O sistema brasileiro de precedentes e a coisa julgada nas relações tributárias de trato continuado à luz do direito como integridade

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04/04/2025 às 14:33
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INTRODUÇÃO

Há muito tempo se debatem soluções para a nossa “jurisprudência lotérica”, vicissitude caracterizada pela falta de segurança jurídica (previsibilidade) das decisões judiciais, tão intensa no Brasil.

Ninguém contesta a gravidade desse problema. Um sistema sem segurança não faz Justiça, não atende às exigências mínimas justificadoras de um ordenamento jurídico e de um sistema judicial de asseguramento das normas.

Contra essa “chaga” criaram-se súmulas, súmulas vinculantes, vinculação do controle abstrato da constitucionalidade e, mais recentemente, o Novo CPC/2015, que já não é mais novo, que trouxe, na lei, uma intricada e complexa sistemática concebida como “sistema de precedentes obrigatórios”. Não se parou nessa etapa, que continua sendo maturada, evoluindo cada vez mais, com a concepção da “objetivação do controle difuso” da constitucionalidade e as famosas “Teses” das Cortes Superiores.

A suposta criação de um “sistema de precedentes” ou “sistema de criação de teses judiciais” é defendida com entusiasmo, chegando ao ponto de se falar em stare decisis ou de um Common Law à brasileira.

O nascedouro é propiciado por um paradigma de criação do Direito pelo julgador, que impinge críticas veementes ao ultrapassado juiz “boca da lei”. Amparado pelo “neoconstitucionalismo” ou constitucionalismo contemporâneo, marcado pela abertura de normas constitucionais e a supremacia constitucional, o Poder Judiciário se fortaleceu, ganhou destaque, sendo importante protagonista da arena política, algo inimaginável em outras épocas.

A razoável duração do processo estava ali, pronta para dar um “empurrãozinho” embalado pelas promessas dessa nova perspectiva. Com uma centralização e uniformização vinculante pelas Cortes Superiores, resolver-se-ia essa “jurisprudência lotérica” em julgamento de causas repetitivas, dando um saldo na efetividade quantitativa da prestação jurisdicional.

Coroando esse modo de ver, entendeu-se que as decisões do STF modificam o Direito e devem funcionar de forma semelhante às leis. De acordo com as Teses 881 e 885 do STF, mesmo diante da coisa julgada em matéria tributária, quando se refiram às relações jurídicas de trato continuado, fazem cessar a sua eficácia, como se uma lei nova houvesse sido editada e modificasse o regime normativo.

No entanto, as coisas não são bem assim. É preciso caminhar pela espuma e pela fumaça, até encontrar o verdadeiro problema, ajustas o remédio para que não se destrua o paciente juntamente com a doença.

A aposta em um Leviatã hermenêutico não nos parece o melhor caminho. A autoridade dos precedentes determinada pela lei também não. Na democracia contemporânea, podemos mais do que confiar numa autoridade onipotente que põe a norma segundo a sua vontade e a modifica igualmente.

O objetivo do presente estudo é examinar mais de perto o sistema de precedentes criado pelo CPC/2015, que no fundo reflete um novo papel das decisões das Cortes de Vértice para, ao final, apresentarmos nossa posição acerca da cessação da eficácia da coisa julgada em relações de trato sucessivo em razão de entendimento firmado pelas Cortes Superiores posteriormente ao trânsito em julgado.

A abordagem será eminentemente teórica, crítica e reflexiva. O propósito do estudo não é identificar a jurisprudência a respeito do tema, nem o entendimento majoritário, mas sim construir um entendimento sobre o assunto e tomar uma posição sobre ele, com a independência que um discurso teórico deve possuir.

Não temos pretensão de exaurir o assunto, mas ficaremos satisfeitos se, de alguma forma, pudermos lançar luzes sobre esse intrincado problema.


SISTEMAS DE PRECEDENTES DO CPC/2015 E AS TESES JUDICIAIS

O presente capítulo tem por objetivo analisar o que são precedentes judiciais, sua justificativa e embasamento teórico para, com isso, confrontá-lo com o chamado “sistema de precedentes” inaugurado com o CPC/2015, de modo a verificar em que medida as “Teses” das Cortes de Vértice se caracterizam como precedentes.

Com base nessa premissa, procederemos à análise crítica dos reflexos produzidos por esse mecanismo, tanto com relação ao problema que se propõe resolver, como face aos vetores axiológicos do Estado Democrático de Direito.

Ao final, firmaremos nossa conclusão sobre o papel de referidos enunciados, enquanto reflexos do entendimento das Cortes de Vértice, sobre o ordenamento jurídico.

Natureza jurídica dos precedentes judiciais

O termo “precedente”, no léxico, é aquilo que precede ou vem antes. De acordo com DIDIER JR.1 o precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.

O precedente judicial encontra fundamento no princípio da igualdade, pois se os casos possuem relação de similaridade, especialmente quando a razão jurídica seja igualmente condutora ao mesmo raciocínio, devem ser julgados de forma uniforme.

