Capa da publicação LGPD limita acesso de Conselhos a dados médicos
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O CREMEB e a LGPD: a necessidade de alinhamento entre a ética médica e a proteção de dados pessoais

01/04/2025 às 12:48

Resumo:


  • O artigo examina o conflito entre a LGPD e normas dos Conselhos Regionais de Medicina em caso concreto na Bahia.

  • A metodologia baseia-se na análise documental e normativa do caso, pareceres da PGE/BA e orientações da SESAB.

  • Conclui-se que os Conselhos devem alinhar suas práticas à legislação vigente para proteger direitos fundamentais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Médico pode negar prontuário sem ordem judicial ou consentimento, com base na LGPD? Conduta respaldada por pareceres da PGE/BA afasta infração ética e reforça dever de sigilo.

Resumo: Este artigo examina o conflito entre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e normas infralegais dos Conselhos Regionais de Medicina, à luz de um caso concreto na Bahia, em que médico foi sindicado por negar prontuário sem consentimento ou ordem judicial. O objetivo é demonstrar que tal negativa constitui estrito cumprimento do dever legal, amparado pela LGPD, afastando qualquer infração ética. A metodologia baseia-se na análise documental e normativa do caso, pareceres da PGE/BA e orientações da SESAB. Conclui-se que os Conselhos devem alinhar suas práticas à legislação vigente, sob pena de violar direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados.


Introdução

O presente artigo tem como tema a tensão normativa existente entre os Conselhos Profissionais de fiscalização da atividade médica e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018 – LGPD), com enfoque especial nas hipóteses de requisição de prontuários médicos por parte dessas autarquias, sem o consentimento do titular dos dados ou ordem judicial. Tal temática insere-se no campo interseccional entre o Direito Médico, o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Digital, suscitando relevantes discussões quanto à hierarquia normativa, limites da atuação administrativa e proteção dos direitos fundamentais.

O contexto que motiva esta investigação advém de caso concreto ocorrido no Estado da Bahia, no qual o Conselho Regional de Medicina (CREMEB) instaurou sindicância administrativa contra um médico diretor técnico que, respaldado por pareceres da Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE/BA) e por orientações da Secretaria de Saúde (SESAB), negou o fornecimento do prontuário de uma paciente, justificando a negativa com base nas disposições da LGPD e nos princípios do sigilo médico. Mesmo diante das justificativas, o CREMEB entendeu que a conduta do profissional violaria o Código de Ética Médica, especificamente o artigo 90, o que culminou na proposta de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ao profissional.

Diante desse contexto, questiona-se: pode um Conselho Profissional compelir o médico a entregar prontuário médico de paciente sem ordem judicial ou consentimento expresso do titular? A normativa infralegal dos Conselhos pode se sobrepor à legislação federal que disciplina a proteção de dados sensíveis?

Parte-se, portanto, da hipótese de que a atuação do médico encontra-se plenamente respaldada pela legislação vigente, uma vez que os dados contidos em prontuários médicos se qualificam como dados pessoais sensíveis, cuja divulgação encontra-se condicionada às hipóteses restritivas previstas no artigo 11 da LGPD, e que a exigência de entrega desses documentos, sem os requisitos legais, configura afronta direta ao direito fundamental à privacidade e à autodeterminação informativa.

O objetivo geral deste estudo é analisar, sob a perspectiva jurídica, os limites legais impostos à atuação fiscalizatória dos Conselhos de Medicina no tocante ao acesso a prontuários médicos, à luz da LGPD e da jurisprudência constitucional. Como objetivos específicos, busca-se: (i) contextualizar a natureza jurídica do prontuário médico e sua classificação como dado sensível; (ii) examinar os fundamentos legais e administrativos invocados pela recusa ao fornecimento; (iii) avaliar o conflito entre normas infralegais dos Conselhos e a legislação federal sobre proteção de dados; e (iv) propor critérios de compatibilização entre o dever de fiscalização e a salvaguarda de direitos fundamentais.

