“A carne mais barata do mercado é a carne negra”, eternizada na voz potente de Elza Soares, a música “A Carne” conduz uma reflexão urgente sobre as camadas profundas de desigualdade que marcam a sociedade brasileira. A canção, ao denunciar o racismo estrutural e a exploração dos corpos negros, especialmente os femininos, serve como ponto de partida para compreender como raça, gênero e vulnerabilidade social se entrelaçam de forma cruel e persistente no Brasil. Muito além de uma denúncia isolada, a música revela que essas opressões não ocorrem de modo separado: são construídas e sustentadas por processos históricos que abandonam as mulheres negras e periféricas às margens da sociedade. A música propõe uma escuta atenta às vozes silenciadas, destacando a imagem dessas mulheres não apenas como vítimas, mas como agentes transformadoras da realidade social.
Essa compreensão parte de um ponto essencial: a interseccionalidade como chave para a leitura da realidade. Em vez de visualizar as opressões como experiências separadas, gênero, raça e classe se misturam de modo inseparável na vivência das mulheres negras pobres. Assim, não se trata de somar desigualdades, mas de reconhecer como essas dimensões se reforçam, entrelaçam e estruturam um ciclo de exclusão contínua. As mulheres negras são, quase sempre, ignoradas, pois, em sua maioria, enfrentam bairros com infraestrutura precária, afetados por enchentes, deslizamentos e ausência de políticas públicas efetivas.
Dessa forma, deve-se propor a desconstrução do discurso meritocrático, frequentemente utilizado para justificar a posição dos indivíduos na estrutura social. A ausência de oportunidades não decorre da falta de esforço individual, mas sim de processos históricos de escravização, exclusão e marginalização, que moldaram a formação social brasileira. Nesse processo, as mulheres negras foram empurradas para funções de cuidado mal remuneradas e socialmente desvalorizadas, ao mesmo tempo que enfrentam múltiplas formas de violência – física, simbólica e institucional.
Outro aspecto crucial é o papel das mulheres negras como detentoras de saberes e práticas transformadoras. Longe de estarem apenas em condição de vulnerabilidade, essas mulheres criam alternativas de sobrevivência, resistência e solidariedade nos territórios que habitam. Por meio de hortas comunitárias, redes de apoio, movimentos por moradia e ações de enfrentamento à violência, constroem coletivamente espaços de cuidado e sustentabilidade. Esse protagonismo, no entanto, raramente é reconhecido pelos discursos oficiais, que continuam a produzir políticas públicas verticalizadas, distantes das realidades locais.
Também é questionável a chamada "sustentabilidade verde" quando esta ignora os recortes de classe, raça e gênero. A crítica reside no fato de que políticas ambientais são, muitas vezes, apropriadas por camadas sociais privilegiadas, que definem prioridades ambientais desconsiderando os impactos sobre as populações periféricas. Quando ocorrem tragédias ambientais, como enchentes ou deslizamentos, são justamente essas populações que arcam com os maiores prejuízos – perdas materiais, familiares, emocionais e ausência de resposta estatal eficiente. A justiça ambiental, segundo a análise proposta, só é possível quando incorpora o compromisso com a equidade e com os direitos das populações historicamente oprimidas.
Outro ponto de destaque que deve ser analisado é a denúncia da invisibilidade institucional. Mesmo diante de sua presença e força social, as mulheres negras permanecem fora dos espaços formais de decisão, de poder e voz ativa. Essa exclusão não é mera eventualidade, mas faz parte de uma estrutura social que valoriza saberes brancos, masculinos e academicamente legitimados, em detrimento dos conhecimentos populares e das experiências vividas nas periferias. Há, portanto, uma hierarquia de vozes que precisa ser rompida para que se construa um modelo de cidade mais democrático e justo.
A feminização da pobreza, outro conceito-chave, ganha releitura ao ser associada à condição racial e à precarização ambiental. Não se trata apenas de uma dificuldade material, mas de uma condição existencial marcada pela exclusão de direitos, da cidadania plena e do pertencimento. As mulheres negras, ao viverem em territórios de risco, enfrentam a ausência de saneamento, a falta de transporte público eficiente, o acesso precário à saúde e à educação, além da violência cotidiana. Isso gera um quadro de vulnerabilidade múltipla, no qual sobreviver passa a ser um ato diário de resistência.
Contudo, a narrativa não se encerra na denúncia. Uma postura assertiva consiste em declarar que essas mulheres não são apenas afetadas pelas políticas, mas devem ser consideradas protagonistas na formulação e na aplicação delas. Ao valorizar suas vozes, suas experiências e suas práticas, é possível construir soluções mais eficazes, contextualizadas e sustentáveis. Políticas públicas construídas a partir dos territórios, com a participação ativa das comunidades, representam o caminho para uma transformação efetiva.
Por fim, a crítica proposta é também um chamado à ação. Denunciar as desigualdades é apenas o primeiro passo; é preciso reformular as estruturas de poder, redistribuir recursos e garantir espaços reais de participação, nos quais essas mulheres tenham voz ativa. Trata-se de propor uma ruptura com o modelo de desenvolvimento centrado no lucro e na exploração, defendendo uma nova ética social baseada na coletividade, na solidariedade e no respeito às diferenças.
Quando Elza Soares declara que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, ela não apenas denuncia a desumanização histórica que recai sobre os corpos negros, mas também escancara um processo estrutural de exclusão que persiste até os dias de hoje. A música não se limita a expor a dor e as lutas — ela exige memória, consciência e ação (principalmente ação). A canção torna-se, portanto, um fio condutor que nos guia pelas diversas camadas de opressão enfrentadas pelas mulheres negras.
Ao reconhecer que essa carne, historicamente desvalorizada, é também a que alimenta, sustenta e reconstrói os espaços urbanos com criatividade, solidariedade e luta, somos levados a entender que não há futuro justo sem que essas mulheres estejam no centro das decisões. Assim, transformar a realidade exige não apenas reconhecer a dor, mas também valorizar a potência de quem sempre foi colocada à margem — e, ainda assim, permanece em pé, criando caminhos onde antes só havia ausência.
Referências
XAVIER DEIGA FERREIRA, A. C.; BARRETO SILVA, R.; MARINHO ALVES DA SILVA, R. Mulheres catadoras de materiais recicláveis: condições de vida, trabalho e estratégias organizativas no Brasil. [S.l.: s.n.], [s.d.].
A CARNE - Elza Soares (Videoclipe Oficial). [S. l.: s. n.], 2002. Disponível em: https://youtu.be/yktrUMoc1Xw?si=WUf2AT0B-rUWHVUC. Acesso em: 4 abr. 2025.