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TEORIA DA DECISÃO JUDICIAL NO PARADIGMA CONTEMPORÂNEO
Noção de paradigma
A noção de paradigma, no sentido aqui usado, advém da filosofia da ciência de KUHN23, cuja perspectiva historicista leva ao entendimento de que a evolução das ciências não se dá numa espécie de aproximação das descrições científicas com a realidade, mas sim numa mudança de paradigmas24. Os paradigmas consubstanciam modelos teóricos, vigorantes durante um certo tempo na comunidade científica e servem como parâmetro para a aferição dos “problemas” científicos e da sua própria solução25 26. Um paradigma, pois, é aquilo que os membros da comunidade partilham27. Nesse sentido, a revolução científica opera uma verdadeira mudança na concepção de mundo, como se a comunidade científica fosse subitamente transportada para um novo planeta, onde objetos então familiares são vistos sob uma luz diferente28 29.
É possível a reconstrução dos modelos teóricos do Direito a partir do paradigma, que tem duplo aspecto: por um lado, possibilita o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação dos aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões de mundo, consubstanciados, no pano de fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo; por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são validas à medida que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados.30
Como já se disse31, não podemos fincar nossa compreensão de mundo em um modelo que somente reproduz o que foi dito, numa constante reinvenção da roda, repousado em uma razão preguiçosa que se nega a pensar ou evoluir, contentando-nos com uma repetição sem fim. Por outro lado, é, sim, importante e útil termos um suporte em ideias alheias já consolidadas, posto que somente nos concebemos enquanto incluídos num contexto social, cultural, ético, científico etc., contudo, isto não pode implicar na castração a inovações e ousadias positivas, que permitam, talvez, um progresso no modo de viver e de enxergar a sociedade. Neste sentido, a transição paradigmática abre grande espaço para a inovação, a criatividade e a opção moral, o que permite um novo conhecimento que, como nos diz SOUZA SANTOS32 se “assenta num des-pensar do velho conhecimento ainda hegemônico, do conhecimento que não admite a existência de uma crise paradigmática porque se recusa a ver que todas as soluções progressistas e auspiciosas por ele pensadas foram rejeitadas ou tornaram-se inexequíveis”.
Teoria da decisão judicial e análise crítica das Cortes de Vértice
Desde o momento do positivismo primervo do legalismo da Escola da Exegese, de seu fetiche à lei, que propugnava que as respostas à todas questões jurídicas poderiam ser encontradas nos textos legais, que sequer necessitariam de interpretação33, proibindo os juízes de saírem dos limites estritamente gramaticais do texto da lei, muito baseado na mentalidade cartesiana de crença no poder dominador da lei geral e abstrata que consubstanciaria uma razão teorética como expressão da ordem contra o arbítrio, passando pela Escola Histórica do Direito34 e a Jurisprudência dos Conceitos35, em que as respostas decorriam do trabalho dogmático de juristas suficientemente claros para aplicação, o que manifestamente se mostrou equivocado 36 37, chega-se ao séc. XX com o positivismo de HART38 e KELSEN39, que expressamente reconhecem a incerteza/insuficiência da linguagem como causa da discricionariedade.
Nessa evolução, encontramos a alteração do paradigma orientador. O positivismo clássico encontra-se superado a pelo neopositivismo de Kelsen, e a noção de que texto e norma não se equivalem já foi a muito tempo estabelecida. No famoso cap. VIII da Teoria Pura do Direito, Kelsen reconheceu a incapacidade positivista em dar conta das inúmeras possibilidades de aplicação, concluindo que o ato de aplicação da lei pelo juiz é um ato de vontade. Hart não diverge muito, já que os casos não contemplados, situados na “penumbra”, seriam resolvidos mediante o uso de discricionariedade judicial, uma espécie de poder legislativo intersticial; como se determinados casos estivessem resolvidos pelo Direito e outros não.
No pós-positivismo foi denunciado o problema do aguilhão semântico positivista. DWORKIN aponta que teorias positivistas se baseiam na análise da linguagem dos textos legais, consistente em se considerar que o direito se encontra ou deveria ser encontrado nas convenções linguísticas dotadas de força de lei. A pergunta positivista fica reduzida à questão dos diversos significados possíveis de um texto jurídico, não permitindo indagar sobre a influência que as convicções morais do intérprete exercem sore sua interpretação.