No entanto, é preciso analisar como a decisão judicial para aferir o que conforma o precedente para a finalidade que estudamos.

Segundo uma perspectiva, a sentença é ato jurídico do qual decorre uma norma jurídica individualizada, que se diferencia das demais normas jurídicas em razão da possibilidade de tornar-se indiscutível pela coisa julgada. No processo de “positivação” do ordenamento, o juiz partirá nos enunciados abstratos e genéricos da lei para, no caso concreto, individualizar o comando particular que regerá determinada situação da vida, que terá cogência e autorizará a imposição forçada daquela conclusão dotada do poder de império estatal (judgement).

Como analisaremos melhor oportunamente, o juiz “boca da lei” que, pura e simplesmente, faz subsunção à lei não serve. Mesmo porque aqueles enunciados legais precisam de interpretação (norma não se confunde com enunciado prescritivo), e o julgador terá uma postura mais ativa, necessitando compreender o caso concreto e construir a norma geral e abstrata que permitirá o deslinde do litígio sob apreciação, devendo fazer o controle de constitucionalidade e a filtragem constitucional quando da interpretação dos enunciados legais.

De acordo com essa perspectiva, o julgador constrói (não cria) uma norma jurídica que vai servir de fundamento jurídico para decisão a ser tomada na parte dispositiva do pronunciamento. Essa parte dispositiva é a norma individualizada e cogente que regerá o caso concreto, enquanto aquela outra construída a partir dos enunciados legais representará a ratio decidendi que, inobstante construída diante de um caso concreto, conterá sua legal reasoning, que é o raciocínio lógico-jurídico que permite que funcione como precedente judicial em outras situações.

Importante destacar que os fatos concretos que ensejaram o precedente têm um papel fundamental na compreensão de seu alcance e aplicação. O raciocínio de cotejamento entre o caso futuro que invoca o precedente jamais poderá prescindir deles. Então, os denominados statement of material facts não podem ser descartados como se não tivessem utilidade, como comumente ocorre na prática forense e é denunciado por enunciados de súmulas, vinculantes ou não, e as “Teses das Cortes de Vértice”.

DIDIER JR. traz lição interessante sobre esse assunto:

Perceba, então, que a normatividade da decisão jurisdicional revela-se em duas dimensões: cria-se a regra jurídica do caso concreto (extraível da conclusão da decisão) e a regra jurídica que servirá de modelo normativa para solução dos casos futuros semelhantes àquele (que se extrai da fundamentação da decisão).

O processo jurisdicional, como espécie de processo, é também um meio de produção de norma jurídica. Sucede que ele não produz apenas a norma jurídica do caso concreto, como se costumava imaginar. O processo jurisdicional também serve como modo de produção da norma jurídica geral construída a partir do exame de um caso concreto, que serve como padrão decisório para a solução de casos futuros semelhantes, O estudo do processo jurisdicional não pode prescindir dessa constatação. A disciplina jurídica do processo deve sempre levar em conta que são dois os produtos normativos que podem advir de uma decisão judicial.

Note, ainda, que a criatividade jurisdicional desenvolve-se dentro de dois limites.

O órgão julgador limta-se, por um lado, pelos enunciados normativos do direito objetivo (Constituição, leis, regulamentos etc.) e, por outro, pelo caso concreto que lhe foi submetido. Não pode ir além do caso – decidir fora do que foi pedido – nem decidir fora do Direito objetivo – dar uma solução que seja contrária do Direito. Estes são os extremos daquilo que pode ser chamado de “zona ou área da criatividade jurisdicional”.2

Nesse contexto, o precedente possui as circunstâncias de fato que embasaram a decisão, o princípio jurídico assentado na motivação e a argumentação jurídica em torno da questão. Ao ser invocado em casos futuros, utiliza-se a ratio decidendi, que é a construção hermenêutica sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi. Trata-se exatamente de uma ratio, ou seja, uma “razão jurídica”. Em outras palavras, é a essência jurídica suficiente para decidir o caso concreto, que sempre estará na fundamentação.

No caso futuro, é preciso decompor julgado anterior que servirá de precedente, para separar a ratio decidendi das considerações periféricas, chamadas obiter dicta. Os obiter dicta são argumentos de passagem, de mero reforço, deliberações marginais que não dizem respeito à questão principal a ser decidida

MARCELO SOUZA observa que, na doutrina do stare decisis, embora seja comum se referir à observância do precedente, “na verdade, o que as cortes estão obrigadas a seguir, é a ratio decidendi deste precedente” 3. Desse modo, embora o precedente seja extraído da decisão, é inconfundível com ela. Eles são razões generalizáveis que podem ser identificadas a partir das decisões judiciais4.

A razão que compõem o “coração” do precedente, passível de ser invocada em julgamento futuro, é conformada pelo statment of material facts, legal reasoning e o judgement, podendo, a depender do caso, espraiar-se por todas as partes do ato decisório. Como nos diz LUCAS BURIL MACÊDO “o precedente judicial abarca toda a decisão – relatório, fundamentação e dispositivo –, não discriminando as parcelas mais importantes para a concretização do direito”5.