Justifica-se a relevância do estudo pela crescente incidência de conflitos entre normas deontológicas e legislações setoriais de proteção de dados, bem como pela necessidade urgente de adaptação dos Conselhos Profissionais ao novo regime jurídico inaugurado pela LGPD. Além disso, a análise contribui para consolidar a segurança jurídica na atuação dos profissionais da saúde, que se veem diariamente diante de exigências contraditórias entre o dever de sigilo e a obrigação de colaboração com autoridades administrativas.

A metodologia adotada consiste na análise documental e normativa do caso concreto ocorrido na Bahia, incluindo os pareceres técnicos, notificações do CREMEB, manifestações da PGE/BA, orientações da SESAB e fundamentos constitucionais e legais aplicáveis, além de revisão doutrinária e jurisprudencial sobre o tema.

Por fim, este artigo está estruturado da seguinte forma: após a introdução, o segundo tópico apresenta o caso concreto e suas circunstâncias. O terceiro capítulo analisa os fundamentos jurídicos da negativa ao fornecimento do prontuário. Em seguida, discute-se o conflito normativo entre o Código de Ética Médica e a LGPD. Por fim, nas conclusões, sintetizam-se os achados e propõe-se uma reflexão sobre a necessária transformação paradigmática no âmbito da atuação dos Conselhos Profissionais frente à proteção de dados pessoais.


1. O CASO CONCRETO: A SINDICÂNCIA CONTRA O DIRETOR MÉDICO NO ESTADO DA BAHIA 1

A presente análise tem como ponto de partida um caso concreto de significativa relevância jurídica e ética, ocorrido no Estado da Bahia, envolvendo a instauração de sindicância administrativa pelo Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (CREMEB) contra um Diretor Técnico de um Hospital.

A sindicância, de natureza ex officio, foi deflagrada sob o fundamento de que o médico teria se recusado, de maneira indevida, a atender requisição administrativa emitida pelo Conselho para fornecimento do prontuário médico de uma paciente.

A solicitação do CREMEB determinava a entrega do referido prontuário, com base em sua suposta prerrogativa legal de fiscalizar a atuação ética dos profissionais da medicina, prevista na Lei nº 3.268/1957 e regulamentada pelo Decreto nº 44.045/1958.

No entanto, a resposta do médico, expedida por meio de Ofício, foi no sentido da negativa ao atendimento da requisição, fundamentando sua decisão em três eixos principais: o dever de sigilo profissional, as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018 – LGPD) e os pareceres emitidos por órgãos jurídicos e administrativos vinculados ao Estado da Bahia.

De forma detalhada, o médico destacou que os artigos 73 e 89 do Código de Ética Médica veda ao profissional a liberação de prontuário médico sem ordem judicial ou consentimento expresso e por escrito do paciente. Adicionalmente, apontou que os dados contidos em prontuários médicos configuram dados pessoais sensíveis nos termos do artigo 5º, inciso II, da LGPD, cuja divulgação, segundo o artigo 11 da mesma norma, só se mostra legítima nas hipóteses de autorização específica do titular ou por determinação judicial.

O médico ainda embasou sua conduta em pareceres emitidos pela Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE/BA), notadamente o Parecer nº PA-NPE-327/2023 e o Parecer nº PA-NPE-004/2023, ambos reafirmando o entendimento de que o fornecimento de dados sensíveis, como os constantes de prontuários médicos, a Conselhos Profissionais, sem consentimento ou ordem judicial, viola a legislação vigente, em especial a LGPD. A Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB), por sua vez, corroborou essa interpretação por meio do Ofício nº 79/2024, disseminando a orientação entre as unidades da rede pública estadual.

Em contrapartida, o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia sustentou a possibilidade de acesso direto aos prontuários, com fundamento no artigo 90 do Código de Ética Médica e no artigo 6º da Resolução CFM nº 1.605/2000. Tal entendimento é manifestado no próprio parecer sindicante, quando se afirma:

“O Código de Ética Médica veda ao médico, no artigo 90, ‘deixar de fornecer cópia do prontuário médico de seu paciente quando de sua requisição pelos Conselhos Regionais de Medicina’.”​.

