Resumo: O presente artigo propõe uma releitura da estrutura organizacional do Estado brasileiro à luz da metáfora da “Teoria do Bicho de Sete Cabeças”. Partindo de uma análise teórica e simbólica que conjuga elementos da doutrina constitucional, filosofia política e tradição bíblica, defende-se que o Estado brasileiro opera sob uma lógica policêntrica, composta por centros institucionais dotados de autonomia funcional. A metáfora da besta apocalíptica é ressignificada como representação da complexidade legítima do Estado Democrático de Direito. O artigo dedica especial atenção à Advocacia Pública, cuja busca por autonomia constitucional plena é analisada à luz das emendas propostas e da necessidade de equilíbrio funcional entre os poderes e os órgãos autônomos.
Palavras-chave: separação de poderes, autonomia institucional, Estado policêntrico, Advocacia Pública, controle recíproco.
Introdução
A teoria clássica da separação dos poderes, formulada por Montesquieu (1985), ainda orienta os sistemas constitucionais contemporâneos. No entanto, o modelo tripartite (Executivo, Legislativo e Judiciário) já não é suficiente para abarcar a complexidade institucional do Estado moderno. O constitucionalismo brasileiro, especialmente a partir da Constituição de 1988, incorporou novos centros de poder institucional dotados de autonomia, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, os Tribunais de Contas e, em estrutura ainda subordinada, a Advocacia Pública.
Este artigo propõe a metáfora do “Bicho de Sete Cabeças” para descrever o Estado brasileiro como um ente multifacetado, composto por sete instâncias institucionais com competências próprias e interdependentes. A metáfora bíblica da besta apocalíptica é ressignificada, não como figura do mal, mas como representação simbólica da pluralidade funcional do Estado.
A Separação dos Poderes no Constitucionalismo Moderno
A separação dos poderes é princípio basilar do Estado de Direito, previsto no artigo 2º da Constituição Federal de 1988. Trata-se de estruturação orgânica que visa evitar a concentração de poder e garantir a proteção das liberdades individuais (SILVA, 2023). Os três poderes tradicionais exercem funções típicas e atípicas, submetendo-se ao sistema de freios e contrapesos.
Contudo, como bem observa Canotilho (2003), o constitucionalismo contemporâneo exige a ampliação do conceito clássico, considerando a existência de funções estatais autônomas que não se enquadram nos poderes tradicionais, mas exercem atribuições igualmente relevantes para a proteção de direitos e para o equilíbrio institucional.
O Estado Policêntrico e a Complexidade Institucional
Barroso (2009) aponta que o Estado moderno deixou de ser uma estrutura monolítica para tornar-se um sistema policêntrico, composto por múltiplos centros de poder funcional. Essa policentralidade não compromete a unidade estatal, mas revela uma estrutura adaptada à complexidade social contemporânea. O reconhecimento de funções estatais autônomas, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, é expressão dessa evolução institucional.
Prerrogativas e Limites dos Poderes e Órgãos Autônomos
A Constituição Federal de 1988 delineia com clareza as competências e limites de atuação dos poderes e órgãos autônomos, a saber:
Poder Executivo: competência administrativa e normativa derivada (art. 84), limitado pelo controle legislativo e judicial.
Poder Legislativo: elaboração de leis e fiscalização (arts. 48. a 52), limitado pela Constituição e pelo Judiciário.
Poder Judiciário: jurisdição plena e controle de constitucionalidade (arts. 92. a 126), limitado pela inércia e ausência de função proativa.
Ministério Público: defesa da ordem jurídica (art. 127), com vedação à atuação político- partidária.
Tribunais de Contas: controle técnico e financeiro (art. 71), com revisibilidade judicial.
Defensoria Pública: assistência jurídica integral (art. 134), com limitações orçamentárias e de público-alvo.
Advocacia Pública: representação judicial e controle interno da legalidade (arts. 131. e 132), sem autonomia plena.
A Metáfora da Besta Apocalíptica e a Teoria do Bicho de Sete Cabeças
A figura da besta descrita no livro do Apocalipse (Ap 13:1) apresenta-se como um símbolo profético carregado de significados escatológicos e políticos. Segundo a narrativa joanina, a besta que emerge do mar possui sete cabeças e dez chifres, representando reis, reinos e sistemas de poder que se opõem à soberania divina. A interpretação teológica tradicional associa essa imagem a estruturas de poder autoritárias, absolutistas e perseguidoras, que agem em detrimento da justiça e da liberdade dos povos (BEALE, 1999; METZGER, 2000).