Destarte, mesmo que se diga que o CPC/2015 inaugurou um sistema de precedentes, é preciso ter cuidado. Precedentes existem desde que existiu a primeira decisão judicial. A formação do precedente é inerente à existência de decisões judiciais exaradas em uma comunidade que lhe atribua uma noção de aplicação da Justiça que, necessariamente, vem intrinsecamente ligada à ideia de igualdade de tratamento.

Portanto, como diz RODRIGO RAMINA DE LUCCA, independente do momento histórico, do local e mesmo do sistema jurídico ao qual se submete, o conceito de precedente é, invariavelmente, o mesmo. “Seja no Brasil, na França ou na Inglaterra, devem ser consideradas precedentes as decisões que, contendo razões jurídicas universais, válidas para todos os casos análogos ao que foi julgado, tenham aptidão para influenciar os julgamentos subsequentes”6.

Insta registar que precedente não se confunde com jurisprudência, que consubstancia num corpo de decisões sobre determinadas questões em um determinado sentido uniforme. Necessariamente envolve uma pluralidade de decisões.

Ementa também não é precedente, já que não é capaz de traduzir toda aptidão normativa que existe no precedente. As ementas são apenas resumos, com função catalográfica, incapazes de representar a ratio decidendi.

Da mesma maneira, súmulas não são precedentes, mas enunciados editados pelas Cortes que são dirigidos a indicar seu entendimento uniforme sobre determinado assunto. Seu processo de criação e aplicação é absolutamente diferente dos precedentes. Por sua natureza intrínseca, os enunciados de súmula partem da abstrativização dos fatos, funcionando como se fosse uma regra positivada.

Ao contrário, o precedente opera por meio de método analógico, onde se examina a unidade fático-jurídica do caso-precedente com o caso-julgamento para fins de reconstrução da norma jurídica generalizável e que funcionará como vetor normativo no estabelecimento de padrão de conduta exigível7. Ao fim e ao cabo, precedente é um fato, notadamente um ato-fato jurídico, por ser um ato humano que produz efeitos jurídicos independentemente da vontade de quem o pratica. O tratamento desse fato é que varia conforme a cultura jurídica de um povo e seu ordenamento jurídico.

Ademais, somente diante de novos casos é que será possível estabelecer, contingencialmente, em que medida o caso passado será um precedente e, portanto, vinculará o caso sob julgamento. Além disso, somente no caso novo, sob julgamento, será possível aferir o que é ratio decidendi e o que é obiter dictum, pois nunca será possível termos respostas antes das perguntas.

A genuína ratio decidendi vai se estabelecendo e aclarando com o devir interpretativo diante dos casos futuros quando o precedente passa a ser aplicado, não sendo imposta pelo tribunal que prolatou a primeira decisão, sendo estruturada pelo labor dos casuísticos e das demais instâncias judiciais. Assim, um precedente não nasce precedente, ele se torna um.

O que vem sendo chamado de “sistema de precedentes” brasileiro difere muito, em muitos aspectos, do que é precedente em sua essência. É o que passamos a analisar.

Sistema de “precedentes” do CPC/2015

O art. 926. do CPC inicia dizendo que “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

A estabilidade é diferente da integridade e da coerência. A estabilidade é um conceito autorreferente, que tem relação direta com decisões anteriores, ao passo que a integridade e coerência possuem um substrato ético-político, possuindo consciência histórica e considerando a facticidade do caso.

DWORKIN8 via o Direito como integridade. Com a premissa de que as pessoas conformam uma comunidade política genuína quando concebem que suas vidas estão conectadas por princípios comuns, não somente por regras postas, o jusfilósofo defende que o Direito, como produto dessa sociedade, é igualmente integridade, fundado na concepção de que os direitos são amparados por princípios que proveem a melhor justificação da prática jurídica como um todo, universalmente

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O dispositivo caminha por uma região que está acima do ordenamento jurídico, seara da Teoria Geral do Direito. Isso porque o sistema judicial deve prezar pela estabilidade das decisões como consequência da segurança jurídica, independentemente de uma prescrição normativa nesse sentido. A coerência igualmente está na ideia de racionalidade, afastando o caos da ilogicidade provocada por conceitos e premissas que não se compatibilizam. Já a integridade pode ser concebida como uma posição que enxerga a decisão judicial numa perspectiva substancial de construção da decisão correta.

Todos esses pontos não deveriam necessitar de um mandamento normativo, bastando que os direitos sejam levados à sério. Mas a realidade demonstra que não é isso que acontece. Vemos no dispositivo uma intenção de modificar a própria cultura jurídica do país. Agora temos uma prescrição normativa cogente, num típico exemplo do civil law, de escrever em enunciados normativos algo que já deveria decorrer da própria noção de Direito e da responsabilidade daqueles que atuam na área jurídica, especialmente dos juízes, que são responsáveis pelas regras do jogo.