A decisão do CREMEB ainda reconhece expressamente que o médico sindicado fundamentou sua negativa com base na LGPD, no Código de Ética Médica e em jurisprudência do STF, conforme se depreende da seguinte passagem:

“O denunciado negou a este Conselho o envio do prontuário solicitado da [...] sob alegação que:

[...]

2 – A Lei 13.709/2018 (LGPD), que considera as informações de saúde como dados sensíveis (art. 5º, II) e dispõe que o seu tratamento, que inclui a divulgação dos dados para terceiros, só pode ocorrer com prévia autorização do titular do dado ou nas hipóteses nela expressamente indicadas no art. 11. da referida lei.”​

Ainda nesse sentido, a autoridade sindicante reconheceu a citação do seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal:

“O Supremo Tribunal Federal também já firmou entendimento no sentido de que liberação de dados de prontuário médico só pode ser feita mediante ordem judicial ou expressa autorização do paciente/representante, conforme Recurso Extraordinário 1.375.558 ACRE de relatoria da Ministra Rosa Weber.”​.

Apesar do robusto fundamento legal e jurisprudencial, o CREMEB, em sua conclusão, manteve o entendimento de que houve infração ética e decidiu, por unanimidade, propor a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o médico sindicado, sob o argumento de que a negativa implicaria violação ao artigo 90 do Código de Ética Médica.

Na audiência convocada para formalização do TAC, a defesa reiterou os fundamentos jurídicos que respaldaram a negativa, ao passo que o CREMEB acabou por reconhecer a necessidade de obtenção do consentimento da paciente como condição para acesso ao documento. Após a coleta da autorização da titular dos dados, o prontuário foi finalmente entregue ao Conselho, encerrando-se o conflito sob a perspectiva material, embora permaneça o relevante debate normativo sobre os limites da atuação dos Conselhos de fiscalização profissional frente às disposições cogentes da LGPD.

Esse episódio revela um emblemático exemplo da colisão normativa entre normas infralegais deontológicas e a legislação federal de proteção de dados, evidenciando a urgente necessidade de compatibilização entre o dever ético de colaborar com órgãos de controle e o dever jurídico de proteger direitos fundamentais, especialmente a privacidade e a autodeterminação informativa dos pacientes.


2. Prontuário Médico e LGPD: Dados Sensíveis e Hipóteses Legais de Tratamento segundo a PGE/BA e SESAB

  Deveras, a temática do acesso ao prontuário médico pelo Conselho Regional de Medicina, especialmente em contextos de sindicâncias e processos ético-profissionais, insere-se no cerne de um debate jurídico relevante e atual que envolve os direitos fundamentais à intimidade e à proteção de dados pessoais sensíveis, conforme previsto no artigo 5º, incisos X e XII da Constituição Federal de 1988, e regulamentado pela Lei nº 13.709/2018 – a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

O prontuário médico é, nos termos do art. 1º da Resolução CFM nº 1.638/2002, documento único constituído por informações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, revestido de caráter legal, sigiloso e científico. A LGPD classifica, em seu artigo 5º, inciso II, os dados relativos à saúde como dados pessoais sensíveis, sendo aqueles cuja exposição indevida pode causar danos relevantes à esfera íntima do titular.

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A Procuradoria Geral do Estado da Bahia, por meio do Parecer PA-NPE-327/2023, é categórica ao afirmar:

“É vedado à Administração Pública e a seus agentes o fornecimento de prontuário médico sob sua guarda a pessoas físicas e jurídicas, bem como a qualquer órgão público, como Ministério Público, Polícia, Conselhos Regionais de Medicina [...] que, salvo na hipótese de expressa autorização do paciente, apenas pela via judicial poderão ter acesso ao referido documento”​.

