que possam ajudar os enfeitíçados, e para que possam delatar outras bruxas. Mas tal delação não deve ser considerada em si suficiente para uma condenação, porque o demônio é mentiroso, salvo se consubstanciada pela evidencia do fato, e por testemunhas.” (Kramer; Sprenger, 2007, p. 432).
Braun expressa uma dúvida quanto à uma das restrições mais inusitadas para a prática da tortura pelos inquisidores, ele expressa essa dúvida ao afirmar que “existia uma regra entre os inquisidores, [...] a qual os historiadores têm dificuldade de achar a sua origem. Trata-se da proibição de derramamento de sangue no momento da tortura.” (Braun, 2010, p. 32). Entretanto, Aquino diz que: “O Direito Canônico da Igreja não permitia que ela levasse à morte o culpado por causa do célebre princípio ‘Ecclesia abhorret sanguine’ (À Igreja repugna derramar sangue); portanto a execução de um condenado era sempre tarefa do Estado.” (Aquino, 2009, p. 41). Portanto, a simbologia do princípio canônico evidenciada por Felipe Aquino parece justificar a proibição do derramamento de sangue no processo inquisitorial.
Por fim, têm-se a última consequência do processo penal inquisitorial que é a condenação baseada na sentença proferida pelo juiz competente. Braun afirma que:
“Após a emissão da sentença a punição, do herege era, na maioria das vezes, feita de imediato. A execução da penalidade era chamada de Penitência. Nos crimes de heresia de menor relevância poderiam ser aplicadas multas, tomada de bens, peregrinação a lugares santos, a obrigação de entrada em um monastério, e a adesão as cruzadas. No século XIII, a adesão as cruzadas foi uma penalidade comum. Os penitentes eram enviados em peregrinação à Terra Santa por um período que podia variar de dois a oito anos. Se os penitentes sobrevivessem, exigia-se que trouxessem consigo na volta uma carta do Patriarca de Jerusalém ou Acre, comprovando o seu serviço. [...] Nos casos mais graves a pena era a de morte. Morte pelo fogo.” (Braun, 2010, p. 33).
Dessa forma, as características e etapas que compõem o processo inquisitorial, que vai desde o início da persecução inquisitorial até a cominação da pena, baseada em uma sentença proferida pelo juiz do Tribunal do Santo Ofício, mostram-se relevantes para uma profunda análise do julgamento dos Templários.