A integridade difere um pouco nesse raciocínio, pois é apenas um dos vários modos de se enxergar o problema. Existem teorias procedimentalistas, o realismo jurídico, a ação comunicativa que são outras opções acerca do modo de ver o Direito e a decisão judicial, ao lado da integridade. Não é tarefa do legislador dizer que o ordenamento jurídico seguira a lógica da integridade dworkiniana, pois essas questões estão acima dele. É o conteúdo querendo traçar como deve ser aquilo que o contém.

Os precedentes valem por sua própria autoridade, devendo ser seguidos pelos juízes em razão de sua própria responsabilidade enquanto julgador. Contudo, não é exatamente isso que acontecia na prática em terrae brasilis. A jurisprudência lotérica deixava o cidadão sem critérios de orientação jurídica e a noção de demanda judicial como algo incerto era algo já conhecido dos brasileiros.

Em grande parte, esse problema vem de longa data causado pela noção de atividade jurisdicional como de livre convencimento motivado, fruto de uma ótica equivocada da independência judicial. A este respeito, STRECK nos ensina:

Livre convencimento, no âmbito das práticas jurídicas, implica também a relação pretensamente livre que se estabelece entre o juiz e a interpretação do “Direito”. Baseia-se numa concepção equivocada acerca do que seja a independência do Poder Judiciário – que, na raiz, possui relação com o descolamento da função jurisdicional das prerrogativas do Soberano – apresentando-a como liberdade de amarras interpretativas que permitiriam aos juízes construir o sentido do direito que se adaptasse melhor ao seu conjunto pessoal de afetos (o livre convencimento tem uma íntima relação com o elemento vontade) bem como de seu monadológico julgamento “racional”.

...

A despeito disso, as práticas jurídicas – sob o manto do livre convencimento – parecem navegar em meio a um imaginário que entrelaça a ideia de independência dos juízes com um manifesto de liberdade de interpretação do Direito que se revela na superfície da lida cotidiana nas expressões “decido conforme minha consciência”; “primeiro decido, depois fundamento”; “sou livre para interpretar a lei dentro da autoridade de minha jurisdição”, etc.9

Em outra obra, as palavras do jusfilósofo são certeiras:

o problema da atribuição de sentido para a consciência é apostar, em plena era do predomínio da linguagem, no individualismo do sujeito que “constrói” o seu próprio objeto de conhecimento. Pensar assim é acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles (Blackburn).

Isso, aliás, tornou-se lugar comum no âmbito do imaginário dos juristas. Com efeito, essa problemática aparece explícita ou implicitamente. Por exemplo, em artigos, livros, entrevistas ou julgamentos, os juízes (singularmente ou por intermédio de acórdãos nos Tribunais) deixam “claro” que estão julgando “de acordo com a sua consciência” ou “seu entendimento pessoal sobre o sentido da lei”. Em outras circunstâncias, essa questão aparece devidamente teorizada sob o manto do poder discricionário dos juízes.10

O julgador não pode se arvorar em criador do direito segundo sua vontade. Mesmo nos meandros da lei, existe vários dados que deve considerar para chegar à solução justa para o caso concreto.

No caldo dessa cultura jurídica de um juiz solipsista, que segue o precedente quando concorda com ele, muito também se deve à postura das Cortes Superiores, que em muitos casos inserem suas concepções políticas que fogem da relação de ressonância que precisa existir entre as decisões que formam os precedentes e o Direito.

Por mais que existam hard cases e a correção substancial do conteúdo das decisões seja difícil de se precisar, o julgador deve ter presente que o Direito lhe é externo e precisa ser observado. Até mesmo um positivista com o HART reconhece o descompasse que pode existir entre decisão judicial e Direito:

Podemos distinguir um jogo normal de um jogo de “discricionariedade do marcador” simplesmente porque a regra de pontuação tenha, como outras regras, a sua área de textura aberta em que o marcador deve exercer uma escolha, possui contudo um núcleo de significado estabelecido. É este núcleo que o marcador não é livre de afastar-se e que, enquanto se mantém, constitui o padrão de pontuação correcta e incorrecta, quer para o jogador, ao fazer as suas declarações não-oficiais quanto ao resultado, quer para o marcador nas suas determinações oficiais. É isto que torna verdadeiro dizer que as determinações do marcador não são infalíveis, embora sejam definitivas. O mesmo é verdade quanto ao direito.

[...]

(...) mas há um limite quanto à medida em que a tolerância face às decisões incorrectas é compatível com a existência continuada do mesmo jogo e isto tem uma importante analogia jurídica. O facto de as aberrações oficiais isoladas ou excepcionais serem toleradas não significa que o jogo de críquete ou de basebol já não esteja a jogar-se. Por outro lado, se estas aberrações forem frequentes ou se o marcador repudiar a regra da pontuação, há-de chegar um ponto em que, ou os jogadores não aceitam já as determinações aberrantes do marcador ou, se o fazem, o jogo vem a alterar-se; já não é críquete ou basebol mas “discricionariedade do marcador”; porque um aspecto definidor destes outros jogos é que, em geral, os seus resultados sejam determinados da forma exigida pelo significado simples da regra, seja qual for a latitude que a sua textura aberta possa deixar ao marcador11.