O mesmo documento critica de forma contundente o conteúdo do art. 90. do Código de Ética Médica:

“A norma editada pelo CFM, contudo, destoa do arcabouço normativo advindo desde a Constituição Federal [...], colide com os próprios preceitos do Código de Ética Médica que vedam a terceiros o acesso ao prontuário do paciente, nada justificando que o próprio Conselho Regional de Medicina [...] seja excluído deste rol”​.

Tais fundamentos foram reiterados pela SESAB no Ofício nº 79/2024, no qual se destaca que:

“A Procuradoria Geral do Estado [...] opinou pela impossibilidade da Administração Pública e de seus agentes quanto ao fornecimento de prontuário médico sob sua guarda [...] salvo na hipótese de expressa autorização do paciente, apenas pela via judicial poderão ser apresentados”​.

Ainda segundo o mesmo ofício:

“Em caso de eventual e absurda instauração de processo disciplinar/sancionatório pelo CREMEB [...] caberá a arguição destas objeções em defesa, a ser mesmo promovida pela PGE”​.

A LGPD, por sua vez, disciplina no art. 11, inciso II, as hipóteses nas quais é possível o tratamento de dados sensíveis, como os constantes no prontuário médico, restringindo o acesso a situações excepcionais. A PGE, em seus pareceres, deixa claro que a instrução de processos administrativos perante Conselhos Profissionais não se enquadra entre essas hipóteses, e que a autorização judicial permanece imprescindível, como reforçado:

“Os dados do prontuário médico [...] não podem ser transferidos a terceiros, nem a Conselhos Regionais de Medicina, salvo nas hipóteses indicadas nas conclusões do Parecer nº 003795/2019”​.

Assim, ao recusar o fornecimento de tais documentos ao CREMEB sem autorização judicial ou consentimento expresso do paciente, o médico cumpre rigorosamente seu dever legal de proteção à privacidade do paciente e de observância à legislação vigente, especialmente a LGPD.

Conclui-se, portanto, que os pareceres jurídicos vinculantes da PGE/BA, somados à orientação institucional da SESAB, formam um sólido entendimento jurídico que impede o fornecimento extrajudicial de prontuários médicos a Conselhos Profissionais. Essa interpretação garante a segurança jurídica e a integridade dos direitos fundamentais dos pacientes, exigindo dos Conselhos uma reformulação interpretativa que respeite os marcos constitucionais e legais da proteção de dados.


3. A Urgente Revisão Paradigmática dos Conselhos Profissionais

O caso concreto analisado neste estudo evidencia, com clareza solar, a premente necessidade de revisão paradigmática na forma como os Conselhos Profissionais — especialmente os Conselhos Regionais de Medicina — interpretam e exercem suas prerrogativas à luz do regime jurídico vigente da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018 – LGPD).

Tradicionalmente, os Conselhos têm se apoiado nas competências conferidas pela Lei nº 3.268/1957, em conjunto com normas infralegais, para requisitar prontuários médicos no curso de apurações disciplinares. Todavia, esse modus operandi mostra-se atualmente incompatível com os marcos normativos da LGPD, notadamente quanto à proteção de dados sensíveis e à preservação da autodeterminação informativa dos titulares, princípios estes tutelados também pela Constituição Federal (art. 5º, X e XII).

Com efeito, a atuação administrativa sancionadora deve estar sempre subordinada ao regime dos direitos fundamentais, devendo-se observar o devido processo legal substancial e os limites constitucionais impostos à atividade estatal, inclusive nos procedimentos de fiscalização ética-profissional.

Como bem salienta Osório (2019, p. 86), "a Administração Pública sancionadora, incluídos os Conselhos de fiscalização profissional, não está isenta dos limites constitucionais, especialmente os direitos fundamentais da pessoa humana".

A negativa do médico ao fornecimento do prontuário, amparada na LGPD e nos pareceres vinculantes da Procuradoria Geral do Estado da Bahia — a exemplo dos Pareceres PA-NPE-004/2023 e PA-NPE-327/2023 —, além da orientação normativa expedida pela Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB) por meio do Ofício nº 79/2024, configura estrito cumprimento do dever legal, excludente de antijuridicidade plenamente aceita na dogmática jurídica brasileira.