No entanto, o Direito não é somente uma questão de interpretação semântica de textos jurídicos. O Direito também é uma questão de convicção moral, uma questão de princípio. As divergências na prática não são apenas empíricas, mas também a respeito dos próprios fundamentos do direito e divergências sobre convicções morais importantes. Portanto, também inclui a justificação adequada e de coerência com convicções morais importantes, de modo que a prática do Direito é uma prática interpretativa.40
Mas há o problema gerado no pós-exegetismo: o que fazer diante da indeterminação provocada pelo descolamento texto-norma? Tentando dar uma resposta para essa questão, existem argumentativistas, interpretativistas, hemeneutas, positivistas de várias matrizes, analíticos etc.
Na verdade, o próprio termo “discricionariedade” é ambíguo. Podem ser identificadas três acepções para o poder discricionário. Em primeiro lugar, pode existir poder discricionário se a decisão se basear em padrões jurídicos a respeito dos quais as pessoas podem interpretar de maneiras diferentes; em um segundo sentido, se dá quando a decisão for definitiva, assim caracterizada quando nenhuma autoridade superior lhe possa rever; em terceiro lugar, haverá poder discricionário quando o conjunto de padrões que lastreiam a decisão, por impor os respectivos deveres, na verdade, não impõe a tomada de uma decisão específica, permitindo uma escolha.41 O juiz pode ter poder discricionário no primeiro e no segundo sentido, mas parece não o possuir no terceiro sentido. Ora, diante de um caso a ser julgado, abrem-se três hipóteses: (a) julgar procedente em favor do autor, (b) improcedente em favor do réu, ou então, que seria permitido (c) escolher qualquer uma dessas decisões. O Direito pode conferir a terceira hipótese, de escolha, tal como ocorre como a discricionariedade administrativa, todavia, isso depende da consideração de todas as informações jurídicas tomadas em conjunto e apenas se verifica na atividade administrativa, dada a sua natureza, mas não na atividade jurisdicional. Se o juiz não está incerto acerca da procedência ou improcedência, deveria decorrer que pudesse escolher qualquer uma das opções, mas não é isso que ocorre, nos casos que se apresentam, o caso é tratado à vista dos padrões normativos que estão obrigados considerar, como uma questão do que os juízes, enquant juizes, estão obrigados a fazer, sendo rejeitada a possibildiade de mera escolha42. Estas diferentes acepções confundem e o correto é entender-se a discricionariedade apenas nesse terceiro sentido, já que as outras tratam de interpretação/apreciação e não de discricionariedade.
Para bem entender isso, é necessário termos em mente que essas premissas fazem sentido a partir do paradigma que entende que interpretação e aplicação estão unidos em um processo unitário, a interpretação só ocorre diante do caso concreto, entre texto e norma há uma diferença ontológica43 e existe a necessidade de adequação do Direito à sociedade. Na verdade, o que comumente se desgina como subsunção encontra dificuldades na constatação de que a apreciação é ínsita à atividade interpretativa que essencialmente constitui o Direito. É preciso uma mudança de perspectiva.
As múltiplas respostas se movem no campo da sintática e da semântica44, como se o direito pudesse ser descrito a partir de sentidos aos quais, posteriormente, se acoplassem fatos. Ao separar interpretação e aplicação se incorre no problema da indeterminação real, pois o texto (tomado em si próprio, como algo diferente do caso concreto) não dá conta de conferir respostas precisas45, na mesma medida em que pautas gerais prévias não funcionam porque inviável conferir respostas antes das perguntas. Por isso, qualquer postura formalista paga o preço de sustentarem uma visão incompleta da realidade jurídica, que apenas resolve casos claros46, representando um desconhecimento da própria essência do Direito. Por outro lado, à luz do caso concreto, é possível construir a melhor solução, a solução justa.
Se é certo que a aplicação-interpretação (applicatio) de conceitos legais não ocorre mediante simples subsunção47, um simples silogismo ou uma mera operação lógico-dedutiva se assim se preferir dizer e, da mesma forma, mesmo que se diga que é impossível à lei predeterminar todas as possibilidades de casos que possam ocorrer no futuro48 (e aqui reside a insuficiência do formalismo positivista), isto não autoriza que se infira, como solução, uma aposta na discricionariedade (possibilidade de escolha) no sentido de que a decisão se daria por um ato de vontade49.