Na realidade, quando o cidadão vai ao Judiciário, não busca pedir a opinião pessoal do juiz, mas quer que ele diga o que o Direito tem a dizer12. Isso não significa que o juiz seja a mera “boca da lei”, como estudaremos oportunamente, mas que o voluntarismo deve passar longe da decisão judicial.

Nesse contexto, que comumente fazia surgir decisões díspares sobre o mesmo assunto, que oscilavam de entendimento em um tempo curto e que não tinham a correção substancial esperada, provocava o desprestígio do precedente, deteriorava a autoridade das Cortes Superiores (muito por responsabilidade delas próprias) e criava a “jurisprudência lotérica”, com todos efeitos nefastos que disso decorre, incluindo as causas repetitivas que nem sempre tinham o mesmo desfecho.

A observância aos precedentes poderia ser cultural, tornando desnecessário qualquer tipo de comando legal que determine sua observância, mas foram tantos os problemas, inclusive a ausência de estabilidade e coerência da jurisprudência das Cortes Superiores que, ao contrário do respeito decorrente da autorresponsabilidade do julgador, teve quer ser construído um sistema de observância legalmente determinada, com vários mecanismos para assegurá-la.

O CPC/2015 previu:

Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.

Olvidou-se das súmulas dos tribunais locais e regionais, que possuem certo grau de eficácia. O art. 955, parágrafo único, autoriza o julgamento unipessoal de conflito de competência quando a decisão se fundamentar em súmula do próprio tribunal, bem como o art. 332, IV, CPC, coloca a súmula de tribunal de justiça sobre direito local como causa autorizativa da improcedência liminar do pedido.

O microssistema de precedentes obrigatórios trouxe vários efeitos. DIDIER JR13. aponta seis tipos de efeitos jurídicos para os respectivos tipos de precedentes: a) vinculante/obrigatório; b) persuasivo; c) obstativo da revisão de decisões; d) autorizante; e) rescindente/deseficacizante e f) revisão de sentença.

O precedente vinculante/obrigatório (binding precedent) obriga que decisões posteriores adotem a mesma tese jurídica em sua fundamentação. Estão elencados no supratranscrito art. 927. do CPC. Essa categoria de precedentes possui os efeitos mais intensos, abrangendo os efeitos dos demais tipos de “precedentes”.

O art. 1.022, parágrafo único, CPC, considera omissa a decisão que “deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento”. Na mesma medida, o art. 489, § 1º, CPC, exige que o juiz demonstre a existência de distinção (distinguishing) quando deixar de seguir súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, e, alternativamente, deve demonstrar a superação do entendimento (overruling). O inverso também se aplica. Caso aplique um precedente ou súmula, deverá identificar seus fundamentos determinantes e demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

Importante destacar que várias prescrições acerca da eficácia dos precedentes obrigatórios (binding precedent) irão exigir interpretação extensiva decorrente da construção de um microssistema de formação de precedentes obrigatórios. Logo, embora o art. 489, § 1º, só aponte expressamente súmula, jurisprudência ou precedente, necessariamente abrange todos os atos-fatos jurídicos indicados no art. 927. Por exemplo, decisões do STF em controle concentrado não estão explicitados, mas igualmente se sujeitam à necessidade do distinguishing, da necessidade de enfrentamento e da motivação adequada para sua aplicação.

O precedente persuasivo (persuasive precedent) não tem eficácia vinculante. Nenhum juiz está obrigado a segui-lo, mas o observará quando convencido de sua correção. DIDIER JR.14 o descreve como possuindo eficácia mínima de todo precedente, mas que possui efeitos em determinadas situações legalmente previstas, a exemplo da admissão de recursos cujo objetivo é uniformizar a jurisprudência, tais como os embargos de divergência e o recurso especial fundado em divergência.

No mínimo, é inusitada a existência de precedentes que o juiz segue se convencido de que é bom. O contorno do microssistema dessa forma delineado, faz parecer que o precedente só vale quando a lei diz que deve ser observado, quando o adequado é que toda decisão judicial forme precedente, que seja observado em casos posteriores pela justiça da decisão e higidez de sua legal reasoning. Reservaremos as críticas ao tópico específico. Nesse momento, o objetivo é descrever o sistema de “precedentes” brasileiro.

Alguns precedentes têm o condão de obstar a revisão de decisões judiciais por recurso ou remessa necessária, bem como obstar nova demanda que pretende não segui-lo. O mecanismo criado para assegurar esse objetivo consiste em não admitir a demanda, recurso ou remessa necessária, bem como negar, no mérito e de plano, a postulação.

Por exemplo, o art. 496, § 4º, CPC, dispensa a remessa necessária quando a sentença estiver fundada em súmula de tribunal superior, casos repetitivos julgados pelo STF/STJ ou IRDR/IAC. Por sua vez, o art. 932, IV, autoriza que o relator, monocraticamente negue provimento a recurso que for contrário a súmula do STF/STJ ou do próprio tribunal, recursos repetitivos do STF/STJ ou IRDR/IAC. O art. 332, CPC, determina a improcedência liminar do pedido que contrariar súmula do STF/STJ, recursos repetitivos ou súmula do tribunal de justiça sobre direito local. Além disso, o julgamento dos casos repetitivos conduz à inadmissão dos demais recursos sobrestados na origem quando o acórdão recorrido coincidir com o entendimento firmado (art. 1.040, I, CPC).