Zardo (2021, p. 152) afirma que "a causa excludente de antijuridicidade por estrito cumprimento do dever legal se configura quando a conduta é imposta por uma norma jurídica cogente, a qual, inclusive, deve prevalecer sobre normas infralegais ou internas".

Também Armijo (2020, p. 301) sustenta que “a presença de um dever legal afasta a ilicitude do fato, ainda que este preencha formalmente os elementos de um tipo infracional”.

Ademais, o art. 11. da LGPD é categórico ao condicionar o tratamento de dados pessoais sensíveis às hipóteses legalmente previstas, sendo expressamente exigido o consentimento do titular ou a existência de ordem judicial para que se proceda à sua divulgação. Logo, é juridicamente insustentável que resoluções administrativas — como o art. 90. do Código de Ética Médica — pretendam excepcionar norma de natureza federal, hierarquicamente superior, sob pena de flagrante inconstitucionalidade por afronta ao princípio da legalidade estrita.

Nesse sentido, reiterar a prática de exigir dos médicos a liberação de prontuários sem observar os requisitos legais da LGPD significa impor a esses profissionais um risco jurídico incompatível com a ordem constitucional. A tentativa de imputar infração ética em tais situações não apenas fere o ordenamento jurídico, mas também configura abuso de poder regulatório por parte dos Conselhos.

Como assinala Osório (2019, p. 122), "quando a justificativa da conduta encontra-se prevista no próprio ordenamento jurídico, a atipicidade é originária e independe da análise posterior de culpabilidade ou dolo". Portanto, a conduta do médico, neste caso, deve ser reconhecida como juridicamente adequada desde sua gênese, sendo incabível qualquer tipo de sanção administrativa ou disciplinar.

É imprescindível, portanto, que os Conselhos Profissionais adotem uma nova postura institucional, guiada pela supremacia da Constituição e das leis federais, reconhecendo os limites de sua atuação e promovendo a compatibilização de seus regulamentos internos com a LGPD. Insistir em práticas incompatíveis com a legislação vigente apenas perpetua insegurança jurídica, compromete o prestígio da profissão médica e viola os direitos fundamentais dos cidadãos.

Dessa forma, a responsabilização de médicos por condutas adotadas em cumprimento à LGPD revela-se não apenas equivocada, mas ilegítima e contrária ao Estado Democrático de Direito. O arquivamento de sindicâncias instauradas nesses moldes, portanto, não é apenas medida de justiça individual, mas passo necessário à consolidação de uma atuação institucional dos Conselhos em consonância com o sistema constitucional vigente.


Conclusão

A análise do caso concreto envolvendo o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (CREMEB) e o Diretor Médico de um Hospital revela um emblemático conflito entre normas infralegais emanadas dos Conselhos Profissionais e o regime jurídico protetivo estabelecido pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018 – LGPD). Em que pese a autoridade administrativa dos Conselhos no exercício da fiscalização ética da profissão médica, tal prerrogativa não pode se sobrepor às garantias fundamentais asseguradas constitucionalmente, notadamente à privacidade, ao sigilo profissional e à autodeterminação informativa dos titulares de dados pessoais sensíveis.

Restou amplamente demonstrado que a conduta do médico, ao condicionar o fornecimento do prontuário da paciente à existência de consentimento expresso ou ordem judicial, não apenas se amparou em pareceres técnicos vinculantes da Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE/BA) e em orientações normativas da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB), como também se revelou em estrito cumprimento ao ordenamento jurídico vigente. A negativa não foi arbitrária, tampouco desrespeitosa às normas éticas da profissão, mas expressão legítima da supremacia da lei federal sobre atos administrativos infralegais, conforme impõe a própria Constituição da República.