É sintomático observar que a admissão de decisionismos, indeterminações e discricionaridades como inerentes ao fenômeno jurídico funcionou como suporte ao surgimento do movimento realista norte-americano, que passaria a advogar a “desimportância” da dogmática, da lógica, da racionalidade, e sobretudo do papel da lei (que é relegada à segundo plano), identificando o fenômeno jurídico como a prática do Poder Judiciário, segundo a qual o Direito é aquilo que os tribunais dizem que ele é50. Para FRANK.51, um realista considerado extremado, interpretar não é apenas buscar o significado da lei ou da intenção do legislador, mas uma busca de solução por parte do juiz, que acaba em uma criação livre de uma decisão particular.
Não concordamos com essa perspectiva, nem trilhamos o mesmo caminho daqueles que consideram o fenômeno jurídico inevitavelmente indeterminado no sentido de que não dimana um resultado único que exclua os outros. A atividade criativa está presente52, mas ela é guiada para a solução justa ao caso concreto: a solução correta, que não é um mero ato de vontade ou de escolha e a interpretação não consiste apenas na aplicação das “palavras” do texto da lei.
A dicotomia entre determinismo e indeterminismo e a lógica de tudo-ou-nada pela qual perpassam, que segue uma concepção segundo a qual a conduta está ou não totalmente regulamentada previamente pelo ordenamento jurídico, não é a única via possível, existe outro caminho. Não é preciso que se conceba que a resposta esteja no ordenamento necessitando apenas ser encontrada, tal qual um metal precioso a aguardar sua descoberta; nem que se aposte em uma escolha subjetiva em decorrência de um ceticismo injustificado. Na realidade, a resposta é construída no caso concreto, mas sem que seja preciso tomar decisões discricionárias.
Hermeneuticamente, é possível apontar várias teorias que justificam a decisão judicial. A este respeito, citem-se as teorias argumentativas53, bem ilustradas nas palavras de KRELL54 quando diz que “na sindicância da aplicação de conceitos jurídicos indeterminados pelo administrador, o juiz não deve observar se o resultado dessa operação foi correto, mas se foi adequadamente motivado e justificado, tornando-se sustentável”. Observe que isso permite a decisão por uma escolha subjetiva posteriormente justificada mediante os propugnados argumentos racionais que seriam suficientes para sustentá-la55. Tal raciocínio peca justamente em não conseguir evitar a discricionariedade, porque move-se no campo da pragmática, substituindo, quando convém, a própria semântica, ademais, tudo se resume ao proceduralismo-argumentativo que, por ter pretensão corretiva, acaba se substituindo ao próprio Direito.
Por outro lado, temos teorias conteudísticas como o direito como integridade56 57, que entende que os juízes devem buscar a solução que melhor promova a coerência e a consistência do sistema jurídico como um todo, levando em consideração os princípios e valores morais que o sustentam, em uma tarefa hercúlea; nessa medida, a indeterminação de regras jurídicas obriga a recorrer a direitos ou a argumentos principiológicos de modo à construir a melhor solução para o caso concreto, sendo vedado ao juiz lançar mão de seus princípios de sua conduta pessoal, sua própria visão de mundo, etc. No Brasil, STRECK58 desenvolve sua Crítica Hermenêutica do Direito também com uma noção conteudística na construção da tese da resposta adequada à constituição, sob o fundamento de que uma interpretação compatível com o Estado Democrático de Direito não poderia admitir múltiplas respostas, cuja consequência seriam discricionariedades, arbitrariedades e decisionismos; sendo o caso concreto irrepetível, a resposta é simplesmente uma para aquele caso, que não será a única resposta, mas, sim, “a resposta”, a resposta verdadeira, mas que não é uma única resposta para o caso, nem tampouco uma entre várias respostas para o caso.
