Os "ideais" e a "matéria bruta"
Resumo
O presente ensaio tem como escopo a análise do ensaio de Noberto Bobbio intitulado "O Futuro da Democracia", demonstrando que o regime democrático é o ideal, no entanto não deve ser visto como perfeito, como bem demonstrado no texto presente por suas falhas. Mostra-se a disparidade entre o que Bobbio denomina de "ideal" e "matéria bruta".
O regime democrático
A democracia é o regime vigente no Ocidente e, em alguns países, no Oriente. Trata-se de uma forma de governo em que o poder reside no povo e a escolha dos representantes (em uma democracia indireta ou representativa) se dá pelo voto da maioria, como no art. 1°, § Único, da Constituição de 1988. A democracia surge na Grécia Antiga, mais especificamente em Atenas, berço filosófico e democrático do Ocidente; surge tal forma de governo de forma direta, em que o próprio povo deliberava acerca da administração estatal (mesmo que na Grécia Antiga a democracia fosse restrita aos homens acima de 30 anos e naturais de Atenas, excluindo mulheres, escravos e estrangeiros).
A democracia representativa ou indireta, tal como a conhecemos atualmente, foi resultado de um processo histórico-revolucionário, com a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789, apesar desta ter-se transformado em tirania ao longo do tempo nas mãos do partido Jacobino). Com tal processo histórico (e revolucionário), houve a "democratização" geral (também um processo que não ocorreu rapidamente, antes que o leitor creia que foi rápido...) mundial. A democracia representativa consiste no poder emanado pelo povo e exercido pelos representantes eleitos de forma majoritária.
Todavia, Bobbio define democracia de outra forma, a saber:
"Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias e fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos" (BOBBIO, 2000, p. 30).
Desse modo, o filósofo italiano diz que há regras, sendo elas a escolha pela coletividade (entenda-se como a maioria, ou seja, elevado número de cidadãos) e o amplo acesso ao exercício do direito ao sufrágio, o voto (BOBBIO, 2000, p. 32). Mas, ainda:
"É indispensável uma terceira condição: é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que os chamados a decidir sejam garantidos os assim chamados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. - os direitos à base dos quais nasceu o Estado liberal e foi construída a doutrina do Estado de direito em sentido forte, isto é, do Estado que não exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos "invioláveis" do indivíduo" (BOBBIO, 2000, p. 32).
O filósofo positivista demonstra, claramente, a ligação entre liberdade e democracia, entre direitos fundamentais de 1ª dimensão, 2ª dimensão e 3ª dimensão, mas também entre Estado liberal e Estado democrático de direito.
O regime democrático enquanto forma de governo necessita de liberdade, portanto, dos cidadãos a fim destes deliberarem acerca da administração estatal (em uma democracia direta) ou na escolha de seus representantes para gerir o Estado (em uma democracia representativa), englobando cada vez mais a participação do povo nesse processo.
Os "ideais" e a "matéria bruta": (im)perfeição do regime democrático
O regime democrático é o ideal, todavia não é perfeito. Existe uma diferença entre o "ideal" e a "matéria bruta": aquele é o que foi prometido; esta é o que é na realidade (BOBBIO, 2000, p. 34). Não irei me ater ao ideal, mas, sim, à "matéria bruta" no presente ensaio, apontando os seguintes problemas do regime democrático, à luz das lições Bobbianas: Revanche dos interesses; persistências oligárquicas; o poder invisível; tecnocracia e burocracia.
Revanche dos interesses: quando a justiça e o bem comum se tornam injustiça e o bem particular
Um dos grandes problemas de uma sociedade pluralista formada por indivíduos (concepção esta democrática, pelo pluralismo, e liberal, pelo individualismo) é o revanche ou conflito de interesses. A sociedade é formada por um acordo de vontades entre diversos indivíduos (o que Bobbio chamada de "sociedade civil") para, enfim, formar-se o Estado, ente regulador das relações sociais, econômicas e jurídicas (BOBBIO, 2.000, p. 34). Entretanto, houve, com o crescimento de diversos grupos (formados por indivíduos com interesses comuns), conflitos entre os interesses coletivos, dizendo o jusfilósofo italiano:
"O que aconteceu nos Estados democráticos foi exatamente o oposto: sujeitos politicamente relevantes tornaram-se sempre mais os grupos, grandes organizações, associações das mais diversas, sindicatos das mais diversas profissões, partidos das mais diversas ideologias, e sempre menos os indivíduos. Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo ou a nação, composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta ou indiretamente do governo [...]" (BOBBIO, 2000, p. 35).