Outro efeito erigido pelo CPC para alguns precedentes é o autorizante, que determina o acolhimento da pretensão. Por exemplo, casos repetitivos e súmula vinculante autorizam a tutela de evidência (art. 311, II); assim como súmulas do STF/STJ, casos repetitivos e IRDR/IAC autorizam o provimento monocrático de recurso quando a decisão recorrida contrariá-los; a repercussão geral, para fins de recurso extraordinário, considera-se presente quando o acórdão contrariar súmula ou jurisprudência dominante do STF.

Também existe o drástico efeito rescindente ou deseficacizante de alguns precedentes. O art. 525. e 535, CPC, estabelecem a inexigibilidade obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. Isso acontece quando o precedente é anterior à decisão. Quando for posterior, autoriza-se a ação rescisória.

Por fim, indica-se a possibilidade de o precedente autorizar a revisão da coisa julgada com relação a relações jurídica de trato sucessivo, exatamente o ponto principal que pretendemos tratar no presente estudo (art. 505, I, CPC). Sob essa peculiar ótica, um precedente o STF poderia autorizar a revisão, ex nunc, da sentença que regulasse uma relação jurídico-tributária que seja de trato continuado.

Nesse contexto, criou-se todo um mecanismo que visa a promover o respeito aos “precedentes” indicados pelo art. 927, CPC, notadamente com relação aqueles oriundo dos órgãos superiores. MARINONI e MITIDIERO15 anotam que apenas o STJ e o STF produzem julgados que possuem ratio decidendi vinculativa aos demais órgãos julgadores, porque são cortes de vértice, de modo que o julgamento por elas proferido representaria uma vinculação inafastável à questão de direito resolvida aos demais membros do Poder Judiciário no território nacional. 16MIRANDA discorda, apontando que Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais também formam padrões decisórios universalizantes em sua respectiva esfera de competência, desde que não conflitante com aqueles.

Efetivamente, há um mandamento inserto no art. 927. (“observarão”) dirigido a alguns atos-fato que remetem a precedentes. Tanto o julgamento de recursos repetitivos, que essencialmente são precedentes, quanto a súmulas, decisões em controle concentrado de constitucionalidade e IRDR/IAC, que indiretamente remetem a precedentes, mas que são inconfundíveis com eles.

As “Teses Jurídicas” das Cortes Superiores

Atualmente, nenhum profissional da área jurídica pode prescindir do conhecimento, exame e compreensão das “Teses Jurídicas”. O banco de teses do STF já conta com 1.373, enquanto no STJ já estamos na Tese nº 1.315, entre já decididas e não decididas. Em muitos casos, são aplicadas pelos demais juízes de forma praticamente automática, quando não são equivocadamente aplicadas a caso distinto pela falha em proceder ao distinghishing.

O art. 927. do CPC não fala em teses jurídicas, e a prática de sua utilização acrítica, sem atentar ao precedente, é preocupante. Se há uma “commomlawcização”, mesmo em alguma medida, o exercício silogístico e reducionista através de textos de enunciados direcionados a veicular padrões de conduta normativos deve também se alterar.

O termo “teses” é previsto no CPC nos arts. 12, II; 311, II; 927, § 2º e § 4º; 947, § 3º; 955, parágrafo único, II; 976, § 4º; 978, parágrafo único; 979, § 2º; 984, § 2º; 985; 986; 987, § 2º; 988, § 4º; 1.022, parágrafo único, I; 1.038, § 3º; 1.039; 1.040, III e IV; 1.043, § 1º; referindo aos casos dos recursos repetitivos, IAC, IRDR, súmula vinculante, omissão para fins de embargos de declaração e embargos de divergência. O diploma legal prevê a aplicação dessas teses jurídicas, conforme se vê, exemplificativamente, no dispositivo seguinte:

Art. 1.039. Decididos os recursos afetados, os órgãos colegiados declararão prejudicados os demais recursos versando sobre idêntica controvérsia ou os decidirão aplicando a tese firmada.

De qualquer forma, não existe tese autônoma, descolada de casos concretos, principalmente em país legicentrista de tradição romano-germânica como o nosso. A correta interpretação das teses passa pelo art. 489, § 1º, V, CPC, que prescreve que não se considera fundamentada a decisão que “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”. Ora, se é necessário demonstrar os fundamentos determinantes, é porque é preciso identificar a ratio decidendi dos casos concretos que servem como precedentes.