Pensamos que o mero controle do discurso com vistas à racionalidade não legitima uma decisão subjetiva do julgador, principalmente porque essa argumentação permite vários caminhos igualmente subjetivos. Parece ser preferível como caminho a trilhar que devemos dar nossa melhor intepretação possível e tentar buscá-la a todo momento. Admitir a subjetividade, com um pretenso controle argumentativo apenas camufla o problema, não o resolve. Assim, deve-se buscar a justificação numa teoria de correção substancial das decisões e não apenas procedimental, sendo a resposta correta possível como demonstram as teorias hermenêuticas citadas. Destarte, o caminho de uma única solução possível na interpretação e aplicação dos conceitos indeterminados se nos mostra irretocável59, permitindo, perfeitamente, o seu controle judicial.
A teoria do Direito como integridade tem como base a ideia de que o Direito deve ser visto como um sistema coerente e integrado, que busca promover valores morais e políticos fundamentais, como a liberdade, a igualdade e a justiça. Como ensina STRECK:
A integridade é um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas. Coloca freios efetivos, por meio dessa comunidade de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é antitética a qualquer forma de voluntarismo, ativismo discricionariedade. Ou seja, por mais que o julgador desgoste de determinada solução legislativa e da interpretação possível que dela se faça, não pode ele quebrara a integridade do Direito, estabelecendo um “grau zero de sentido”, como que, fosse o Direito uma novela, matar o personagem principal, como se isso – a morte do personagem - não fosse condição para a construção do capítulo seguinte60
Do conjunto da obra de Dworkin, destaca-se a pretensão de ruptura com o positivismo, com o reconhecimento do Direito coo atividade interpretativa, sem que isso represente uma postura relativista no julgamento dos casos.
Afirma-se a existência de respostas corretas, constituídas no esforço de, diante da divergência, encontrar a melhor interpretação possível. Com isso, atribui-se certa objetividade ao Direito, que aparece em conceitos desenvolvidos pelo autor: a) moralidade política (construção de uma moralidade não relativista); b) responsabilidade política do julgador (para promover a igualdade); c) interpretação jurídica como romance em cadeia (vinculação do julgador a casos passados e comprometimento com as especificidades da controvérsia). Neste ambiente, coerência de integridade se manifestam como elementos da igualdade.61 Coerência é a consistência lógica que o julgamento de casos semelhantes devem guardar entre si, enquanto integridade é a exigência de que juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, numa perspectiva de ajuste de substância. Observe o seguinte trecho de O império do direito:
O direito como integridade, num caso de direito consuetudinário como o McLonghlin, pede ao juiz que se considere como um autor na cadeia do direito consuetudinário. Ele sabe que outros juízes decidiram casos que, apesar de não exatamente iguais ao seu, tratam de problemas afins; deve considerar as decisões deles como parte de uma longa história que ele tem de interpretar e continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhor andamento a ser dado à história em questão. [...] No direito, porém, a exemplo do que ocorre na literatura, a interação entre adequação e justificação é complexa. Assim como, num romance em cadeia, a interpretação representa para cada intérprete um delicado equilíbrio entre diferentes tipos de atitudes literárias e artísticas, em direito é um delicado equilíbrio entre convicções políticas de diversos tipos.62
Para ilustrar essa abordagem, Dworkin introduz a figura do “juiz Hércules”, um magistrado fictício dotado de vasto conhecimento e capacidade analítica, que busca a “resposta correta” para cada caso, mesmo em situações de incerteza jurídica:
Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules seja juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais regras não controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo.63
O espírito de integridade, que situamos na fraternidade, seria violado se Hércules tomasse sua decisão de outro modo que não fosse a escolha da interpretação que lhe parece a melhor do ponto de vista da moral política como um todo. Aceitamos a integridade como um ideal político porque queremos tratar nossa comunidade política como uma comunidade de princípios, e os cidadãos de uma comunidade de princípios não têm por único objetivo princípios comuns, como se a uniformidade fosse tudo que desejassem, mas os melhores princípios comuns que a política seja capaz de encontrar. A integridade é diferente da justiça e da equidade, mas está ligada a elas da seguinte maneira: a integridade só faz sentido entre pessoas que querem também justiça e equidade. Assim, a escolha final de Hércules da interpretação que ele considera mais bem fundada em sua totalidade - mais equitativa e mais justa na correta relação - decorre de seu compromisso inicial com a integridade. Ele faz essa opção no momento e da maneira que a integridade tanto o permite quanto o exige, e portanto é totalmente enganoso dizer que ele abandonou o modelo da integridade exatamente nesse ponto.64
Assim, em qualquer caso jurídico, existe uma resposta correta que é a solução que melhor promove a integridade do sistema jurídico como um todo. O papel do juiz é o de interpretar as normas jurídicas de forma a encontrar a resposta correta para cada caso. Essa interpretação deve levar em consideração tanto a letra da lei quanto os valores morais e políticos que fundamentam o sistema jurídico.