Um dos desafios da democracia, atualmente, é conciliar os conflitos de interesses entre os diversos grupos sociais, econômicos e políticos, dentro do conceito de uma Constituição aberta, como foi a de 1988 (Bonavides), que é imperfeita, mas tenta conciliar os diversos interesses conflitantes (entre os interesses de classes dominantes, para citar Marx, e de classes mais desfavorecidas, visto que no Brasil há alta concentração de renda e desigualdade socioeconômica) em uma Constituição (brasileira).
Predominância oligárquica: conflito de interesses entre classes
No Brasil, é fato que há desigualdade socioeconômica, consubstanciada em conflitos entre classes (mais ricos e mais pobres, políticos e o povo, mais abastados e menos abastados e etc.). Deve-se levar em conta que numa sociedade e num Estado não existe a autonomia de Rousseau ou de Locke, como num "estado de natureza", mas sim a autonomia de escolha dos representantes (se houver, fidedignamente, opções reais...). Desse modo, pode-se dizer que "a característica de um governo democrático não é a ausência de elites mas a presença de muitas elites em concorrência entre si para a conquista do voto popular" (BOBBIO, 2000, p. 39).
Sim, elites são naturais, todavia se deve levar em conta as "elites que impõe", estas sendo autocráticas e não democráticas, e "elites que propõe", eleitas democraticamente, agindo em prol do bem comum e com a devida justiça. Devemos lutar pelas elites que propõe em face das que impõe com o fito de se ter, efetivamente e realmente, uma democracia substancialista e de fato.
O poder invisível
Bobbio diz que em uma democracia ideal há a eliminação do poder invisível, aquele poder paralelo ao Estado e que o influencia, inclusive em resultados eleitorais (BOBBIO, 2.000, p. 41). Mas, numa democracia real, regida pela matéria bruta, isso não ocorre... Tal poder invisível é uma afronta à publicidade, tendo em vista que república (res, coisa, e publicae, pública) é o governo do povo e para o povo, devendo ter publicidade e transparência.
Em outra obra, Bobbio diz que "a opacidade do poder é a negação da democracia." Desse modo, não há democracia sem um poder (e seus poderosos) transparentes e em prol do bem comum.
Tecnocracia e burocracia
A democracia é o governo do povo e para o povo, não sendo combinável com a ideia de tecnocracia, governo de técnicos, engravatados e homens poderosos, mas, sim, do povo e para o povo. Dessa forma, ensina-nos o mestre de Turin:
"Tecnocracia e democracia são antitéticas: se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo" (BOBBIO, 2000, p. 46).
Tecnocracia pressupões elitização imposta e não elitização proposta, com o crescente número de pessoas a participarem das tomadas de decisões governamentais, mas de a redução do povo no processo político, haja vista que os técnicos, em uma tecnocracia, é que decidirão (nem sempre) em prol do povo.
O aumento do aparato estatal aliado à participação popular na democracia (contemporânea) fez com que as demandas do povo crescessem, no entanto o Estado não consegue supri-las efetivamente. Quanto mais cresceu a participação popular (de mulheres, analfabetos, pessoas com deficiência e pessoas com menor poder aquisitivo, o que foi algo positivo, visto que democratização engloba a maior participação da população cidadã), mais as demandas pela efetivação dos direitos sociais aumentaram e, consequentemente, o Estado também aumentou; ou melhor, inchou-se, entretanto não se fortaleceu. Gerando, diante disso, um enfraquecimento estatal com o inchaço da máquina pública.
Conclusões
Percebe-se que a democracia é um sistema imperfeito, mas não devemos ser pessimistas, porquanto é o melhor que temos. Por isso, apelo pela democracia, porquanto foi com ela que, apesar dos problemas, conseguiu introduzir regras e princípios de cunho humanístico e social nos regimes mundiais, de forma gradual, como uma revolução silenciosa, em prol dos direitos fundamentais e dos direitos humanos (BOBBIO, 2000, p. 51-52).
Referências
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 10 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.