Passa-se a falar mais das teses do que da lei e da Constituição. O próprio ensino jurídico brasileiro parece seguir nesse sentido, lecionando a partir da jurisprudência como se estivéssemos em um país da tradição do commom law. Não há nenhum problema em uma tradição jurídica se aproximar de outra, na mudança natural da vida da sociedade. O problema é que se importam alguns elementos, mas não outros; se admite maior criatividade judicial, mas pouco se fala em responsabilidade judicial por essa criação. O “decido conforme minha consciência” permanece enraizado na cultura jurídica e, em um sistema de tese de Cortes de Vértice, ele é um problema ainda maior quando os membros desses tribunais se enxergam como último bastião da juridicidade ou como editores da sociedade. Esse tipo de sistema de precedente não se compatibiliza com esse tipo de cultura jurídica.

Como observa FERRAZ17, a tese jurídica que é retirada ao final dos julgamentos modelos tem a pretensão de formar um preceito normativo genérico e abstrato, semelhante a lei, com a perspectiva de aplicabilidade aos casos semelhantes em que discutida mesma questão fático-jurídica. Sobre o tema, explica:

A enunciação de teses que não trazem referência aos seus fundamentos determinantes, entretanto, convida as demais instâncias a reconhecer vinculação apenas à norma enunciada e não à ratio decidendi dos jugamentos. E por mais que o direito brasileiro seja centrado na lei, e que a tese da inseparabilidade absoluta entre questão de fato e de direito não se sustente, a adoção de um sistema de respeito aos precedentes demanda atribuir maior valor à motivação das decisões, como elemento-chave para sua aplicabilidade, o que exige percorrer os fatos que originaram o julgamento paradigma.18

Claro que o sistema de precedente se dirige, em grande medida, à gestão de casos repetitivo, o seu sustentáculo maior é realmente a efetividade quantitativa.

O precedente não entrega prontamente qualquer regra jurídica. O comando normativo precisa ser extraído dele e o seu conteúdo compreendido à luz do caso que já foi julgado. Não existe nenhuma autorização para que os tribunais legislem, de modo que esses enunciados, seja de súmulas ou teses, não valem por si só, mas pelo caso julgado. Eles não vinculam, o que é vinculante é o precedente, sua ratio decidendi. No common law, precedentes não são construídos para, a partir de teses, vincular julgamentos futuros.

Assim, as teses jurídicas são instrumentos relevantes se adequadamente tratadas e aplicadas. Não são um fim em si mesmo, nem autorizam sua utilização da mesma forma que o texto legal, devendo apenas dar publicidade ao precedente, mas conduzir que esse é que deve ser analisado. As teses jurídicas raramente têm aptidão para apontar, com clareza e coerência, o fundamento determinante adotado para solver a questão controvertida.

Podemos concluir que: a) as teses jurídicas não devem ser compreendidas diante do reducionismo exegético de modo que funcionem como texto de lei, operando através de raciocínio dedutivo, por subsunção, mas sim mediante compreensão da ratio decidendi do respectivo precedente; b) não devem ser tomadas como enunciado de norma abstrata e geral, como é feito para aplicar uma lei, sendo necessário que sejam analisadas conforme o precedente no qual elas foram editadas; c) não são, necessariamente, a ratio decidendi do precedente, ainda que possa facilitar ou conduzir à ele. O valor vinculante do precedente não está na tese, mas nas razões substanciais fundamentais à solução do caso já julgado.

Assim, não é possível embaralhar as “teses” que vem sendo extratificada nos julgamentos finais dos tribunais superiores com o precedente. Como diz STRECK “Julgar precedente não é sinônimo de julgamento de tese; há que ficar clara a diferença entre precedente e tese; não podem ser a mesma coisa”.19

Análise crítica

A evolução do sistema de justiça brasileiro conduz, cada vez mais, ao agigantamento dos tribunais de sobreposição. Além do fortalecimento do Poder Judiciário pela supremacia de uma Constituição com cláusulas gerais, com controle de constitucionalidade e reconhecida criatividade judicial, ao longo do tempo foram estatuídos diversos poderes para as Cortes Superiores, e o sistema de precedentes vinculante é um exemplo perfeito disso.

O respeito aos precedentes, notadamente das Cortes Superiores, é desejável. O problema que enxergamos é o modo de se chegar a esse resultado: imposição legal. Determina-se, por lei, que essas decisões sejam observadas por todos juízes, independentemente de seu conteúdo ou da justiça da decisão. Há grande problema nisso e um viés de autoritarismo interpretativo.

O precedente passa a valer e ser observado em razão da sua origem. Em outras palavras, da mera autoridade que a legislação atribuiu aos tribunais superiores, sem qualquer preocupação com a legitimidade de referidas decisões. O que deveria existir é o seguimento espontâneo desses precedentes, diante do senso de autorresponsabilidade dos juízes e da adequada compreensão de seu papel. No entanto, como estamos em terras do “decido conforme minha consciência”, o caminho foi determinar que sejam observados, mas se esquece que as Cotes Superiores continuam seguindo o mesmo caminho, sem preocupação com a estabilidade, coerência e integridade. Sem qualquer preocupação qualitativa com as decisões, os precedentes serão seguidos porque exarados pela autoridade que a lei previu, sem mais.