A imagem da besta não é uma representação literal do mal, mas uma crítica simbólica a sistemas de dominação que concentram poder em poucas mãos e reprimem a pluralidade. Na teologia política, a besta apocalíptica tornou-se sinônimo de autoritarismo sistêmico, traduzindo- se em práticas estatais que anulam a diversidade, impõem hegemonia ideológica e instrumentalizam o aparato jurídico-institucional para fins de repressão e controle. Trata-se, portanto, de um arquétipo do Estado centralizador e monopolizador de decisões.
No presente artigo, a imagem da besta é reinterpretada de forma construtiva e crítica, desprovida de sua carga demonizante, e convertida em uma metáfora funcional da complexidade estatal. O corpo da besta representa o Estado como ente uno e soberano, dotado de personalidade jurídica, responsabilidade institucional e dever de atuação em prol do bem comum. As sete cabeças, por sua vez, simbolizam os centros decisórios autônomos, que exercem suas funções com base na Constituição, limitando-se mutuamente e atuando em equilíbrio.
Cada cabeça representa uma instância de poder e reflexão jurídica, cuja existência evita que o Estado caia em estruturas autoritárias. Assim, o modelo do "bicho de sete cabeças" consagra uma alternativa à concepção absolutista do Leviatã hobbesiano: em vez de uma autoridade única e central, propõe-se um Estado policêntrico, onde múltiplos núcleos autônomos operam em sistema de freios e contrapesos. Trata-se de um projeto de organização estatal que valoriza a diversidade funcional e a limitação recíproca do poder.
A teoria, portanto, harmoniza:
A concepção de soberania unitária do Estado (Hobbes);
A separação funcional dos poderes (Montesquieu);
A crítica simbólica ao autoritarismo (tradição apocalíptica cristã).
A partir dessa harmonização, a Teoria do Bicho de Sete Cabeças torna-se uma chave hermenêutica para compreender a estrutura constitucional brasileira, sua resistência ao autoritarismo e a necessidade de fortalecer os órgãos autônomos como mecanismos preventivos à concentração indevida de poder.
A Autonomia Institucional da Advocacia Pública
A ausência de autonomia plena da Advocacia Pública tem sido objeto de diversas propostas legislativas, destacando-se:
PEC 82/2007: que propõe a autonomia funcional, administrativa e orçamentária das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal;
PEC 17/2012: que visa incluir a Advocacia Pública no rol das instituições dotadas de autonomia plena, nos moldes do Ministério Público e da Defensoria Pública.
A doutrina tem sustentado que a ausência de autonomia compromete a efetividade da função institucional da Advocacia Pública. Carlos Vinícius Alves Ribeiro (2019) sustenta que "a Advocacia Pública, ao atuar como guardiã da juridicidade e da moralidade administrativa, necessita de estrutura e independência que lhe permitam agir com imparcialidade técnica". Da mesma forma, Matheus Carvalho (2023) defende que a Advocacia Pública precisa "ser institucionalmente equiparada às demais funções essenciais à justiça, sob pena de assimetria funcional e fragilidade do controle preventivo de legalidade".
Em reforço a esses argumentos, Fabrício Motta (2020) destaca que "a autonomia da Advocacia Pública representa não um privilégio corporativo, mas uma exigência da boa governança e da tutela do interesse público primário". Já Odete Medauar (2014) ressalta que "a vinculação direta ao Chefe do Executivo pode comprometer a imparcialidade da atuação consultiva e contenciosa do ente público".
No plano jurisprudencial, destaca-se o julgamento do Supremo Tribunal Federal no RE 1.140.005/GO (Tema 1.059 da repercussão geral), em que se reafirmou a natureza técnica e vinculante dos pareceres jurídicos emitidos pelas procuradorias, mas também se reconheceu que, sem a devida autonomia, esses pareceres ficam sujeitos a pressões indevidas, o que compromete a legalidade dos atos administrativos.
Dessa forma, a concessão de autonomia plena à Advocacia Pública representa uma medida de fortalecimento institucional, imprescindível à simetria entre as funções essenciais à justiça e à consolidação do modelo de Estado policêntrico estabelecido pela Constituição de 1988.
Considerações Finais
O Estado brasileiro deve ser compreendido como uma entidade complexa e multifacetada, na qual diferentes órgãos e poderes exercem funções complementares e fiscalizatórias. A Teoria do Bicho de Sete Cabeças oferece uma chave de leitura original para a articulação institucional do Estado policêntrico e destaca a necessidade urgente de garantir autonomia plena à Advocacia Pública, última cabeça ainda em formação.
Referências
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
BEALE, Gregory K. The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text. Grand Rapids: Eerdmans, 1999.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2023. HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
METZGER, Bruce M. Breaking the Code: Understanding the Book of Revelation. Nashville: Abingdon Press, 2000.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. Advocacia Pública e Interesse Público Primário. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.