O Código de Ética Médica, enquanto normativo de natureza regulamentar, deve ser interpretado à luz da LGPD e dos princípios constitucionais, não podendo gerar obrigações que contrariam normas federais. A insistência em exigir dos profissionais de saúde o descumprimento da LGPD para atender a requisições administrativas de Conselhos configura grave ameaça à segurança jurídica, ao exercício regular de direitos fundamentais e à própria credibilidade do sistema normativo.

A doutrina especializada, representada por autores como Fábio Medina Osório, Francisco Zardo e Antonio Maria Bueno Armijo, sustenta, de forma uníssona, que o estrito cumprimento de um dever legal e o exercício regular de um direito configuram excludentes de antijuridicidade, tornando a conduta absolutamente lícita e insuscetível de sanção. A jurisprudência, por sua vez, tem reafirmado a necessidade de ordem judicial ou consentimento do titular para o acesso a prontuários médicos, em consonância com o art. 11. da LGPD e com o art. 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal.

Diante de todo o exposto, impõe-se o reconhecimento da legitimidade da conduta do Diretor Médico, bem como o arquivamento da sindicância instaurada. Mais do que isso, torna-se imprescindível uma reestruturação interpretativa por parte dos Conselhos Profissionais, os quais devem alinhar seus procedimentos ao novo regime jurídico de proteção de dados pessoais, respeitando os direitos fundamentais dos pacientes e assegurando aos médicos a segurança necessária no exercício ético e responsável da profissão.

Assim, que este caso sirva como marco reflexivo e orientador para a necessária compatibilização entre o dever de fiscalização dos Conselhos e a salvaguarda dos direitos fundamentais consagrados em nossa ordem constitucional.


Referências

ARMIJO, Antonio Maria Bueno. Direito Administrativo Sancionador. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

BAHIA. PROCURADORIA GERAL DO ESTADO. Parecer Jurídico PA-NPE-004/2023. Processo SEI nº 006.0400.2022.0044955-11. Salvador, jun. 2023.

BAHIA. PROCURADORIA GERAL DO ESTADO. Parecer Jurídico PA-NPE-327/2023. Processo SEI nº 019.9726.2023.0072497-99. Salvador, jun. 2023.

BAHIA. SECRETARIA DA SAÚDE. Ofício nº 79/2024 – SESAB/SAIS/DGGUP. Salvador, 16 ago. 2024.

BRASIL. Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957. Dispõe sobre os Conselhos de Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1 out. 1957.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet). Diário Oficial da União, 15 ago. 2018.

OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

ZARDO, Francisco. Infrações e sanções em licitações e contratos administrativos: com as alterações da Lei anticorrupção (Lei 12.846/2013). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/infracoes-e-sancoes-em-licitacoes-e-contratos-administrativos-com-as-alteracoes-da-lei-anticorrupcao-lei-12846-2013/1327437252. Acesso em: 18 nov. 2024.


Observação

Os dados pessoais utilizados neste artigo foram anonimizados para fins acadêmicos, preservando-se a identidade dos envolvidos conforme o art. 5º da LGPD.

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Sobre o autor
Jamil Pereira de Santana

Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS - Universidade Salvador | Laureate International Universities. Possui pós-graduações em Direito Público (Constitucional, Administrativo e Tributário) pelo Centro Universitário Estácio e em Licitações e Contratos Administrativos pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. É 1 Tenente R2 do Exército Brasileiro e membro ativo na Comissão Nacional de Direito Militar da ABA (Associação Brasileira de Advogados), além de integrar a Comissão Especial de Apoio aos Professores da OAB/BA. Compõe o Conselho Editorial da Revista Direitos Humanos Fundamentais da UNIFIEO e da Editora Mente Aberta. Atua como Professor de Direito Administrativo na Múltipla Difusão do Conhecimento, onde também coordena o curso preparatório para a 2 fase do Exame da OAB em Direito Administrativo. É Docente no Curso de Direito da UNINASSAU. Advogado contratado pelas Obras Sociais Irmã Dulce, com experiência em Direito Administrativo e Militar.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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