O aprimoramento criativo de uma lei, portanto, não pode ser realizado pela intepretação incluindo nela as convicções pessoais do julgador. Como diz SIMONI:
A questão da interpretação da lei, na perspectiva da integridade, exige que se busque um significado mais profundo da lei, para além do seu texto, para além do seu nível sintático e semântico. A interpretação da lei com integridade procura ver a legislação como uma decorrência moral da política da comunidade em um determinado contexto histórico65
Em outra passagem desse mesmo autor:
Contrariando toda tradição positivista de Austin, Kelsen e Hart, do direito baseado na análise linguística, para Dworkin o direito é interpetação, por isso ele decide não continuar uma teoria pura do direito, mas fundar uma teoria política do direito. Se no positivismo não é possível uma única decisão jurídica correta, na teoria de Dworkin a decisão jurídica correta não só é possível, mas também exigida por uma questão de coerência e integridade. Do mesmo modo que no neopositivismo de Kelsen, para Dworkin, a escolha da interpretação adequada é uma escolha política. Mas essa escolha não é política no sentido das análises semânticas do direito e sim política no sentido da coerência e integridade com o projeto político de uma comunidade baseada em princípios, baseada em convicções de moralidade política comuns.
Para se chegar a esse nível de entendimento do direito, contudo, é necessário renunciar ao positivismo jurídico. O direito não pode mais ser entendido apenas como linguagem, pois o direito pode ser entendimento mais adequadamente como uma prática interpretativa. Afinal, se as convicções de moralidade política são realmente importantes para justificação coerente e íntegra das decisões jurídicas, o direito então exige seja concebido como uma prática interpretativa, uma hermenêutica política.66
A decisão judicial no Estado Democrático de Direito não pode veicular a vontade do julgador, mas a aplicação do Direito. O Brasil caminho para um sistema que se reputa de precedentes com vistas à efetividade quantitativa do sistema judiciário, com um viés utilitarista e despreocupado com questões fundamentais, notadamente a qualidade das decisões e sua efetividade qualitativa.
A concepção que tem sido seguida peca por fixar-se em quem deve decidir e não como decidir. Firmam-se pela autoridade conferida a quem decide e não pelo conteúdo do decisum. Ao final, baseia-se em um argumento de autoridade e não de justiça. Isso pode provocar a institucionalização jurisprudencial de um realismo jurídico à brasileira, proclamando a verdade das proposições jurídica pelo mero fato de terem sido proferidas pelo Poder Judiciário (“O Direito é aquilo que os Tribunais dizem que ele é”), e não porque conduz às normas jurídicas previamente elaboradas pelo Poder Legislativo.
Desde Gadamer, a hermenêutica se apoia na ideia de que a “autoridade” que se impõe no processo interpretativo é a da tradição e não de quem realiza o ato interpretativo. (...) A verdadeira autoridade, nesse contexto, decorre de um ato de reconhecimento e não de uma imposição. Decisões podem obrigar. Óbvio que sim. Mas por coerência e integridade.67
Parece possível concluir que todo precedente merece ser observado, mas nunca como “ponto de chegada”, e sim como principium argumentativo dentro do processo interpretativo que o Direito consiste.
Algumas decisões da Cortes de Vértices parecem não ter consonância do o Direito, o que se torna possível por valorizar-se a autoridade do argumentador e não do argumento. Por outro lado, os demais membros da comunidade jurídica também precisam cumprir seu papel. Acreditamos que a solução passa pelo direito como integridade, iniciando-se pelas Cortes Superiores, cuja qualidade e autoridade moral (e não imposição legal) devem orientar os demais, que também devem ter autorresponsabilidade de analisar e aplicar com o devido cuidado os precedentes e os fatos determinantes. Sem qualidade, a quantidade provocará mais malefícios que benefícios, caso se queira argumentar também de forma utilitarista.