Praça da Sé, 30 de março de 1964, 8 horas da manhã. Dois comunistas chegam ao mesmo tempo na escadaria da catedral. Um deles entrou na praça pela rua que vem do Tribunal de Justiça, o outro pela que leva à Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Ambos têm mais ou menos a mesma idade, mas estão vestidos de maneira diferente.
Os comunistas discursam para a população, cada qual com seu megafone. O tema dos discursos é mais ou menos o mesmo: ninguém aguenta mais a carestia, os salários devem ser aumentados, o operariado vencerá a luta contra a burguesia brasileira, apoio total às reformas de base do governo João Goulart, repúdio contra a crueldade do imperialismo norte-americano, a religião é o ópio do povo, fora Repórter Esso.
Os paulistas que cruzam a Praça da Sé não prestam atenção aos discursos dos comunistas. Servidores públicos bem vestidos e amanuenses pobrezinhos de botinas fogem da garoa fina e disputam os balcões dos bares. Café com pão antes do expediente na repartição.
Operários nordestinos em construção fazem suas alpercatas cantar seguindo de cabeça baixa para as obras em que trabalham. Apressados, eles tem medo pavor de despertar a atenção dos policiais amarelos da Força Pública que observam os comunistas.
No alto de um prédio qualquer, do outro lado da praça, militares do serviço de inteligência do Exército vigiam os comunistas com seus poderosos binóculos. Eles usam poderosos microfones direcionais para escutar o que seus inimigos estão dizendo e anotam tudo nos seus caderninhos ensebados.
Um dos militares aponta o microfone direcional para dois policiais que parecem prestar atenção ao discurso do comunista bem vestido. Ao perceber que a dupla da Força Pública conversa sobre uma partida de futebol que ocorreu dias antes o militar a deixa em paz.
Na escadaria da catedral, os comunistas estão inflamados. Apesar de os transeuntes não prestarem nenhuma atenção aos discursos, eles parecem acreditar que estão mobilizando as massas. Na verdade apenas os pombos observam atentos um deles com esperança de apanhar migalhas das bolachas que de quando em vez ele tira do bolso para comer. Mas então acontece algo que faz os pombos fugir em revoada e o povo se juntar para apreciar o triste espetáculo.
Um dos comunistas diz ao microfone "A nossa ditadura do operariado nunca cometerá os mesmos crimes que a cruel ditadura de Stalin, porque...". Antes dele completar a frase, o outro comunista grita "Cale a boca seu trotskista filho da puta!" e o agride com o megafone. Socos improvisados e pontapés criativos substituem as palavras de ordem decoradas e as frases feitas.
Rapidamente os dois policiais furam a multidão e separam os meliantes. "Circulando, a briga acabou!" No alto do prédio à distância, os militares observam a alegres o incidente. Um deles registra no seu caderno de inteligência "Os comunistas idiotas continuam divididos, nada poderá colocar em risco o golpe de estado de amanhã".
O outro militar, provavelmente o comandante da operação, observa a anotação e diz "Yes, brother. Mas o Tio Sam não pode saber disso. Ele precisa acreditar que o perigo de uma revolução comunista no Brasil é real."