Ademais, em nenhum país do mundo em que o precedente faz parte de sua tradição jurídica é necessário que a lei imponha um sistema de vinculação, definindo o que é precedente e impedindo “atos de rebeldia” frente à sua autoridade. BORGES MOTTA diz que “mesmo no common law os precedentes não têm força de promulgação. O juiz deve limitar o campo gravitacional das decisões anteriores à extensão dos argumentos de princípio que foram necessários para justifica-las”.20

Se pode falar em força do precedente entendendo que esta possa ser maior ou menor segundo os casos, de modo que se terá um precedente forte quando possua a capacidade de determinar efetivamente a decisão de casos sucessivos, e um precedente débil quando os juízes sucessivos tendam a não lhe reconhecer um grau relevante de influência sobre suas decisões. O que vai além disso incorre no perigo do “juiz-legislador” ao se permitir uma eficácia formalmente vinculante às decisões judiciais, equiparando-as à atividade legislativa.

Sobre o problema, STECK verbera:

Querem transformar o nosso Direito em um “sistema” de precedentes e teses. O Ministro Luís Barroso, do STF, é entusiasta das “teses”. Como se precedente fosse uma tese ou uma tese fosse igual a um precedente. Na verdade, por trás disso, há uma tese, consciente ou inconsciente, de cunho realista: querem substituir o Direito posto (leis, Constituição Federal) por teses feitas pelas Cortes Superiores. Ou “decretar” – como fez o ministro Edson Fachin no RE 655.265 – que já vivemos, com o novo CPC, no common law porque adotamos o stare decisis. Resultado: o Direito é aquilo que as Cortes Superiores dizem que é. E as decisões são resultantes de um ato de vontade. É o que sustentam os adeptos da tese de que os tribunais superiores devem ser Tribunais de Precedentes. Ou Cortes de Vértice.21

Concordamos com o jusfilósofo. Diante da falta de racionalidade na aplicação das leis que levou à jurisprudência lotérica, abriu-se o sistema de justiça para um precedentalismo à brasileira: o STF/STJ fixam teses que valerão por sua autoridade e não por seu conteúdo.

O que se busca com isso é uma efetividade quantitativa, eficiência, funcionalidade, mas se esquece que no Direito os fins não justificam os meios, que a funcionalidade não pode se sobrepor à Constituição. Claro que é mais fácil atribuir-se ao mesmo órgão fazer tudo: editar a lei e aplicar a lei. As Cortes de Vértice podem elaborar as respostas pré-interpretadas e, com isso, facilitar e dar um saldo de eficiência para os juízes de piso. Contudo, o utilitarismo não pode dar a tônica ao sistema de justiça.

Na verdade, as teses são mera expressão desse agigantamento dos tribunais superiores, cujas decisões faltam freios hermenêuticos. Nenhum juiz constrói leis, nem produz Direito, sem exceção. Nem mesmo o STF ou STJ. Parece claro que a cláusula pétrea da separação de poderes só permite que o Poder Judiciário julgue, mas não que crie o Direito.

Isso não significa que não interpretação na atividade de aplicação do Direito. Ela existe e é construtiva, mas devíamos abandonar o verbo “criar” para designar essa atividade, já que mal compreendido. O juiz não cria o Direito da mesma forma que o parlamento. Não se confunda alhos com bugalhos.

A forma como vem sendo tratado o tema implica uma transição tardia: ao mesmo tempo em que se abandona o juiz “boca da lei”, estamos sendo levados a um realismo de segundo nível, reservado às Cortes de Vértice. Aos demais juízes restará ser um “juiz boca-dos-precedentes”. Depois, o parlamento pode ser dispensado e os juízes terão um papel bem diminuto, dispensados da reflexão ou de juízos de validade, podendo apenas fazer um mero raciocínio subsuntivo entre o caso e a tese22.

Examinando detidamente todo o problema, parece que identificaram mal a doença e aplicaram um remédio apenas para os sintomas, esquecendo-se da verdadeira causa. Provavelmente o problema não será resolvido, ou se algo melhorar, fará surgir outros problemas ainda maiores. O que garante que as Cortes Superiores não farão “precedentes vinculantes” segundo sua vontade, à revelia das leis e da Constituição?

O cerne de tudo está na despreocupação com a decisão judicial e não no sistema ou nas leis. É um problema no modo como se concebe o Direito e se visualiza o papel do julgador e dos profissionais que lidam com a área jurídica, e não um problema do ordenamento jurídico-positivo ou do sistema de justiça. Uma coisa sempre leva à outra, em um círculo vicioso. O os precedentes precisam de uma efetividade qualitativa e a cultura jurídica deve amadurecer para perceber isso.

Boa parte do problema reside em como é encarada a decisão judicial e o papel do juiz, o que passamos a fazer no capítulo que se segue.

Sobre o autor
Ari Timóteo dos Reis Júnior

Procurador da Fazenda Nacional. Ex-Procurador do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito. Especialista em Direito Tributário (IBET). Pós-graduado em Direito Processual Civil. Pós-graduado em Teoria Geral do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica. Professor de Direito Tributário. Autor de livros e artigos na área tributária @ari_timoteo_junior

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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